Edição 419 | 20 Mai 2013

Uma síntese cultural entre filosofia helênica, poesia, música e medicina

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Márcia Junges e Graziela Wolfart

Rita de Cássia Codá dos Santos, tradutora da obra “Exortação aos Gregos”, defende que Clemente de Alexandria será um pregador da e para a elite grega de Alexandria. “E seu maior legado é a fusão magistral que faz da filosofia grega com o cristianismo”

Alexandria, Clemente de. Exortação aos Gregos. Tradução: Rita de Cássia Codá dos Santos. São Paulo: É Realizações, 2013

 

“Clemente foi o primeiro grande teólogo cristão a lançar mão da filosofia grega sem, no entanto, deixar de considerar a fé superior àquela”. A afirmação é da professora Rita de Cássia Codá dos Santos, tradutora da obra “Exortação aos Gregos”, de Clemente de Alexandria, que acaba de ser lançada pela É Realizações. Na entrevista que aceitou conceder por e-mail à IHU On-Line, Rita acredita que, para o cristão do século XXI, Clemente continua atual, pois sua exortação “vai além do teológico; é também uma lição de estilo poético de rara beleza, um profundo conhecedor da natureza dos gregos que, por metonímia, é a de todo homem. Para ele, o que impede o crescimento espiritual são sempre o orgulho e a ignorância. A verdadeira sabedoria que o homem pode adquirir é simplesmente centelhas do logos divino. E não há outra sabedoria”.

Rita de Cássia Codá dos Santos possui graduação e licenciatura em Grego, e em Português e Alemão, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Letras Clássicas e em Letras Vernáculas pela mesma instituição e doutorado em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Atualmente é professora de Português e Literatura do Colégio Pedro II (Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro) e professora da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro, onde ministra cursos de língua e literatura gregas. Rita traduziu para o português o livro “Exortação aos Gregos” (Protréptico) de Clemente de Alexandria, como complemento da tese de doutorado. Atualmente está traduzindo o “Pedagogo”, também de Clemente de Alexandria.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem foi Clemente de Alexandria?

Rita de Cássia Codá dos Santos – Tito Flávio Clemente  (145-215) foi um homem de grande erudição, um pepaideumenos , como se diz em grego clássico. Provavelmente pertencia à alta classe social. Não se sabe, ao certo, se nasceu em Atenas ou em Alexandria. Ao converter-se ao cristianismo, com mais de trinta anos, andou pelo Oriente Médio (Síria, Palestina) em busca da verdadeira gnose, mas foi na Magna Grécia (sul da Itália) que ele encontrou um mestre cristão, Panteno, de formação estoica, que o fez entender que não precisava deixar de lado a filosofia grega para se tornar um bom cristão. Que o Evangelho e a sabedoria dos helenos não são de todo inconciliáveis. Muito pelo contrário, houve, segundo Panteno, um desígnio divino para que o cristianismo se encontrasse com a cultura helênica. Em verdade, Clemente foi o primeiro grande teólogo cristão a lançar mão da filosofia grega sem, no entanto, deixar de considerar a fé superior àquela. Com o método alegórico de Fílon de Alexandria , ele continua e aprofunda a tradição catequética de Panteno. Outro tópico essencial em Clemente é a questão da gnose. Ele propõe uma gnose cristã, em oposição a uma gnose herética ou heterodoxa. E é isso que vai envolvê-lo numa cadeia de mal-entendidos históricos e doutrinais. Primeiramente foi Fócio , patriarca de Constantinopla (820-895) que, sem o devido distanciamento histórico, deixa Clemente numa situação ambígua perante a ortodoxia dogmática, após ler e resenhar as obras clementinas; o problema estava nas Hypotypóseis (Ensaios/Demonstrações). Depois da avaliação de Fócio, esta obra entrou no rol das desaparecidas. Depois, em 1748, o papa Bento XIV , através da bula Postquam intelleximus, excluiu Clemente de Alexandria do Cânon. Clemente será um pregador da e para a elite grega de Alexandria. E seu maior legado é a fusão magistral que faz da filosofia grega com o cristianismo. 

IHU On-Line – Quais são as ideias fundamentais e que reflexões elas propõem ao sujeito do século XXI?

Rita de Cássia Codá dos Santos – Primeiramente, que não há incompatibilidade entre a cultura e a fé. Daí ele se lançar incisivamente contra os cultos politeístas e os mistérios de iniciação dos gregos. Isso, para ele, era algo ininteligível. O culto de estátuas de deuses cuja história nem sempre é edificante, muitas delas imorais e destrutivas, os mistérios iniciáticos, tudo era risível quando confrontado com a arrogância e a sabedoria grega. Outra ideia fundamental é “transfiguração” que ele faz de certos tópicos do paganismo grego para “mostrar” Cristo, o logos divino aos gregos. Ele usa todo o léxico dos mistérios para se referir a Cristo. E tudo isso envolto numa linguagem altamente poética. Por fim, ele propõe aos gregos abandonar a loucura do paganismo e acolher o logos divino que, ao lado de grandes tópicos da filosofia grega, é a verdadeira filosofia, o “cântico novo do logos”. Para o cristão do século XXI, creio que Clemente continua atual, pois sua exortação vai além do teológico; é também uma lição de estilo poético de rara beleza, um profundo conhecedor da natureza dos gregos que, por metonímia, é a de todo homem. Para ele, o que impede o crescimento espiritual são sempre o orgulho e a ignorância. A verdadeira sabedoria que o homem pode adquirir é simplesmente centelhas do logos divino. E não há outra sabedoria. 

