Edição 417 | 06 Mai 2013

A autonomia em lugar da eudaimonia: a novidade da filosofia moral kantiana

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Márcia Junges

Substituindo o antigo princípio material aristotélico, o filósofo de Könnigsberg deu um novo significado ao termo autonomia, explica Rejane Schaefer Kalsing. Elaborar uma filosofia moral pura, depurada de todo o empírico, constituía o empreendimento kantiano
Kalsing: “Parece que a recepção de Hegel não condiz exatamente com o que Kant quis dizer”

 

De acordo com a filósofa Rejane Schaefer Kalsing, o intuito de Kant com seu empreendimento moral “foi o de elaborar filosofia moral pura, ou seja, completamente depurada de todo o empírico”. E acrescenta: “Kant deu um novo significado ao termo autonomia, pois originalmente este se empregava no sentido político para significar a ‘independência ou a autodeterminação de um Estado’”. Uma das grandes novidades desse pensador foi “ter desenvolvido uma filosofia moral fundada no princípio formal da autonomia, em substituição ao antigo princípio material da eudaimonia”. Assim, a autonomia designa uma “universal autodeterminação racional”. Conforme Rejane, “para Kant, a autonomia, enquanto um agir categórico, não motivado por resultados, sempre supera – ou deve sempre superar – a heteronomia”.

Rejane Schaefer Kalsing é licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, mestre em Filosofia pela Unisinos com a dissertação A dimensão da socialidade na Ética kantiana e sua recepção na obra Princípios da Filosofia do Direito de Hegel e doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC com a tese Sociabilidade legal: uma ligação entre sociabilidade e direito em Kant. É professora no Instituto Federal Catarinense, em Santa Rosa do Sul, Santa Catarina.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Para Kant, a autonomia sempre supera a heteronomia enquanto um agir categórico, não motivado por resultados. Como podemos compreender essas concepções à luz do seu pensamento?

Rejane Schaefer Kalsing – Para tentar responder a esta questão, parece pertinente começar por introduzir brevemente algumas concepções de Kant e, por outro lado, refletir sobre qual pode ter sido a intenção deste pensador com a ética ou filosofia moral para, daí então, procurar compreender tais concepções à luz do seu pensamento. Nesse sentido, é preciso ter em mente, em primeiro lugar, a sua distinção entre filosofia empírica e filosofia pura, a saber, a filosofia que se baseia em princípios da experiência e a que se baseia em princípios a priori, respectivamente. Isso vale, por conseguinte, também para a ética. Assim, ela é dividida em duas partes. A parte empírica é denominada de Antropologia prática e a pura é a Moral propriamente dita. Tal coisa é afirmada no Prefácio de uma de suas obras capitais sobre filosofia moral, a saber, a Fundamentação da metafísica dos costumes  (FMC), obra que tomaremos por base para responder às questões da presente entrevista. Na continuidade desse raciocínio, Kant pergunta se não “é da mais extrema necessidade elaborar um dia uma pura filosofia moral que seja completamente depurada de tudo o que possa ser somente empírico” (KANT, 1997, p. 15). É que, a seu ver, para uma lei ter valor moral, ou seja, para uma lei valer como fundamento de uma obrigação, ela tem de ter em si necessidade absoluta e, dessa forma, a filosofia moral tem de ser pura, livre de todo o empírico, pois só assim poderia ter necessidade absoluta. Do contrário, seria uma necessidade relativa porque referente ao ser humano no mundo, o que, para ele, não cabe para a filosofia moral. Para tanto, buscará o princípio da obrigação não na natureza do ser humano ou nas circunstâncias do mundo em que este se encontra, mas sim de forma exclusiva nos conceitos da razão pura a priori (KANT, 1997, p. 15-16).

