Edição 419 | 20 Mai 2013

Uma nova relação entre regras e práticas

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Graziela Wolfart e Ricardo Machado

Anna Carolina Regner aponta que, para Feyerabend, “nem a ciência, nem a racionalidade são medidas universais de excelência; são tradições particulares, não conscientes de seu enraizamento histórico”

“Que cada um trace suas pegadas, não é sinônimo de cada um criar ou destruir sua própria tradição. Não pertence ao escopo do indivíduo fazê-lo. Mas pertence-lhe o direito de saber, por exemplo, que, mesmo defendendo a ideia de valores absolutos, a tradição que os defende não é absoluta. Isso amplia sua consciência e abre espaço para a liberdade criadora”. Foi baseada no pensamento de Paul Feyerabend que a filósofa e professora na Unisinos Anna Carolina Regner fez esta afirmação, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. E continua: “para além das suas motivações, contudo, Feyerabend certamente nos faz refletir sobre nossa restrita compreensão crítica da ciência, sobre a ousadia de seus grandes marcos ao não se acanharem diante dos ditames estabelecidos do método, que a racionalidade não se reduz à tímida observância de tais ditames, e traz uma golfada de ar fresco para se acreditar que a inovação é possível e que a comparação entre alternativas é necessária”.

No próximo dia 22 de maio, o tema “Razão, método e ciência em Feyerabend”, será abordado na palestra da Profa. Dra. Anna Carolina Krebs Pereira Regner, da Unisinos. O evento acontece na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU, das 19h30min às 22h e integra a programação do seminário que antecede e prepara o XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades – A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, que ocorrerá de 21 a 24 de outubro de 2014, na Unisinos (mais informações em http://bit.ly/17XdPlT).

Em setembro do ano passado a professora abordou o tema “O conceito de abundância em Feyerabend” no evento IHU ideias, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na ocasião, concedeu a entrevista intitulada “Ciência para a felicidade humana”, publicada na edição número 403 da IHU On-Line, de 24-09-2012, que está disponível em http://bit.ly/OXkjpJ.

Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Anna Carolina é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Doutorou-se em Educação pela UFRGS e é pós-doutora pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Leciona nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É autora de Charles Darwin, notas de viagem: a tessitura social no pensamento de um naturalista (Porto Alegre: EST/Grafosul, 1988).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos compreender razão, método e ciência em Paul Feyerabend ?

Anna Carolina Regner – Essa questão é o tema previsto para ser discutido em minha palestra, quando teremos mais tempo para examiná-lo em sua complexidade, que vai na seguinte direção: a razão é comumente identificada como aquela faculdade que se exercita (organiza, relaciona nossas ideias, infere novas) segundo princípios e padrões universalmente válidos. A grande garantia dessa universalidade é o conjunto de regras que gera em seu exercício e os procedimentos que viabilizam a observância delas. Dito de modo breve, a razão é reconhecida pelo “método” que instaura e assegura a comensurabilidade (medida de avaliação comum) a teorias e práticas que caracterizam a ciência, em que pese as profundas alterações que a ciência sofre em seu percurso histórico. Feyerabend critica essa abordagem conceitual e historicamente. Primeiro, a observância de regras como “só aceitar teorias que não conflitem com teorias aceitas e bem corroboradas” (critério de consistência teórica e adequação empírica), não só impediria o pretendido avanço crítico do conhecimento, protegendo antes o status quo, como a exploração enriquecedora da evidência, uma vez que essa se estabelece dentro de marcos teóricos e depende de comparação entre alternativas teóricas para garantir a diversidade da evidência. A observância de regras como “só aceitar hipóteses que não conflitem com fatos bem estabelecidos” (princípio de autonomia da experiência) não só nos deixaria sem ciência alguma, uma vez que nenhuma hipótese está em acordo, tanto quantitativo como qualitativo, com todos os “fatos” sob sua jurisdição, mas impediria a própria autonomia de fatos bem estabelecidos, uma vez que não há “fatos nus” – todos são vistos de uma determinada maneira. Levada às suas últimas consequências, as regras inviabilizariam o alcance de seus objetivos e seriam autodestrutivas. Ou seja, levado às últimas consequências, o “racionalismo” caracterizado como a metodologia da comensuração levaria ao “irracionalismo”.

Abandono de razão, método e ciência?

