Edição 200 | 16 Outubro 2006

A tarefa essencial hoje é aprender a ver o valor humano universal

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IHU Online

O filósofo italiano Roberto Mancini é pesquisador de filosofia teórica e professor de hermenêutica filosófica no Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Macerata, na Itália. Publicou diversos livros e ensaios de ética e de filosofia da linguagem. Entre seus livros traduzidos ao português citamos Existência e gratuidade (1998) e Éticas da mundialidade (1999), publicados pela Editora Paulinas, de São Paulo.  Em entrevista exclusiva, concedida por e-mail para a revista IHU On-Line, ele fala que a visão dominante hoje é a de uma antropologia extremamente limitativa, que considera o ser humano como recurso (instrumento útil para produzir lucro) ou como excedente, (um ser supérfluo e inútil). Confira: 

IHU On-Line - Quais são as diversas concepções de ser humano?

Roberto Mancini
- Através do tempo e das culturas, surgiram diversas concepções do ser humano: desde aquelas que vêem o seu valor somente em casos privilegiados, até as universais centradas na dignidade de todos, desde perspectivas coletivistas a impostações individualistas, desde pontos de vista que fazem dele parte de um todo (o mundo, a vida, a natureza, o divino) até pontos de vista que evidenciam a sua transcendência e unicidade. Hoje, a visão dominante, com a globalização, é o de uma antropologia extremamente limitativa, que considera o ser humano como recurso (instrumento útil para produzir lucro) ou como excedente, (um ser supérfluo e inútil). Logo, pode-se dizer que haja dificuldade em reconhecer o real valor e a grandeza da identidade humana; este escasso discernimento, como conseqüência, leva a violar de mil maneiras os direitos humanos e a não dar atenção aos deveres humanos.

IHU On-Line - Quais são as atuais antinomias da antropologia e da teologia?

Roberto Mancini
- As atuais antinomias da antropologia e da teologia não levam a uma contraposição entre elas, mas a uma falsificação de ambas. À identidade humana distorcida na figura do Homo economicus se contrapõe uma distorção não menos grave, aquela de uma identidade divina, concebida como exclusivamente típica de uma tradição étnica, e como expressão de um poder pronto a exigir o domínio, a colonização, a guerra contra todos aqueles que são julgados "inimigos" ou "infiéis". Nem o ser humano nem Deus vivo são assim; somente uma busca do rosto humano e misericordioso de Deus, que, ao mesmo tempo, ouça o surgir da identidade humana no trabalhoso caminho do aprender a amar, poderá abrir com fidelidade o horizonte de uma compreensão razoável da realidade, logo, não só da humanidade e de Deus, mas também da vida do mundo. A verdadeira laicidade, como comum característica de todos no gênero humano e no ser criado, é o espaço hermenêutico em que uma tal procura é possível.

IHU On-Line - Como podemos caracterizar o sujeito pós-humano? Quais são os nossos maiores desafios?

Roberto Mancini -
A categoria do sujeito pós-humano surge como redefinição da nossa identidade com base na engenharia genética e nas possibilidades abertas pela tecnologia contemporânea. O pós-humano desponta como o espaço de construção de identidades funcionais, múltiplas, tecnológicas, mas substancialmente sem alma e sem autêntica humanidade. Devemos lembrar também que toda a semântica do "pós" (pós-moderno, pós-colonial, pós-humano) evoca uma renovação que nunca o é na realidade, mas somente um consumir-se e repetir-se com outras roupagens das tendências que se declaram superadas. A verdadeira tarefa essencial hoje é aprender a ver o valor humano universal, rosto por rosto, história por história, vendo junto o valor da vida do mundo. De uma visão ampla e completa como esta pode resultar a ação da justiça restitutiva que é o único caminho para a salvaguarda do ser criado e para o futuro da própria humanidade.

IHU On-Line - O sujeito pós-humano é um sujeito auto-suficiente? Quais poderiam ser as conseqüências desta auto-suficiência?

Roberto Mancini -
O sujeito pós-humano não é de maneira nenhuma auto-suficiente, porque cada construção tecnológica é fragilíssima e exposta à deterioração e contradições que, muitas vezes, mas nem sempre, fazem os efeitos da modernização darem um passo atrás e não um passo à frente no caminho da existência. Além disso, nenhuma realidade humana é efetivamente auto-suficiente, mas vive, respira e floresce somente em uma rede de relações positivas com o outro por si, e com os outros. Quanto mais se persegue a ilusão da auto-suficiência, mais as conseqüências são autodestrutivas para o ser humano. Isso é válido também com respeito à relação entre o ser humano e o possível sentido da sua vida, o qual pede uma plena participação da pessoa e não o absurdo isolamento no falso caminho da auto-suficiência.

IHU On-Line - Quais são os caminhos que estamos seguindo para buscar novos modelos de existência?

Roberto Mancini -
Fora do caminho economicista e tecnológico para renovar ilusoriamente a condição humana, o caminho mais fecundo e promissor me parece, ao invés, o da ampliação dos espaços da existência comunitária, no sentido de formas abertas de vida, em que cada um aprende a pensar segundo a relação, mais do que segundo si próprio, sentindo-se co-responsável pelo destino de todos. O diálogo intercultural, inter-religioso e interfilosófico tem a função de favorecer esta retomada da "antropologia" viva, compreendida não tanto como uma disciplina do saber, como o caminho histórico de emersão e de liberação da completa realidade humana na vida do mundo.

IHU On-Line - Quais são as conseqüências do pós-humanismo? Pode este levar a um redutivismo? Como podemos garantir que a humanidade não perca o umanum e a sua liberdade?

Roberto Mancini -
Como os humanismos que conhecemos foram parciais e ambivalentes, o pós-humanismo não representa por si só um caminho mais confiável e liberalizante, pelas razões que acenei. Eventuais "garantias" de tutela do humano e da liberdade devem ser procuradas principalmente na disponibilidade para tomar conta dos efeitos do mal, para minimizá-los e superá-los, na ação daqueles que fazem parte das forças de cura da vida (educação, compaixão, misericórdia, responsabilidade generativa, perdão, esperança inteligência, generosidade, coragem, integridade, brandura), na escolha de partilhar a vida com os últimos da sociedade, na praxe de restituição dos direitos humanos e de assunção em primeira pessoa dos deveres humanos.

IHU On-Line - Qual será o espaço que outros animais terão no mundo pós-humano? O homem continuará a ser o centro das questões?

Roberto Mancini
- Mais do que seguir em um movimento linear que se esforça por ir para adiante, mas permanecendo sempre no mesmo trilho – o da lógica do poder – a humanidade deve procurar a harmonização de todas as estruturas relacionais da vida. Logo, deve procurar também uma inédita aliança com o mundo natural e com as outras criaturas vivas, reconhecendo os seus direitos e praticando a universalidade como hospitalidade, ou seja, como a verdadeira justiça social, econômica, política, ecológica. Mas para alcançar esta consciência ética, antropológica, cósmica e metafísica, é necessário aprender a ver, libertar o coração, a razão e a alma do delírio da onipotência, assim como da angústia da morte que o inspira. Sabemos, também, que esse despertar já começou e que quem quiser participar desse percurso de liberação não está sozinho.

 

 

 

 

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