Fundamentação a priori

Por aí já se pode ter uma ideia do intuito de Kant com seu empreendimento moral que, inicialmente, por assim dizer, foi o de elaborar filosofia moral pura, ou seja, completamente depurada de todo o empírico. Em segundo lugar, tem de se ter presente também que, apesar de a filosofia moral para Kant não poder conter nada que diga respeito às circunstâncias do ser humano no mundo, a sua aplicação, porém, se dirige a ele. Por suas palavras, “toda a Filosofia moral assenta inteiramente na sua parte pura, e, aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja do conhecimento do homem (Antropologia), mas fornece-lhe como ser racional leis a priori” (KANT, 1997, p. 16). Portanto, para Kant a filosofia moral não pode se assentar no ser humano que aqui vive, pois, dessa forma, as suas leis não teriam em si necessidade absoluta, requisito, digamos assim, para que elas possam ter valor moral e, assim, fundamentada a priori nos conceitos da razão pura, pode fornecer esses princípios práticos aos seres humanos. A moral não se fundamenta nestes, mas se aplica a estes. Dirige-se a eles, porém sem estar assentada neles para poder ter necessidade absoluta e assim valer para qualquer ser racional, deste ou de outro planeta, como o próprio Kant diz. 

Formulações do imperativo categórico

Dito isso, pode-se partir para outro aspecto fundamental da filosofia moral kantiana e que diz respeito ao princípio supremo da moralidade, o qual Kant objetivou procurar e estabelecer na FMC. Ele será denominado pelo filósofo de imperativo categórico. Como a razão não determina de forma infalível a nossa vontade, um princípio prático representado por esta como obrigante chama-se mandamento e a fórmula deste denomina-se imperativo (KANT, 1997, p. 48). Estes ordenam de forma hipotética ou categórica. 

Quando uma ação é boa enquanto meio para qualquer outra coisa que se quer, o imperativo é hipotético. No entanto, quando uma ação é boa em si, sem relação com qualquer outra finalidade, então o imperativo é categórico. Em outras palavras, este declara que a ação é necessária por si, pois ela não está condicionada a alguma intenção a atingir, ele não se relaciona com a matéria da ação nem com o que dela deve resultar e sim com a forma. Só esse imperativo, portanto, é que pode ser chamado de imperativo da moralidade, pois só ele tem uma necessidade incondicionada (KANT, 1997, p. 52-53). O imperativo categórico, porém, é apenas um único, segundo as palavras de Kant, e que é este: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1997, p. 59) (a denominada fórmula da lei universal ). 

Deste derivam outras formulações, a saber, “age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (KANT, 1997, p. 59), a fórmula da lei da natureza; “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (ibidem, p. 69), a fórmula do fim em si mesmo; age “de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal” (ibidem, p. 76), a fórmula da autonomia; age “como se fosse sempre, pelas suas máximas, um membro legislador no reino universal dos fins” (ibidem, p. 82), a fórmula do reino dos fins. 

Princípio da autonomia

Tentei apresentar brevemente algumas concepções da filosofia kantiana para, a partir daí, procurar analisar como “para Kant, a autonomia, enquanto um agir categórico, não motivado por resultados, sempre supera – ou pode superar – a heteronomia”, pois, sem apresentar aquelas concepções entendo que não se “pode compreender estas à luz do seu pensamento”. Partirei agora diretamente para as concepções de autonomia e de heteronomia. 

O princípio da autonomia, já referido acima, é a terceira formulação do imperativo categórico. Segundo este princípio todos os princípios do agir que não possam subsistir com a própria legislação universal da vontade são rejeitados. E esta não está simplesmente submetida à lei, mas submetida de tal modo que tem de ser considerada também como legisladora ela mesma – e somente por isso submetida à lei, porque aí ela pode se ver como autora dela própria (KANT, 1997, p. 72). Assim, se se olhar para trás, sobre todos os esforços até agora empreendidos para descobrir o princípio da moralidade, não se deve se admirar ao ver que todos tinham de necessariamente falhar, pensa Kant. Pois se via o ser humano sujeito a leis, mas não se via que ele estava sujeito só à sua própria legislação, embora esta deva ser universal, e que ele estava somente obrigado a agir conforme a sua própria vontade, a qual tem de, ao mesmo tempo, se considerar como legisladora universal. É que, se concebermos o ser humano simplesmente submetido à lei, mas não tendo esta emanado da sua vontade, ela deveria conter um interesse para estimulá-lo ou constrangê-lo a segui-la. 

