Edição 417 | 06 Mai 2013

Kant e Nietzsche e a autodeterminação como fundamento da autonomia

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Márcia Junges

Reagindo ao “kantismo”, Nietzsche assentou no perspectivismo histórico e genealógico a sua compreensão de autonomia. Um dos grandes desafios do pensamento ético, político e jurídico de hoje é manter, ou não, “projetos éticos que possam legitimamente sustentar aspiração à validade universal”, assinala Oswaldo Giacoia
Giacoia; “A moral de Kant é refratária a todas as variantes de tutelagem e vassalagem, tendo a autodeterminação como valor incondicional”

 

Há uma distância “oceânica” entre os modelos éticos de Immanuel Kant e Friedrich Nietzsche. Para o filósofo de Königsberg, “temos uma ética do dever, fundamentada no imperativo categórico como lei moral para o agir segundo regras ou máximas universalizáveis”, observa Oswaldo Giacoia, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Em Nietzsche temos a ética entendida como forma de vida, como estilística da existência e como fidelidade a si, sem imperativo categórico e lei da razão determinando valorativamente a práxis”. Giacoia acredita que possa ser feita uma “equivalência” entre o imperativo categórico kantiano e o eterno retorno nietzschiano, ressalvando que o termo deve deixar de ser tomado em “sentido estrito”. E completa: “De forma muito esquemática, pode-se afirmar que para Kant liberdade e autonomia da vontade são termos sinônimos; autonomia da vontade, por sua vez, identifica-se com autolegislação da razão, em sua função de determinar, por meio de valores e normas, a práxis humana nas sociedades e na história. Para Nietzsche, autonomia é um conceito que deve ser entendido em perspectiva histórica e genealógica: como um vir a ser da capacidade (ou poder) humano de autodeterminação, como uma formação tardia da consciência moral, fruto de um desenvolvimento que parte da pré-história do hominídeo pulsional até alcançar, com no domínio ético do animal político, a potência de responsabilizar-se por si e pelo futuro”.

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Giacoia é também mestre e doutor em Filosofia por esta instituição. É pós-doutor pela Universidade Livre de Berlim, Universidade de Viena e Universidade de Lecce, Itália, e livre docente pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde leciona no Departamento de Filosofia. Especialista em Nietzsche, sobretudo em seu pensamento político, publicou, entre outros: Nietzsche – para a Genealogia da Moral (São Paulo: Editora Scipione, 2001), Nietzsche como psicólogo (2ª ed. São Leopoldo: Unisinos, 2004), Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade (Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2005) e Nietzsche & para Além do Bem e Mal (2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Tomando especificamente o conceito de autonomia, em que medida se aproximam e se distanciam as filosofias de Kant e Nietzsche ? 

Oswaldo Giacoia – Penso que podemos interpretar o pensamento de Nietzsche como herdeiro do legado filosófico de Kant, especialmente no que este tem de “esclarecedor” e crítico em relação à metafísica; tanto para Nietzsche como para Kant, o esclarecimento implica em emancipação, capacidade para pensar e agir por si, sem o direcionamento por parte de outrem. Ambos também coincidem no que respeita à necessidade de libertar-se das amarras da ignorância e da opressão, assumindo a responsabilidade por si, com extrema valorização da capacidade de autodeterminação. A distância – oceânica – dá-se em relação aos modelos éticos: em Kant, temos uma ética do dever, fundamentada no imperativo categórico como lei moral para o agir segundo regras ou máximas universalizáveis; em Nietzsche temos a ética entendida como forma de vida, como estilística da existência e como fidelidade a si, sem imperativo categórico e lei da razão determinando valorativamente a práxis.

IHU On-Line – Como podemos compreender o “embate” entre esses dois pensadores, ou seja, a reação de Nietzsche ao kantismo?

Oswaldo Giacoia – Nietzsche reage criticamente não apenas ao próprio Kant, mas também ao “kantismo”, que deriva do sistema crítico de Kant. Nesse movimento, está também compreendido o conjunto do idealismo alemão, inclusive seu representante mais problemático: Arthur Schopenhauer . Penso que o embate possa ser circunscrito, resumidamente, em termos éticos e epistemológicos; começando pelo segundo aspecto, Nietzsche assume os resultados da crítica da razão pura, no que respeita às formas a priori da sensibilidade e do entendimento, assim como as ideias da razão, mas para paradoxalmente impugnar a possibilidade de um conhecimento imparcial e objetivo da realidade, um conhecimento que fosse capaz de apreender as estruturas ontológicas do real. Para Nietzsche, todo conhecimento é perspectivístico, e essa perspectividade implica em condicionamentos linguísticos, políticos, sociais, históricos, psicológicos, etc. A noção de objetividade assume o significado de multiplicação e deslocamento de perspectivas. 

