Edição 418 | 13 Mai 2013

Os problemas de Kierkegaard ainda são nossos problemas

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Márcia Junges e Gabriel Ferreira | Tradução de Luís Marcos Sander

A influência do pensador dinamarquês intensificou o senso de ironia e ceticismo que já floresciam em sua pátria, adverte Bruce Kirmmse. As questões sobre as quais o pensador refletia continuam atuais

Uma obra entrelaçada com sua vida e sua época. Assim é preciso compreender o legado filosófico de Kierkegaard, afirma o filósofo Bruce Kirmmse, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Ele acentua que a os escritos desse pensador aprofundaram atitudes já existentes na Dinamarca: “o seu senso de ironia e ceticismo em relação a reivindicações de autoridade, tanto autoridade religiosa/espiritual quanto autoridade política/cultural. Creio que as concepções filosóficas e religiosas de Kierkegaard – e seu exemplo pessoal – tiveram alguma influência sobre muitas das pessoas que resistiram à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial. E creio que ele continua sendo uma inspiração para as pessoas que abalam a pompa, falsa santidade e hipocrisia dos poderes estabelecidos”. Kirmmse constata que a problemática examinada nas obras kierkegaardianas não desapareceu: eles são nossos problemas, garante. A importância da Howard & Edna Hong Kierkegaard Library, no Saint Olaf College, em Minnesota, é outro tema abordado por Kirmmse.

Bruce Kirmmse é editor geral e tradutor dos Diários e anotações de Kierkegaard. É professor emérito da Connecticut College, Estados Unidos. Estudou na Universidade Wesleyan, e cursou mestrado e Ph.D na Universidade da Califórnia (Berkeley). É especialista em história intelectual da Europa Moderna e na filosofia e teologia de Kierkegaard. É autor de Kierkegaard in Golden Age Denmark (Hardcover, Indiana University Press, 1990).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A vida de Kierkegaard tem sido uma chave importante de compreensão de sua obra. Em que medida essa é uma aproximação plausível e válida?

Bruce Kirmmse – Como a vida de qualquer pessoa, a de Kierkegaard deve ser considerada em relação à sua época. A época de Kierkegaard foi um período de transição rápida e fundamental de uma era para outra muito diferente. A Dinamarca que Kierkegaard herdou era uma sociedade pequena, de relações face a face, caracterizada pela autoridade visível de elites hereditárias, por um clero sancionado pelo Estado e um monarca absoluto. A imensa maioria da população era formada por camponeses que tinha pouco ou nenhum controle sobre sua terra e absolutamente nenhum controle sobre assuntos do Estado ou da igreja. Os meios de comunicação e transporte eram lentos: em terra, isso significava que as pessoas dependiam de cavalos ou tinham de andar a pé; no mar, as viagens e o transporte dependiam das vicissitudes do vento. Durante a vida de Kierkegaard (1813-1855) tudo isso mudou. O telégrafo tornou a divulgação de informações (ou desinformações) instantânea. Navios a vapor e estradas de ferro revolucionaram e aceleraram muito o transporte de mercadorias e pessoas. E, mais drasticamente, os acontecimentos políticos das décadas de 1830 e 1840, culminando na Revolução de Março de 1848 e na Constituição dinamarquesa de junho de 1849, transformaram totalmente a paisagem política e eclesiástica. A Dinamarca passou, de repente, de uma monarquia absoluta para um Estado constitucional e democrático com o mais amplo direito de voto do mundo: todo chefe de família tinha direito de votar. O Estado dinamarquês pertencia ao povo dinamarquês. 

Entrelaçamento

De modo semelhante, numa estranha solução conciliatória, decidiu-se que a antiga igreja estatal estabelecida, que tinha sido um braço administrativo da antiga monarquia absoluta, continuaria sendo uma igreja estabelecida, mas seria, daí em diante, a “igreja do povo dinamarquês”, um desdobramento que Kierkegaard considerou particularmente ominoso. Kierkegaard, além de filósofo, era também (e primordialmente) um pensado e autor religioso, e grande parte do que ele escreveu se baseava em suas observações dos desdobramentos que estavam ocorrendo em sua época, muitos dos quais, como observei, deram-lhe razões especiais para se preocupar. Assim, as reflexões de Kierkegaard sobre sua própria vida também eram inevitavelmente reflexões sobre sua época e sobre as mudanças radicais que estavam acontecendo – mudanças que, aliás, persistem até o presente –, de modo que um estudo da obra de Kierkegaard é inescapavelmente também um estudo de sua vida e sua época. Isso não estava tão claro para mim quando comecei a trabalhar em Kierkegaard décadas atrás, mas, ao longo dos últimos 10 ou 15 anos, meu trabalho como editor geral e tradutor dos Diários e anotações de Kierkegaard me ensinou o quanto a obra de Kierkegaard está entrelaçada com sua vida e sua época.

IHU On-Line – O que foi a Era de Ouro Dinamarquesa?