Sendo assim, resultaria daí um imperativo condicionado e, como tal, não poderia servir como mandamento moral. Portanto, esse princípio, que Kant denominará de princípio da autonomia, opõe-se a qualquer outro que imputará à heteronomia (KANT, 1997, p. 74-75). Autonomia designa então uma universal autodeterminação racional (ROHDEN , 1981, p. 154 e ROHDEN, 2008, p. 4), enquanto heteronomia, ao contrário, designa uma determinação estranha da vontade. E uma determinação estranha, a qual, justamente por isso, envolve algum interesse para executá-la, conforme há pouco explicado, não pode ser considerada como mandamento moral, segundo Kant. Só a determinação que parte do próprio indivíduo, do próprio sujeito – determinação, porém, racional e universal – é que pode ser considerada como princípio supremo do dever. Somente um princípio que não esteja ligado a algum interesse ou condicionado a alguma intenção a atingir ou vinculado a algum resultado a chegar, mas relacionado apenas com a forma, isto é, com a universalidade, numa palavra, somente um princípio que não esteja embasado em qualquer condição e, que, em função disso, pode ser tido como incondicional, é que pode ser considerado, portanto, o imperativo da moralidade.

Superação da heteronomia

Sendo assim, pode-se concordar que, para Kant, a autonomia, enquanto um agir categórico, não motivado por resultados, sempre supera – ou deve sempre superar – a heteronomia. Contudo, é mais adequado falar de autonomia em Kant enquanto um princípio prático, ou seja, um princípio para o agir, e não um agir propriamente. E, assim, como princípio prático, é a autonomia um imperativo categórico, o que significa dizer que é um princípio incondicional, independente de quaisquer condições para ser realizado, inclusive resultados. Sendo uma autodeterminação racional e universal, sempre supera, ou, pelo menos, deve superar, a heteronomia, ou seja, uma determinação estranha da vontade. Enquanto um princípio que brota do próprio indivíduo sempre supera outro que lhe seja estranho, ou que, ao menos, possa ser tomado dessa forma por não conter em si a racionalidade e a universalidade que a legislação prática requer. 

IHU On-Line – Como se apresenta a socialidade nas fórmulas da autonomia e do reino dos fins de Kant?

Rejane Schaefer Kalsing – Uma das diferenças entre socialidade e sociabilidade é que a primeira designa a dimensão social de algo, enquanto a outra significa a capacidade para a sociedade; o que pode parecer não ser uma grande diferença. Tentarei deixar mais clara essa distinção. Eu quis acentuar, mostrar em minha dissertação, por exemplo, a dimensão social contida na ética kantiana, não me referindo à capacidade para a sociedade que os seres humanos possam ter. A dimensão social dessa ética é um aspecto muitas vezes não percebido, e, em função disso, tido como inexistente, o que possibilita interpretá-la como uma ética solipsista. Assim, uma das críticas que a ética kantiana recebe é a de se circunscrever ao indivíduo, de limitar-se a ele, de exaltar um indivíduo centrado em si mesmo, que desconsidera os demais indivíduos em sua ação, individualista, portanto. Coisa que, se lermos com mais atenção, veremos que não é bem assim. 

A sociabilidade, por sua vez, ou seja, a capacidade para a sociedade que os seres humanos podem ter, literalmente, é um aspecto em que me detive na tese. Aí sim procurei ver em que sentido Kant explora em suas obras essa capacidade para a sociedade na espécie humana. Ocupei-me, em especial, de algumas obras de sua filosofia da história, filosofia do direito e estética, nas quais o filósofo aborda o conceito de sociabilidade, procurando defender a tese de que sociabilidade legal é um conceito que liga os conceitos de direito e de sociabilidade em Kant, numa palavra, que o sentido do conceito sociabilidade usado por ele nas obras analisadas é o sentido da sociabilidade legal. Procurarei agora explicitar como se apresenta a socialidade nas fórmulas da autonomia e do reino dos fins de Kant, aspecto abordado em minha dissertação, como há pouco referi. A fórmula da autonomia preceitua que se aja de maneira que a vontade, ou seja, a razão prática, para Kant, através de seu princípio subjetivo do agir, possa se considerar como legisladora universal. Autonomia significa, portanto, uma universal autodeterminação racional, como já expus na questão anterior. É, desse modo, um princípio que nasce do próprio indivíduo, mais propriamente da sua razão, e que deve poder ser universalizado. Podemos falar em socialidade ou dimensão social nessa fórmula?

