Edição 420 | 27 Mai 2013

O filtro da medicalização para a produção da subjetividade

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Graziela Wolfart

Para Ricardo Teixeira, o tema da medicalização participa na produção dos nossos modos de viver de múltiplas formas

“Produzir subjetividade é produzir um modo de afetar e ser afetado pelos fatos da vida. A subjetividade define, entre outras coisas, a maneira como eu percebo as coisas, o mundo, me percebo, auto-analiso as situações em que meu corpo se insere. E nesses fatos, a medicalização entra como uma espécie de filtro produzido a partir dos agenciamentos que esse corpo e essa subjetividade integram, que passa a perceber o mundo e agir nele segundo uma lógica ‘imposta’ pelo filtro da medicalização. E aqui medicalização seria todos esses elementos que entram nos agenciamentos de produção de subjetividade, isto é, de produção de si e do mundo, e que acabam mediando a relação com o mundo a partir de uma lógica médico-centrada”. A análise é do professor Ricardo Teixeira, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line. Ele deixa claro, no entanto, que a questão da medicalização abordada não envolve apenas a figura do médico, “mas o olhar advindo da centralidade que um certo saber médico sobre a vida tem na cultura contemporânea”. 

Ricardo é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP. Desde 1989 atua como médico sanitarista da USP, desenvolvendo atividades de assistência, docência e pesquisa junto ao Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa (Butantã). Desde 2007, é consultor da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, coordenando, desde 2008, a Rede HumanizaSUS.

O professor esteve na Unisinos no último dia 14 de maio para falar sobre o tema “Agenciamentos tecnossemiológicos na produção da subjetividade em saúde”, durante a programação do I Seminário que antecede e prepara o XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades – A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, que ocorrerá de 21 a 24 de outubro de 2014, na Unisinos (mais informações em http://bit.ly/17XdPlT). Leia uma nota sobre a palestra dele, disponível em http://bit.ly/14UhK0X 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a medicalização interfere na subjetividade dos indivíduos de modo geral? 

Ricardo Teixeira – O tema da medicalização diz respeito às múltiplas formas como os saberes e práticas médicas participam da produção dos nossos modos de viver. Produzir subjetividade é produzir um modo de afetar e ser afetado pelos fatos da vida. A subjetividade define, entre outras coisas, a maneira como eu percebo as coisas, o mundo, me percebo, autoanaliso as situações em que meu corpo se insere. E nesses fatos, a medicalização entra como uma espécie de filtro produzido a partir dos agenciamentos que esse corpo e essa subjetividade integram, que passa a perceber o mundo e agir nele segundo uma lógica “imposta” pelo filtro da medicalização. E aqui medicalização seria o que conhecemos como todos esses elementos que entram nos agenciamentos de produção de subjetividade, isto é, de produção de si e do mundo, e que acabam mediando a relação com o mundo a partir de uma lógica médico-centrada. Gostaria de deixar claro que a questão da medicalização não envolve apenas e necessariamente a centralização na figura do médico, mas o olhar advindo da centralidade que um certo saber médico sobre a vida tem na cultura contemporânea. 

IHU On-Line – Pensando em soluções para os problemas de saúde, como seria a proposta de uma inteligência coletiva e uma horizontalização das relações? 

Ricardo Teixeira – Colocar os problemas da saúde sob a ótica da inteligência coletiva significa admitir que eles convocam uma inteligência distribuída, no sentido de que são desafios não para apenas conhecimentos produzidos por um ou alguns, mas que imediatamente convocam uma resposta no plano da ação coletiva. Os problemas de saúde não prescindem de um saber e uma inteligência médica. Mas outra coisa é achar que eles estejam subordinados a uma lógica estritamente médica. O tema da horizontalização implica afirmar que, no campo dos desafios da saúde, não há a priori um saber que seja mais valioso do que os demais. É desse tipo de horizontalização que estamos falando. 

A horizontalização confronta o tema da hierarquia do saber. A abordagem da inteligência coletiva não nega a hierarquia do saber. O que ela confronta é uma hierarquia a priori do saber, de que existiriam saberes mais valiosos do que outros a priori. Para a inteligência coletiva, o ponto de partida são os problemas a serem enfrentados. E é o problema que define, a cada vez, de forma intensamente contextual, qual é o saber mais importante naquela situação. Nem sempre em todas as situações de saúde o saber médico será hierarquicamente superior, do mesmo modo que em outra situação ele poderá ser. Não significa negar a hierarquia do conhecimento, mas afirmar que ela é intensamente contextual, ela se afirma perante os problemas concretos que se apresentam.

