Edição 418 | 13 Mai 2013

A crítica de Kierkegaard ao cristianismo: uma experiência humanamente impossível?

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Márcia Junges e Gabriel Ferreira

Lutero tem um “uso paradigmático” no pensamento do filósofo dinamarquês, afirma Márcio Gimenes de Paula. Agir socrático kierkegaardiano colocou a cristandade “contra a parede”

Antes de tudo, a polêmica de Kierkegaard com a Igreja é “uma polêmica contra a cultura”, adverte Márcio Gimenes de Paula na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, Nietzsche e o pensador dinamarquês “chegam a um lugar onde o máximo que conseguem é apontar que a experiência do cristianismo é humanamente impossível. Não será por isso que os teólogos todos terminam por se transformarem em professores de ética?”, provoca. Ele destaca, ainda, o “uso paradigmático” de Lutero nos escritos kierkegaardianos e que “ao agir socraticamente e colocar a cristandade contra a parede e cobrar que, de suas premissas, ela não podia nunca chegar até as conclusões que chegava, o pensador da Dinamarca parece chegar ao fundamento do que queria criticar mas, ao mesmo tempo, o modelo de cristianismo que parece submergir de sua proposta seria algo possível de ser realizado”.

Marcio Gimenes de Paula é graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Independente. Cursou graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp com a tese A crítica de Kierkegaard à cristandade: o indivíduo e a comunidade. Leciona no Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília – UnB e é membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (Sobreski). É autor de, entre outros, Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura (São Paulo: Annablume Editora. Comunicação, 2001), Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard (São Paulo: Paulus, 2009) e Subjetividade e objetividade em Kierkegaard (São Paulo: Annablume, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os traços fundamentais da crítica de Kierkegaard à Cristandade?

Marcio Gimenes de Paula – Em geral, quando se avalia a polêmica de Kierkegaard contra a Igreja, num primeiro exame, pode-se cair no seguinte equívoco: estamos tratando de uma polêmica teológica, eclesiástica e completamente paroquial dinamarquesa. Penso que nada pode ser mais enganoso. A rigor, a polêmica com a Igreja é, antes de tudo, uma polêmica contra a cultura. Ora, tal constatação aumenta significativamente o ocorrido. Saímos da imagem de um Kierkegaard profeta e reformador para um crítico da cultura. Ele se insere, desse modo, no clássico contexto dos pensadores pós-hegelianos do século XIX. Ocorre um debate de teses, uma discussão riquíssima sobre religião e cultura que, a rigor, começa no cristianismo do século II e, até os dias atuais, é sempre de uma fecundidade inigualável. Há aqui, portanto, debate sobre ética, sobre política, ainda que com o recorte e com a leitura tão específica kierkegaardiana. Desse modo, ao agir socraticamente e colocar a cristandade contra a parede e cobrar que, de suas premissas, ela não podia nunca chegar até as conclusões que chegava, o pensador da Dinamarca parece chegar ao fundamento do que queria criticar mas, ao mesmo tempo, o modelo de cristianismo que parece submergir de sua proposta seria algo possível de ser realizado. Esse é uma pergunta muito instigante e, para mim, sem resposta até hoje.

IHU On-Line – Ainda dentro desse escopo, quais são as contribuições de Feuerbach e Nietzsche  para pensar o cristianismo na modernidade?

Marcio Gimenes de Paula – Acho que a contribuição de Feuerbach é, a despeito de todas as críticas que pode sofrer hoje, fundamental. Infelizmente, no Brasil, ainda o associamos mais como alguém importante para a crítica da religião em Marx do que a uma estrela com seu brilho próprio. Tal panorama, felizmente, tem mudado com estudos mais comprometidos com a integralidade do pensamento do autor. Quero apenas dar um exemplo da importância de Feuerbach para a crítica do cristianismo. Karl Barth, teólogo protestante do século XX, será um dos seus mais ávidos leitores e, muito do que ele vai articular como crítica do cristianismo, recebe a influência feuerbachiana. Poderíamos ainda falar de Freud  e de suas teses acerca do cristianismo em O futuro de uma ilusão, palavra típica do léxico feuerbachiano. O próprio Feuerbach previu que aquilo que na sua época se chamava de ateísmo no dia seguinte seria chamado de crítica da religião. Acho isso muito significativo. 

Quanto a Nietzsche, penso que é outro dos grandes críticos do cristianismo na modernidade. Para ficar em só um exemplo O Anticristo é uma leitura obrigatória para entender o cristianismo alemão. Penso que ele é tão obrigatório como ler os textos de Lutero . Aquele aforismo que aponta que o único cristão é aquele que morreu na cruz me interessa especialmente. Julgo que ele pode ser lido lado a lado com a crítica do cristianismo que Kierkegaard faz no Instante. Eu arrisco dizer que ambos chegam a um lugar onde o máximo que conseguem é apontar que a experiência do cristianismo é humanamente impossível. Não será por isso que os teólogos todos terminam por se transformarem em professores de ética? Deixo a pergunta para provocar.