Sociabilidade e autonomia

Ao propor que a vontade proceda, através de seu princípio subjetivo do agir, de modo a poder se conceber como legisladora universal, Kant está tomando em consideração a universalidade das vontades, não só a universalidade do princípio subjetivo do agir em si. A universalidade do princípio é exigida no imperativo categórico, a denominada fórmula da lei universal, e depois na primeira formulação do mesmo, a fórmula da lei da natureza, já vistas na questão anterior. A universalidade das vontades – ou a exigência de se levar em consideração a universalidade das vontades – é, então, o acréscimo em relação às fórmulas anteriores. No princípio da autonomia, a vontade é apresentada não como uma vontade que legisla sozinha, de forma isolada, mas sim como uma vontade que legisla universalmente, quer dizer, em conjunto com as demais vontades. Em outras palavras, a perspectiva da qual uma vontade deve partir para se dar leis é a perspectiva de todas as vontades tomadas universalmente. Temos de nos propor regras para a ação desde um ponto de vista universal, ou seja, o de todos os legisladores, que são os seres racionais e, por conseguinte, os seres humanos . Esse parece ser o enfoque de Kant no princípio da autonomia: não apenas agir de forma que o princípio desta ação possa ser universalizado, mas, além disso, agir como se fosse um legislador universal. Se for assim, esse princípio possui, portanto, uma dimensão social, a socialidade está presente aí. Pois, além de exigir a universalidade do princípio subjetivo do agir – exigência que perpassa todas as formulações do imperativo categórico, pois este é um só, como já expus na questão anterior –, o princípio da autonomia exige também a consideração da universalidade das vontades, ou seja, devem-se levar também em consideração todos os demais, os quais também são legisladores. Para mim, é dessa forma que se apresenta a socialidade na fórmula da autonomia. 

Perspectivas simultâneas

Passemos agora para a fórmula do reino dos fins. Segundo Kant, na FMC, o conceito de vontade legisladora universal leva a outro, o de um reino dos fins, que é “uma ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns” (KANT, 1997, p. 76), ou seja, uma união que se dá através dos princípios da ação de seres que são fins em si mesmos. A fórmula reza propriamente age “como se fosse sempre, pelas suas máximas, um membro legislador no reino universal dos fins” (ibidem, p. 82). A respeito desse princípio, Thomas Pogge, em seu artigo The Categorical Imperative, afirma que “todas as máximas, para poderem ser válidas, devem ligar-se ou ajustar-se simultaneamente na direção de um possível reino dos fins” (2000, p. 186), ou seja, a possibilidade da validade das máximas estaria na ligação entre elas rumo a um possível reino dos fins. O que apresenta, a seu ver, a exigência que “minhas máximas precisam ser conjuntamente universalizáveis” (idem). Dessa forma, “o imperativo categórico amplia minha consciência pela transformação de uma decisão de implicação marginal na direção de algo que concerne ao mundo como um todo” (ibidem, p. 190). Ou seja, as decisões individuais passam a ter uma concernência universal e não somente individual, ao menos a consciência é ampliada porque se transforma uma decisão que tem uma implicação particular em algo que diz respeito ao todo. Seguindo um pouco o texto de Kant, ele assevera que a dignidade de todo o ser racional e, por conseguinte, de todo o ser humano, a qual significa não ter ele um valor relativo, “tem como consequência o haver de tomar sempre as suas máximas do ponto de vista de si mesmo e ao mesmo tempo do ponto de vista de todos os outros seres racionais como legisladores” (KANT, 1997, p. 82). 