Bruce Kirmmse – O termo “Era de Ouro dinamarquesa” designa um fenômeno cultural, a saber, uma notável expansão da produtividade artística, científica, literária, filosófica e teológica no espaço de um período bastante breve de tempo, mais ou menos de 1800 a 1850, e, em grande parte, dentro dos limites de uma única cidade, Copenhague. Para avaliar a assombrosa concentração de talento nesse lugar e tempo relativamente compacto, consideremos o seguinte: provavelmente há só cinco dinamarqueses cujos nomes são amplamente conhecidos fora da Dinamarca: os escritores Hans Christian Andersen , Søren Kierkegaard e Karen Blixen  e os físicos Hans Christian Ørsted  e Niels Bohr . Três deles – Andersen, Kierkegaard e Ørsted – atuaram durante a Era de Ouro dinamarquesa e conheciam uns aos outros.

IHU On-Line – Como percebe a influência da filosofia desse pensador na cultura dinamarquesa?

Bruce Kirmmse – Como eu mesmo não sou dinamarquês (aprendi a língua quando adulto a fim de ler Kierkegaard), não posso dar uma resposta autoritativa a essa pergunta. Mas passei uma parte considerável da minha vida adulta na Dinamarca e acho que conheço esse país e sua cultura razoavelmente bem, por isso vou dar minha opinião. Creio que a influência de Kierkegaard intensificou algo que já existia entre os dinamarqueses: o seu senso de ironia e ceticismo em relação a reivindicações de autoridade, tanto autoridade religiosa/espiritual quanto autoridade política/cultural. Creio que as concepções filosóficas e religiosas de Kierkegaard – e seu exemplo pessoal – tiveram alguma influência sobre muitas das pessoas que resistiram à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial. E creio que ele continua sendo uma inspiração para as pessoas que abalam a pompa, falsa santidade e hipocrisia dos poderes estabelecidos.

IHU On-Line – Os Estados Unidos têm um dos maiores centros de estudos sobre a obra de Kierkegaard, a Howard & Edna Hong Kierkegaard Library, no Saint Olaf College, em Minnesota. Como se deu o processo de formação dessa biblioteca e qual é a sua importância para a pesquisa de Kierkegaard?

Bruce Kirmmse – Houve várias “ondas” de recepção de Kierkegaard nos EUA. A primeira manifestação significativa de interesse foi nas décadas de 1950 e 1960, na esteira da crise da Segunda Guerra Mundial e do início da Guerra Fria. A próxima grande obsessão com Kierkegaard esteve vinculada com o desconstrucionismo dos anos 1980 e 1990. Mas, subjacente a todas essas mudanças de moda, tem havido um interesse contínuo mais sério – e, creio eu, um interesse sempre crescente – na obra de Kierkegaard. Isso resultou de uma constante melhoria no acesso a seus textos e de um conhecimento crescente de sua vida e seu contexto. Afinal de contas, os problemas com os quais Kierkegaard se confrontou não desapareceram: eles são nossos problemas.

IHU On-Line – Passados 200 anos do nascimento de Kierkegaard, qual é a importância do seu legado filosófico?

Bruce Kirmmse – O estabelecimento da Hong Kierkegaard Library na Saint Olaf College, em Northfield, Minnesota, foi, em grande parte, obra de um só homem, Howard V. Hong, e de sua esposa Edna H. Hong . Não foi por acidente que ela foi estabelecida em Minnesota: Minnesota foi o destino de muitos imigrantes escandinavos no Novo Mundo, e a presença de acadêmicos que conseguiam ler línguas escandinavas e tinham interesse pela cultura escandinava tornou possível que um estudante como Hong fosse exposto a Kierkegaard numa época crítica. E agora essa biblioteca se tornou um dos dois centros mundiais para o estudo aprofundado de Kierkegaard (o outro é, naturalmente, Copenhague). A gama de materiais primários e secundários disponíveis na Hong Kierkegaard Library é surpreendente. Para muitos tipos de pesquisa sobre Kierkegaard, trabalhar na Hong Library é efetivamente mais fácil e mais conveniente do que trabalhar em Copenhague, mas, se a pesquisa de uma pessoa a leva mais longe, ramificando-se pelas complexidades da vida intelectual, cultural e política dinamarquesa em que Kierkegaard estava inserido, é, naturalmente, essencial ter condições de trabalhar em Copenhague (e, é claro, de ler dinamarquês).

IHU On-Line – Qual é a importância de seu pensamento para a teologia, especificamente?

Bruce Kirmmse – Se eu tivesse de resumi-la brevemente: introspecção radical associada com ceticismo radical em relação às constelações de poder cultural, político e religioso dominantes. Eu mesmo não sou teólogo; por isso é arriscado especular sobre isso em público. Mas, do meu ponto de vista, seria a insistência de Kierkegaard na importância do como em relação ao o quê – e, por conseguinte, seu foco, daí decorrente, na apropriação pessoal, o que significa um foco em levar a si mesmo a sério.

 

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