IHU On-Line – Qual é o contexto da escrita dessa obra?

Rita de Cássia Codá dos Santos – O Protréptico pròs Héllenas (Exortação aos Gregos) foi escrito entre 193 e 195, depois do governo de Cômodo, quando a Igreja usufrui de uma relativa paz, e o cristianismo começa a penetrar nos ambientes mais refinados e de maior poder aquisitivo. Do ponto de vista literário, Clemente pertence à Segunda Sofística, um movimento literário que tencionava trazer de volta o grego de Platão  e dos grandes oradores áticos. Por isso Exortação aos Gregos é um lídimo produto, do ponto de vista literário, deste movimento cultural. 

IHU On-Line – Como a filosofia e a teologia se imbricaram no pensamento de Clemente?

Rita de Cássia Codá dos Santos – Clemente, como um aristocrata, passou por todos os níveis da paidéia (educação) grega. E a filosofia era o último estágio da formação do homem grego. Portanto, ele era um filósofo, no sentido grego, mesmo sem ter deixado um sistema próprio. Era, digamos, um grande erudito. Seu contato com Panteno foi decisivo para a sua postura em face do cristianismo. Ele aprende com o mestre siciliano que o cristianismo não rechaça a filosofia grega, que um precisa do outro, porque a filosofia foi o primeiro relampejo do logos. O que ele faz, na verdade, é uma bela síntese cultural; aproveita não apenas a filosofia helênica, mas também a poesia, a música e a medicina para mostrar que não há nenhum demérito em acatar o cristianismo, mesmo para aqueles que se consideram cultos.

IHU On-Line – Quais foram os principais desafios na tradução?

Rita de Cássia Codá dos Santos – Há dois grandes desafios aos tradutores de Clemente de Alexandria: o primeiro é a vasta erudição do autor, que vai da filosofia à música, à medicina, à literatura e aos mistérios de iniciação dos gregos e de outros povos do mundo helenístico-romano. Como cristão recém-converso, ele está ainda muito emocionado, e isso se percebe em seu discurso que, às vezes, envereda por caminhos outros; o segundo, de certa maneira ligado ao primeiro, são os anacolutos, as quebras da estrutura sintática e períodos longos. Seu grego é erudito, não é a Koiné, pois, como já disse, ele fazia parte da Segunda Sofística, movimento cultural que trazia de volta a pureza da língua grega.

IHU On-Line – Qual a importância da tradução para os que estudam teologia e filosofia?

Rita de Cássia Codá dos Santos – A importância da Exortação aos Gregos, para os estudantes de filosofia e teologia, está no fato de esta obra se tratar de uma exortação sui generis, pois só a partir do capítulo VIII (dos doze que a compõem) é que o autor assume um tom apologético. Nos capítulos anteriores, ele faz uma “uma minuciosa e erudita crítica aos cultos e mistérios pagãos”. Por ser uma apologia “diferente”, a obra é de extrema originalidade. É a primeira grande síntese operada entre o cristianismo e a cultura grega.

IHU On-Line – O que podemos entender por “helenização do cristianismo”?

Rita de Cássia Codá dos Santos – Em Clemente de Alexandria, helenização do cristianismo é o que ele faz, ao operar uma síntese cultural, a saber, tentar justificar certos tópicos da filosofia e a erudição gregas como sendo um desígnio do logos divino, isto é, o primeiro sinal de logos. Mesmo assim, não são todos os filósofos que têm esse mérito. Ele até critica mordazmente aqueles que deturparam essa filosofia. Ele, Clemente, um novo homem, tenta construir um novo humanismo, uma nova filosofia: a filosofia cristã. Para isso ele se vale de todo um acervo cultural que, a princípio, põe por terra; em seguida, reedifica-o, a partir do pensamento cristão. Cristo é descrito como o grande mistagogo, o epópita (título dado aos grandes iniciados nos mistérios), o grande ator no cenário do universo, para, enfim, ser visto como o logos divino e seu cântico novo (o Evangelho). Primeiramente ele usa a lexicografia dos mistérios gregos, a realidade cultural helênica, os cultos ancestrais e submete-os a uma crítica ferrenha, parece que nada vai sobrar; em seguida ele retoma o que restou, confronta com o cristianismo e estabelece uma nova proposta de vida aos gregos: o humanismo cristão. Um dos entrechos mais expressivos é este, que se refere a Tirésias, lendário adivinho cego de Tebas, como metonímia de todos os adivinhos e iniciados nos mistérios: “Vem a mim, ó ancião, deixa Tebas, tu, também! Abandona o vaticínio e o culto de Baco, deixa-te levar, pela mão, à verdade; vê, eu te dou o madeiro para te apoiares; apressa-te, Tirésias, crê: tu verás! O Cristo brilha mais que o sol; por meio dele, os olhos dos cegos recobram a vista, a noite fugirá de ti, o fogo se amedrontará, a morte se afastará; tu verá os céus, ó ancião, tu que não vês Tebas”.

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