Aí está dito com todas as letras que se devem tomar os princípios da ação sempre das perspectivas individual e universal simultaneamente. Ou seja, não basta considerar apenas a própria perspectiva no agir, é preciso ao mesmo tempo considerar a perspectiva de todos os outros seres racionais como legisladores, no caso, de todos os outros seres humanos. Isso é tomar em consideração o aspecto social.

IHU On-Line – Qual é a recepção da ética kantiana na obra Princípios da Filosofia do Direito de Hegel? 

Rejane Schaefer Kalsing – Hegel, como um dos filósofos imediatamente posteriores a Kant, fez, como era de se esperar, muitas críticas a seu predecessor. Grosso modo, pode-se dizer que a sua recepção é uma recepção crítica. No capítulo da dissertação em que analiso a recepção da ética kantiana em sua obra Princípios da Filosofia do Direito, não analisei todas essas críticas, mas focalizei somente as passagens em que critica, de forma manifesta ou não, a questão da socialidade, objeto de estudo da dissertação.

Passando diretamente para a introdução da referida obra, Hegel nela afirma que a vontade contém “a) a infinitude sem limites da abstração absoluta ou da universalidade” (1998, p. 101) e “b) o momento absoluto da finitude ou da particularização do eu” (ibidem, p. 102). No entanto, “do mesmo modo que o particular em geral está contido no universal, este segundo momento está já contido no primeiro” (idem). Assim, “c) a vontade é a unidade desses dois momentos; – ela é a particularidade refletida em si e reconduzida à universalidade – singularidade [...]” (ibidem, p. 103). Dito isso, declara que Kant e Fichte distinguiram esses dois momentos no sentido de separá-los, porém não se detém na exposição de Kant, e sim na de Fichte (HEGEL, 1998, p. 103), infelizmente. Ora, o que procurei mostrar foi justamente o contrário na questão anterior. Relembrando, por exemplo, a respeito da fórmula do reino dos fins, que a consequência da dignidade do ser humano é que ele tem de considerar sempre os seus princípios da ação das perspectivas individual e universal simultaneamente. A ação individual, e o seu princípio, deve levar sempre em consideração o universal, pois ela concerne ao todo. É um particular que se refere ao universal, o constitui, só tem sentido com ele; universal que, no caso de Kant, é o reino dos fins, isto é, o reino dos seres racionais, o qual, por sua vez, não deixa também de estar contido no particular, pois tanto os seres racionais quanto o reino dos fins só são compreendidos com e em função do outro. Na fórmula da autonomia, como vimos, além da exigência da universalidade do princípio subjetivo do agir, há exigência da universalidade das vontades. Assim, a vontade individual é uma vontade que legisla universalmente, já que ela deve se colocar sempre na perspectiva de uma vontade legisladora universal. Também aí é um particular que se refere ao universal, que concerne ao todo, todo que também só tem sentido com e pelas suas partes. Sendo assim, parece que a recepção de Hegel não condiz exatamente com o que Kant quis dizer.

IHU On-Line – Qual foi a grande novidade da teoria moral de Kant em relação àquela de Aristóteles e da filosofia imediatamente anterior à do filósofo de Könnigsberg? 

Rejane Schaefer Kalsing – Uma das grandes novidades foi, pelo menos, ter desenvolvido uma filosofia moral fundada no princípio formal da autonomia, em substituição ao antigo princípio material da eudaimonia (felicidade em grego) (ROHDEN, 2008, p. 1). Além disso, conforme assinala Henry Allison, Kant deu um novo significado ao termo autonomia, pois originalmente este se empregava no sentido político para significar a “independência ou a autodeterminação de um Estado”, utilizado ainda no século XVIII por Christian Wolff, por exemplo. Porém, continua, “Rousseau, embora não tenha empregado esse termo, esteve na origem da ampliação do conceito de autonomia da esfera jurídico-política para o domínio moral, com sua definição da liberdade como ‘obediência à lei que nós prescrevemos’ [Do contrato social, I, VIII].” É que, “na obra de Immanuel Kant, a concepção que Rousseau tinha de liberdade é interiorizada e assim transformada em autonomia da vontade” (CANTO-SPERBER, 2003, p. 134-135).