Não se trata, contudo, de um literal abandono de “razão” e “método” ou mesmo de “ciência”, no pensamento de Feyerabend. Desde suas primeiras versões de Contra o Método (o ensaio de 1970 e a primeira edição do livro em 1975), as críticas de Feyerabend ao “racionalismo” têm um endereço bem definido – críticas a uma teoria estática da racionalidade, que elege uma tradição, nascida na Grécia no período pós-homérico como a detentora da teoria da “razão” e da “racionalidade”. Essa tradição substituiu a lista de diferentes estórias contadas no período homérico, relatos do que acontece na realidade e no conhecimento do que dela se tem, com suas circunstâncias e protagonistas por “a” estória, cuja distinção consiste em ser contada pelas “coisas mesmas”, abstraídas as peculiaridades das circunstâncias e dos agentes, dando lugar a um tipo especial de argumento, a prova. Temos, assim, “a” estória “verdadeira”, “objetiva”, porque nos revela as coisas mesmas, e contada pela “razão”. A última sentença da 1ª edição de Contra o Método deixa, contudo, entreaberta a porta para que se pense uma racionalidade dinâmica, à luz da qual a “racionalidade” das nossas crenças será aumentada. Que racionalidade é essa? Na trajetória do pensamento de Feyerabend, sobretudo a partir da segunda edição inglesa de Contra o Método (1988), essa “racionalidade” ganha corpo. Três novos capítulos (17, 18, 19) falam-nos então sobre “padrões de racionalidade”, que não são conjunto de regras fixas e universais, mas padrões “contextualizados” emergentes de uma nova maneira de conceber as relações razão/prática, teoria/prática e universal/particular. O foco do interesse não é mais identificar o universal e o particular, mas a relação entre ambos. Desde o início de sua trajetória Feyerabend disse que seu objetivo era mostrar que todas as metodologias têm limitações, do que não segue que não haja metodologias. A face metodológica de seu anarquismo (ausência de um princípio único ou absoluto de organização) é o pluralismo metodológico. A ciência, por sua vez, deixa de ser uma tradição e passa a abrigar várias “tradições”, dentre as quais a do “racionalismo”, que deixa de ser “a tradição”. Em 1988, ele critica o “anarquismo ingênuo”, para o qual, dado que tanto regras absolutas quanto regras dependentes do contexto têm seus limites, segue-se que todas as regras e padrões não possuem valor e devem ser abandonadas. Feyerabend concorda com a primeira, mas não com a segunda. Para ele, todas as regras têm os seus limites e não há uma “racionalidade” compreensiva. Também é favorável a dar conta das regras em termos contextuais, mas não que as regras contextuais devam substituir as regras absolutas; antes, trata-se de suplementá-las – o que pede uma nova relação entre regras e práticas. Segundo ele, é essa relação o que caracteriza a posição que quer defender e que se expressa também sob a forma: nem a ciência nem a racionalidade são medidas universais de excelência; são tradições particulares, não conscientes de seu enraizamento histórico.

IHU On-Line – Para Feyerabend qual a importância das “tradições” na história das práticas e das ideias? Como isso se contrapõe à bandeira que ele defendia de que cada um deve traçar seu caminho com suas pegadas? 

Anna Carolina Regner – Cada indivíduo é participante de uma dada tradição, enquanto partilha valores, práticas e teorias, crenças com os demais membros da comunidade que se identifica com tal tradição. Práticas, teorias, bem como padrões e argumentos para sustentá-las compõem tradições que consistem de princípios claros e explícitos e de um fundo não percebido, amplamente desconhecido, mas absolutamente necessário, de disposições para ação e juízo. O indivíduo como membro de uma tradição pergunta dois tipos de questões diferentes: questões do observador (o que acontece?) e do participante (o que devo fazer?). A importância em compreender o papel das tradições, mesmo para entender a ciência, está em que críticos de uma prática assumem uma posição de observadores para com relação a essa prática, mas assumem uma posição de participante ao fazer uso dos padrões de “sua” prática para levantarem suas objeções. Assim, é possível que o registro de “erros” resulte do fato de que valores e outros componentes de cada uma sejam conflitantes. Enquanto a prática científica reúne sob si diferentes tradições, coloca em xeque a questão de uma metodologia universal da comensuração, com reflexo sobre pontos mais específicos tais como os chamados “experimentos cruciais”. Todavia, Feyerabend, já na segunda edição de Contra o Método (1988) e de modo explícito em “Potentially every culture is all cultures”, defende que diferentes culturas e tradições podem se interpenetrar, tanto por uma constatação de que há fenômenos de aculturação como pela condição de que a própria identidade cultural requer o reconhecimento da diversidade cultural. Como também aparece em sua autobiografia (Killing time, 1994), a natural interpenetração de culturas explica porque não cabe dizer, a usar expressão do próprio Feyerabend, de um “assassinato” que o assassinato é “cultural” e assim justificá-lo. Por fim, que cada um trace suas pegadas, não é sinônimo de cada um criar ou destruir sua própria tradição. Não pertence ao escopo do indivíduo fazê-lo. Mas pertence-lhe o direito de saber, por exemplo, que, mesmo defendendo a ideia de valores absolutos, a tradição que os defende não é absoluta. Isso amplia sua consciência e abre espaço para a liberdade criadora.

IHU On-Line – Qual a luz oferecida por Feyerabend para pensarmos em uma nova maneira de entender a relação entre regras e práticas?