IHU On-Line – Que semelhanças percebe entre a crítica de Nietzsche a Lutero e aquela feita por Kierkegaard a autoridades da igreja dinamarquesa como Mynster e Martensen?

Marcio Gimenes de Paula – Nietzsche, filho e neto de pastores protestantes, sempre apontou que o sangue da filosofia alemã era, na verdade, o mesmo sangue dos teólogos e, desde o Seminário de Tübingen, onde Hegel e tantos outros estudaram, era assim. O fato é que, depois de Nietzsche, não há mais espaço para a ingenuidade moral, se é que antes havia. Desse modo, o cristianismo toma um choque de água fria e vai viver no eterno conflito com a modernidade. Eu acho que aquela passagem d’O Anticristo onde Lutero é tomado como um monge ressentido que, indo para Roma, se escandaliza com o luxo e a ciência da Renascença e volta para fazer uma Reforma, especialmente significativa. Ela fornece o tom de que, para Nietzsche, o cristianismo moderno é, no fundo, uma tentativa de superação do próprio cristianismo e, por isso mesmo, menos autêntico que o cristianismo dos primórdios, mas, ao mesmo tempo, nenhuma Reforma como a de Lutero é possível. Esse é o grande choque. Acho que aqui há um encontro com Kierkegaard. O dinamarquês também critica agudamente a cristandade da sua época e até vai tentar abordar o tipicamente cristão. Contudo, a pergunta permanece: não será que o cristianismo ficou só como uma utopia?

IHU On-Line – Em que medida a filosofia de Kierkegaard é influenciada pelo pensamento de Lutero?

Marcio Gimenes de Paula – Seria um pouco comum dizer que ambos foram formados na tradição protestante, mas isso não deixa de ser verdadeiro. Lutero, tal como algumas outras figuras, tem um uso paradigmático no pensamento de Kierkegaard. Ora podemos enxergá-lo como aliado das teses e ora como o ponto principal da polêmica. Eu tendo a pensar que boa parte da crítica kierkegaardiana acerca da subjetividade e de como entender a razão pode ser lida também numa chave luterana. Em outras palavras, tal como Lutero criticou a razão escolástica, mas não jogou fora a razão pois serviu-se dela para produzir os seus escritos, Kierkegaard também parece proceder. Uma experiência instigante também para perceber essa curiosa influência seria ler, com todo o cuidado, a obra O conceito de angústia ao lado das teses de Lutero sobre A liberdade do cristão. Outra ótima experiência: ler a polêmica final de Kierkegaard contra a Igreja como uma síntese das 95 teses de Lutero numa só, isto é, “o cristianismo morreu”. Eu considero tudo isso muito fascinante.

IHU On-Line – Quais são as características do tratamento kierkegaardiano dos problemas entre sujeito e objeto? Quais são as contribuições de Kierkegaard para o estatuto posterior desses problemas?

Marcio Gimenes de Paula – Essa questão é muito complexa. Penso que uma boa aproximação para ela é observar a teses do Postscriptum, onde Kierkegaard trata da subjetividade, do pensador subjetivo e etc. O tema do sujeito, desde Descartes, parece ter sido compreendido apenas como sujeito de pensamento e, portanto, sem concretude. Desse modo, quando falo de um sujeito nessa perspectiva falo de um fantasma. O cogito de um sujeito assim é uma fantasmagoria. Kierkegaard tentará articular exatamente a ênfase na existência, isto é, existir é mais importante do que falar abstratamente do conceito de realidade, mesmo que seja numa lógica tão bem articulada com a de Hegel, por exemplo. Agora, do ponto de vista do objeto, esse perde a sua rigidez. Em outras palavras, não há mais agora um sujeito fantasma querendo alcançar a verdade que mora no objeto, antes existe um sujeito concreto que, por ser subjetivo, pode se encontrar com a verdade na sua interioridade e o que deseja agora é reapropriar-se do objeto. A verdade, portanto, não mora mais no objeto e é nesse sentido que surge a afirmação de que a subjetividade é a verdade, ela é uma experiência apaixonada, o pensador tem existência e pathos. A partir daqui se estabelece uma complicada discussão ontológica, que certamente mereceria maiores explicações. Apenas para um exemplo: Heidegger no Ser e Tempo e Sartre no Ser e o Nada serão profundamente tributários dessa compreensão kierkegaardiana.

Leia mais...

Márcio Gimenes de Paula já concedeu outras entrevistas à revista IHU On-Line. Confira.

* O indivíduo como ponto inicial na filosofia kierkegaardiana. Edição 314, de 09-11-2009, disponível em http://bit.ly/18Yxssj 

* Lutero, pai da modernidade, visto por Nietzsche. Edição 280, de 03-11-2008, disponível em http://bit.ly/18Yxssj 

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