Kant compreende esta como “o único princípio de todas as leis morais e dos deveres conforme a elas” (KANT, Crítica da razão prática, 2003, p. 111). Único pois, com esse princípio o ser humano está sujeito somente à sua própria legislação, e, agindo a partir de uma lei que ele próprio se dá, de maneira a se considerar como legislador universal, não precisa de nenhum interesse para estimulá-lo ou constrangê-lo a agir, já que ela emana da sua vontade (KANT, 1997, p. 75). Em vista disso, para uma ação ser considerada moralmente boa, não pode ocorrer apenas conforme a lei, mas por causa da lei, ou não apenas conforme o dever, mas por dever, por respeito a ele, segundo a disposição (Gesinnung) (KANT, 2003, p. 248-249), pois, sendo apenas conforme a lei, a motivação da ação é externa, e, assim, se poderá falar no máximo em legalidade.

Respeito à lei

A esse respeito, afirma André Berten, que Kant opera “uma verdadeira ruptura [...] em relação a toda tradição que busca determinar um ‘bem’ exterior à vontade. O respeito pela lei deve prevalecer sobre qualquer consideração relativa ao bem-estar ou à felicidade do agente moral ou das outras pessoas. A vontade ocupa então o lugar que o ‘desejo razoável’ ocupava nas éticas de inspiração aristotélica. Com efeito, o desejo compreende-se por sua ‘finalidade’ ou seu ‘télos’, enquanto vontade é determinada por sua relação com o dever ou a lei” (CANTO-SPERBER, 2003, p. 407). O bem na filosofia moral kantiana não é exterior à vontade, aliás, é a própria vontade e a ação que o princípio supremo da moralidade ordena é boa em si e não boa apenas com vistas a um télos. A felicidade em Aristóteles, por exemplo, pode ser entendida “como atividade, o fim mais digno de ser buscado, em vista do qual todos os nossos atos são realizados” (CANTO-SPERBER, 2003, p. 616) e, assim, a ação é orientada a um fim, a uma finalidade, e, em função disso, denomina-se esta ética de teleológica. Já a ética kantiana, em que a ação se fundamenta no dever – o qual exprime o imperativo categórico, chama-se ética deontológica, que, segundo Berten, Kant foi o primeiro filósofo a defender explicitamente.

IHU On-Line – Como os filósofos posteriores a Kant compreenderam seu legado em termos morais? 

Rejane Schaefer Kalsing – Kant realizou uma verdadeira revolução em termos morais, o que, justamente em função disso, provocou reações diversas, adversas; sem se levar em conta aqui as demais áreas da filosofia, nas quais também realizou revoluções, como na teoria do conhecimento, por exemplo. Vale dizer que a filosofia moral posterior a ele ou vai no sentido de sua continuidade, ou no de sua crítica. Depois de Kant, se se quiser tratar de filosofia moral, é preciso abordá-lo. Em vista das circunstâncias, abordarei mais a título de ilustração e apenas alguns dos filósofos posteriores a ele. Fichte, por exemplo, faz uma reconceitualização da autonomia ao concebê-la não mais como condição ou propriedade da vontade, como em Kant, mas sim como uma tarefa infinita, como algo que devemos procurar realizar para nos tornarmos plenamente autodeterminados (ALLISON in CANTO-SPERBER, 2003, p. 138-139).

Em relação ao “imperativo categórico sob a forma kantiana”, ele o rejeita por entender que “a fórmula kantiana é vazia, incapaz de designar deveres determinados” (ibidem, p. 139). Objeção que Hegel também fará e acrescentará ainda que o imperativo categórico não constitui um critério que possa ser utilizado para verificar o caráter moralmente correto das ações (ALLISON in CANTO-SPERBER, 2003, p. 140), entre outras críticas. Schiller é um dos grandes admiradores da filosofia moral de Kant, sua grande influência. Dirige-lhe críticas, mas estas vão mais na direção da forma como Kant apresenta a sua teoria do que a esta propriamente, pois seu intuito foi, em muitos momentos, “ir além da (ou até contra a) letra de Kant, mas para melhor apreender e revelar verdadeiro espírito da filosofia kantiana” (SANTOS, 2012, p. 232). 

 

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