IHU On-Line – Como o senhor define o relacionamento entre os profissionais da saúde e seus pacientes dentro da lógica da medicalização da saúde e da vida?

Ricardo Teixeira – No encontro paciente/trabalhador da saúde esse mesmo tema da hierarquização pode se recolocar. O usuário ou paciente não é alguém destituído de saberes sobre questões de saúde. E o profissional de saúde, seja ele qual for, também possui um saber. É claro que na relação paciente/trabalhador da saúde essa questão tende a se apresentar, num certo sentido, a priori hierarquizada. No sentido de que há uma parte que procura o auxílio da outra parte, supondo, portanto, que seu saber é insuficiente para lidar com a adversidade que está enfrentando. Digamos que ao procurar ajuda, o paciente tem uma expectativa de que o saber do outro seja hierarquicamente superior ao seu. No entanto, não podemos esquecer que o paciente, até o fim desse processo, é portador de um conhecimento que só ele pode ter. Esse é um tipo de conhecimento que não está formalizado no plano da cognição, plano onde ela [a cognição] é separada dos afetos, de um conhecimento intensamente afetivo a respeito da sua própria situação. Mas quem detém o critério, o valor último de todo o conhecimento que será mobilizado nessa relação, é o paciente. Essa é a riqueza da clínica. O saber médico se formaliza muitas vezes no laboratório, na bancada científica. Quando um patologista, no laboratório, examina um tecido e diz que ali há uma lesão, que é uma patologia, a rigor, não há nada no que ele está vendo que diga para ele, em si mesmo, que aquilo é patológico. Ele só pode falar que algo é patológico porque algum clínico que teve contato com o paciente, na beira do leito ou no ambulatório, disse para ele que alguém que é o dono daquele tecido sofria. Este conhecimento que informa que aquele tecido é patológico vem de um paciente que sabe que sofre. Que esse conhecimento permaneça sempre hierarquicamente superior na relação paciente/trabalhador da saúde, pode funcionar como um pequeno “antídoto” contra a medicalização.

IHU On-Line – Qual a inspiração que a obra Ética, de Baruch Spinoza, pode oferecer aos desafios que se apresentam à sociedade medicalizada em excesso? 

Ricardo Teixeira – Spinoza é exatamente isso. Para ele, uma ideia é um afeto; um afeto é uma ideia. Já de cara precisamos retomar sua teoria do conhecimento do que é um corpo que conhece, que não vai tratar o conhecimento e a própria razão como um fato cerebral, mas como um conhecimento que é do corpo. Na teoria de Spinoza, não se pode dissociar o pensamento do corpo, pois são dois atributos de uma mesma e única coisa. Nesse sentido, Spinoza é o anti-Descartes, pois põe em questão a separação corpo e mente. E essa indissociabilidade se expressa no ponto de vista de que não há uma ideia no pensamento que não seja, ao mesmo tempo, imediata e simultaneamente, uma afecção e um afeto do corpo, que não seja experiência da variação da potência (para mais ou para menos) desse corpo. 

IHU On-Line – Com a modificação dos corpos feita pela técnica e pelos remédios, podemos dizer que eles ainda continuam a constituir um corpo próprio?

Ricardo Teixeira – O nosso corpo nos pertence? Entramos em agenciamentos coletivos e vários deles são partes de estratégias de governo de nossa própria vida. A ideia de produzirmos um corpo cada vez mais livre, ou seja, a ideia de podermos cada vez mais entrar na posse da potência que é nosso corpo, é propriamente uma temática spinozana. Da mesma forma Spinoza questionou a problemática filosófica do livre arbítrio. Como esse corpo completamente governado pelo que está “fora”, pelo que não lhe pertence, poderia ser livre e fazer escolhas livres? Para Spinoza, achamos que nossas escolhas são livres porque somos conscientes que escolhemos, ainda que ignoremos o que causa nossas escolhas e a causa delas muitas vezes está no tipo de agenciamento que nosso corpo entra e participa. E Spinoza vai dizer que o único ser inteiramente livre seria Deus, porque só Ele não poderia ser determinado por nada que venha de fora, porque não haveria um “fora” de Deus. Já para todos os corpos que têm uma existência finita e limitada só poderíamos esperar alcançar um grau “proporcionalmente” maior de liberdade. Todas as técnicas que se acoplam ao nosso corpo deveriam, em termos spinozanos, ser arguidas dessa perspectiva.

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