Anna Carolina Regner – Para esclarecer sua própria posição interacionista, comecemos pelo modo de conceber as relações entre o que, no fundo, trata-se de interações entre duas “práticas”. Pensemos nas relações entre “razão e prática”. São relações em termos de uma atividade e o guia dessa atividade. De um lado a “razão”, com suas regras; de outro, a “prática”, a investigação a ser realizada. Para o idealismo, a razão guia e determina a prática. Para o naturalismo, a razão recebe tanto seu conteúdo como sua autoridade da prática. Ambas as posições possuem dificuldades. A inadequação de seus padrões para dar conta da interação sugerem, para Feyerabend, que razão e prática não são duas entidades separadas, mas ambas são partes de um mesmo processo dialético. A razão sem o guia de uma prática deixa-nos perdidos, enquanto uma prática é enormemente aperfeiçoada pela razão. Diz Feyerabend que mesmo os mais perfeitos padrões ou regras não são independentes do material sobre o qual atuam e mesmo a prática mais desordenada não é desprovida de regularidades; que uma razão complexa e implícita é ainda uma razão e que uma prática com características formais simples ainda é uma prática. A posição de Feyerabend é, pois, interacionista e colhe do idealismo que a razão determina a prática e do naturalismo que a prática determina a razão, enquanto partes de um mesmo processo cujo “guia”, seja razão ou prática, é, ao mesmo tempo, parte da atividade guiada e sujeita a suas determinações.

IHU On-Line – Em que medida se percebe em Feyerabend a meta de uma pedagogia humanista e a multiplicidade inerente à riqueza do Ser?

Anna Carolina Regner – Em todos os momentos de sua obra ambos os fatores são percebidos: seja ao arrolar entre os argumentos a favor do anarquismo epistemológico, a promoção do desenvolvimento da consciência do indivíduo, a busca, também para a ciência, da liberdade artística, seja ao propor, no prólogo à versão espanhola de Adios a la Razón (ensaio,1984, p. 17), que a sobrevivência da natureza e da humanidade é o problema mais difícil e urgente que existe e que concerne a todos: “empreguemos este conhecimento para resolver os dois problemas pendentes na atualidade, o problema da sobrevivência e o problema da paz: por um lado, a paz entre os humanos e, por outro, a paz entre os humanos e todo o conjunto da Natureza”. 

IHU On-Line – Pensando nas influências do pensamento de Paul Feyerabend, em que sentido ele abre as portas para novas compreensões da ciência?

Anna Carolina Regner – Voltando à edição de 1993 de Contra o Método (p. 253), no sumário de seu último capitulo, onde examina as influências que sofreu em sua caminhada, ele diz: “O ponto de vista subjacente a este livro não é o resultado de um curso de pensamento bem planejado, mas de argumentos provocados por encontros acidentais. Raiva da destruição irresponsável das conquistas culturais das quais todos nós poderíamos ter aprendido, da pretensiosa segurança com a qual alguns intelectuais interferem nas vidas das pessoas, e desprezo pelas expressões melosas que usam para embelezar seus malfeitos, foi e ainda é a força motivadora por trás de meu trabalho”. Para além das suas motivações, Feyerabend certamente nos faz refletir sobre nossa restrita compreensão crítica da ciência, sobre a ousadia de seus grandes marcos ao não se acanharem diante dos ditames estabelecidos do método, que a racionalidade não se reduz à tímida observância de tais ditames, e traz uma golfada de ar fresco para se acreditar que a inovação é possível e que a comparação entre alternativas é necessária. 

Referências

Feyerabend, Paul. Adios a la Razón. (traduzido por José R. de Rivera. Madrid: Editorial Tecnos, 1987 [1984].

______. Against Method (third edition). London: Verso, 1993.

______. Contra o Método (traduzido por Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg). Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves editora, 1977 (tradução de Against Method. London: New Left Books, 1975).

______. Contra o Método (traduzido por Miguel Serras Pereira de Against Method. London: Verso, 1988). Lisboa: Relógio D’Água, 1993 (tradução da edição inglesa de 1988).

______. Contra el Método: esquema de una teoría anarquista del conocimiento. Barcelona: Ariel, 1974 (traduzido por Francisco Hernán de “Against Method: Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge”. Minnesota Studies in the Philosophy of Science, vol.IV. Minneapolis: University of Minnesota, 1970).

______. Killing Time. The Autobiography of Paul Feyerabend. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.

______. Potentially Every Culture Is All Cultures. Common Knowledge, Fall/1994, p. 16-22.

 

Leia mais...

>> Anna Carolina Krebs Pereira Regner já contribuiu com a IHU On-Line em outras oportunidades. Confira:

• Ciência para a felicidade humana. Entrevista publicada na edição número 403, de 24-09-2012, disponível em http://bit.ly/OXkjpJ 

• “Somos melhores depois de Darwin”. Entrevista publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 13-07-2009, disponível em http://bit.ly/RJ2V8Y 

• Deus e a ciência: a controvérsia interna de Darwin. Artigo publicado na edição número 306, de 31-08-2009, disponível em http://bit.ly/UlKRrr

• Sua trajetória pessoal e profissional também pode ser lida na entrevista que concedeu para a IHU On-Line número 257, de 05-05-2008, disponível em http://bit.ly/PuUe3X

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