Do ponto de vista moral, os ataques de Nietzsche visam, sobretudo, as tentativas de fundamentação da moralidade, das quais o sistema filosófico de Kant bem como o de Schopenhauer são os paradigmas contemporâneos. Nietzsche pretende levar às mais extremas consequências a honestidade intelectual, de modo a obter dessa mesma probidade a “confissão” da parcialidade incontornável, vigente em toda exigência moral pretensamente absoluta. Para ser coerente com a lógica de seus próprios valores, a honestidade intelectual, que constitui o apanágio da moderna consciência científica, vê-se constrangida a admitir que toda moral enraíza-se em condições de existência e as expressa, de modo que suprimir a legitimidade de suas próprias pretensões de validade absoluta e incondicional.

IHU On-Line – Qual é a pertinência do rechaço nietzschiano à “moralização do pensamento”? 

Oswaldo Giacoia – Essa pertinência se expressa na tentativa obstinada de mostrar como as oposições lógicas de valor (verdadeiro e falso) não são os estratos mais fundamentais aos quais a suspeita e a força do pensamento crítico pode atingir; as oposições lógicas ou epistemológicas emergem do subsolo das oposições morais entre bom e mau; verdadeiro e falso, assim como bom e mau são condições de possibilidade para a conservação, reprodução e expansão ou declínio de formações de domínio estruturadas em termos de relações de poder, que surgem, crescem, transformam-se e perecem no interior do vir a ser, configurando indivíduos, grupos e sociedades.

IHU On-Line – Como podemos compreender o conceito de autonomia a partir da ética de Kant e da genealogia da moral, de Nietzsche?

Oswaldo Giacoia – De forma muito esquemática, pode-se afirmar que para Kant liberdade e autonomia da vontade são termos sinônimos; autonomia da vontade, por sua vez, identifica-se com autolegislação da razão, em sua função de determinar, por meio de valores e normas, a práxis humana nas sociedades e na história. Para Nietzsche, autonomia é um conceito que deve ser entendido em perspectiva histórica e genealógica: como um vir a ser da capacidade (ou poder) humano de autodeterminação, como uma formação tardia da consciência moral, fruto de um desenvolvimento que parte da pré-história do hominídeo pulsional até alcançar, com o domínio ético do animal político, a potência de responsabilizar-se por si e pelo futuro.

IHU On-Line – Qual é a relação entre os conceitos de dignidade, pessoa, autonomia e liberdade em Kant?

Oswaldo Giacoia – Penso que Kant, dentre os filósofos modernos e contemporâneos, foi aquele que elevou a noção de dignidade da pessoa ao seu plano conceitual: para ele, dignidade é o valor absoluto, inerente à pessoa, esta entendida como o sujeito capaz de determinar-se em seu agir por regras (máximas) que possam ao mesmo tempo ser admitidas como leis universais. Somente porque os homens são seres racionais que agem em virtude da lei da razão prática é que eles são, ao mesmo tempo, livres e autônomos; portanto, como sujeitos de seu próprio ser e agir, no âmbito prático, nunca podem ser considerados meros instrumentos de finalidades arbitrárias alheias; nesse sentido, eles nunca podem ser considerados apenas instrumentalmente como meios para fins quaisquer, mas também e sempre, ao mesmo tempo, como fins em si mesmos. Esse é seu valor absoluto, que não se determina por comparação a outro valor, ou em virtude de sua prestabilidade a fins (que é a característica dos valores relativos, os preços), e que recebe o excelso nome de dignidade.

IHU On-Line – Por que o pensamento de Kant é compatível “com o pluralismo político inerente à concepção de Estado democrático de direito”?

Oswaldo Giacoia – Porque é um pensamento que, no âmbito da razão prática, tem seu fundamento em um princípio formal, não dependente nem da matéria (conteúdo) nem dos efeitos da ação moral, mas apenas da forma universal das máximas da vontade. Nesse sentido, o pensamento de Kant é essencialmente aberto para o acolhimento da força do melhor argumento, ou seja, extremamente refratário a toda modalidade de coerção, seja pela astúcia, seja violência. A moral de Kant é refratária a todas as variantes de tutelagem e vassalagem, tendo a autodeterminação como valor incondicional. 

IHU On-Line – O imperativo categórico kantiano encontraria um “equivalente” no eterno retorno, apontado por vezes como um imperativo ético? Por quê?

Oswaldo Giacoia – Penso que faz sentido cogitar dessa “equivalência”, se o termo deixar de ser tomado em sentido estrito. Em certo sentido, estamos diante de duas modalidades de perspectivismo, como foi muito bem reconhecido por Friedrich Kaulbach. O sujeito kantiano, assim como o nietzschiano, está sempre em situação; isso significa que desde sempre se encontra imerso no interior de condicionamentos de diferentes ordens, mas age sob a perspectiva de um como se: como se fosse efetivamente livre, sob a perspectiva do imperativo categórico; como se o instante presente retornasse eternamente, ou seja sub specie aeternitatis, para Nietzsche. 

IHU On-Line – Se por um lado o imperativo categórico kantiano obriga o reconhecimento do valor absoluto da pessoa, por outro não incorre em uma perspectiva antropocêntrica e solipsista?

Oswaldo Giacoia – Tomo a liberdade de observar que carecemos aqui de um cuidado especial: em um sentido muito especial, podemos considerar a moral kantiana antropocêntrica, e isso pode ser constatado pelos textos; por outro lado, trata-se de um sistema moral do ser racional enquanto tal, de que o homem deve ser pensado como uma espécie. Quanto ao solipsismo, o princípio de universalização das máximas da vontade racional alarga a perspectiva kantiana para levar sempre em consideração também o ponto de vista dos outros. 

IHU On-Line – Quais são as limitações do pensamento moral de Kant e da “moral” nietzschiana, que ele chamava de “Circe dos filósofos”?

Oswaldo Giacoia – Trata-se do principal efeito que a moral exerce sobre os filósofos, efeito de que Kant e Schopenhauer fornecem uma valiosa ilustração. Eles pretenderam, a partir dos respectivos sistemas filosóficos, fundamentar a moral em geral, e, ao fazê-lo, entronizam a própria moralidade como a “moral em si”, cujos valores supremos exprimem a essência e a validade de toda moral racional; sua potência crítica sucumbe, pois, ao sortilégio de Circe, que é a moralidade de sua própria cultura e história de formação. Fundamentar a moral implica, portanto, em transformar uma moral em absoluta, em detrimento de muitas outras morais, historicamente existentes ou possíveis. 

IHU On-Line – Em que sentido o pensamento desses dois filósofos em termos de moral e política continua reverberando no século XXI?

Oswaldo Giacoia – Penso que um dos maiores desafios do pensamento ético, político e jurídico de nossos tempos coloca-se hoje em termos de possibilidade de sustentação ou não de projetos éticos que possam legitimamente sustentar aspiração à validade universal. Kant e os representantes do universalismo ético contemporâneo (como Habermas, Rawls, e muitos outros) ilustram uma das faces desse dilema, com suas respectivas teorias da justiça; os representantes da estilística da existência, das éticas não normativas, ou “existencialistas”, de inspiração nietzschiana (como Heidegger e Foucault , entre muitos outros), representam a outra face. Esse diálogo, quase sempre muito áspero, parece-me ainda não ter sido suficientemente encaminhado; o que dizer, então, de sua conclusão. 

Leia mais...

Confira outras entrevistas concedidas por Oswaldo Giacoia à revista IHU On-Line.

* Sobre técnica e humanismo. Edição nº 20, Cadernos IHU Ideias, de 21-07-2004, disponível em http://migre.me/65uYP

* Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência. Edição nº 330, Revista IHU On-Line, de 24-05-2010, disponível em http://bit.ly/a20L4m 

* Superar a condição humana, uma fantasia antiga. Edição nº 344, Revista IHU On-Line, de 21-09-2010, disponível em http://migre.me/62jRT 

* Perfil. Edição nº 345, Revista IHU On-Line, de 27-09-2010, disponível em http://migre.me/62jTC 

* Independência do pensamento: prerrogativa máxima da filosofia. Edição nº 379, Revista IHU On-Line, de 07-11-2011, disponível em http://bit.ly/vv9gH4 

 

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