Edição 417 | 06 Mai 2013

Kant e a moralidade como resultado de nossa autonomia

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Márcia Junges | Tradução: Luís Marcos Sander

O iluminismo kantiano pode nos mostrar conflitos insolúveis entre a felicidade e o dever, acentua Jerome B. Schneewind. Para Kant, a autonomia sempre supera a heteronomia e questões práticas jamais imaginadas pelo pensador hoje exigem a atenção e podem ser pensadas a partir da perspectiva do imperativo categórico
Schneewind: “Segundo a concepção do próprio Kant, é possível ser autônomo mesmo numa monarquia despótica, como aquela em que ele próprio viveu”

 

A obra de Immanuel Kant e o conceito de autonomia são indissociáveis. Seu sistema moral “incide de muitas formas sobre sua filosofia moral. Entretanto, a maioria dos comentadores e teóricos tenta desvincular os escritos éticos de Kant das complexidades do sistema”. A afirmação é do filósofo norte-americano Jerome B. Schneewind, autor do clássico The Invention of Autonomy: A History of Modern Moral Philosophy (New York: Cambridge University Press, 1998), publicado em português como A invenção da autonomia (São Leopoldo: Unisinos, 2001). Na entrevista exclusiva que concedeu por e-mail à IHU On-Line, Schneewind disse que na perspectiva kantiana “ser autônomo é ser livre no sentido moralmente relevante, e a liberdade moral se expressa ou se torna evidente na ação autônoma”. O filósofo de Königsberg insistia que as pessoas podem, sim, ser autônomas: “Podemos estar motivados a cumprir nosso dever simplesmente porque é nosso dever. E ele argumentou extensamente para mostrar que o egoísmo moral não podia explicar adequadamente o que todos nós achamos que é a moralidade nem oferecer uma orientação adequada para a ação. Ele sustentava que o imperativo categórico podia fazer as duas coisas”. Schneewind pontua que “somos autônomos quando obedecemos a uma lei que damos a nós mesmos. É nossa própria razão que nos dá a lei. Mais precisamente, nossa razão prática se expressa dando-nos uma lei – o imperativo categórico – que exige que reajamos a nossos desejos e sentimentos de uma maneira específica. Para Kant, a moralidade é o resultado de nossa autonomia”.

Jerome B. Schneewind é filósofo e professor emérito da Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos. Formou-se na Universidade Cornell, e cursou o seu doutorado na Universidade Princeton. Lecionou nas Universidades de Chicago, Princeton, Yale, Pittsburgh e Hunter College, da Universidade da Cidade de Nova York. Fora dos EUA, lecionou na Universidade de Leicester, Stanford e Helsinki. Ministrou cursos sobre a história da ética, tipos de teoria ética, empiristas britânicos, ética kantiana e pensamento utópico. Já foi presidente da divisão leste da American Philosophical Association, e é membro da American Academy of Arts and Sciences.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a atualidade de Kant frente aos desafios da moral no século XXI?

Jerome B. Schneewind – A filosofia moral de Kant  é altamente relevante para as preocupações atuais, tanto práticas quanto teóricas. Conhecemos as recusas, horrorosas e amplamente difundidas, de tratar todos os seres humanos como merecedores de dignidade que assolaram o século XX e têm continuidade no presente. A asserção desse valor por parte de Kant representa uma repreensão permanente de nossa inumanidade uns para com os outros e uma convocação para agir melhor. Questões práticas que Kant jamais imaginou exigem nossa atenção hoje: as necessidades de nosso meio ambiente e o casamento entre pessoas do mesmo sexo são apenas duas delas, a título de exemplo. Os kantianos estão tentando mostrar como a filosofia moral de Kant pode oferecer orientação nesses casos e podem ir além de Kant em questões como, por exemplo, o tratamento apropriado dos animais.

O raciocínio baseado em meios e fins como única orientação em todos os assuntos práticos é adotado pela maioria dos economistas e por muitas pessoas que estão envolvidas nos chamados “estudos sobre a felicidade” (veja Dierdre N. McCloskey, “Happyism”. The New Republic, 28 jun. 2012). Kant oferece outros padrões de raciocínio prático. Os kantianos acham que os resultados decorrentes de se permitir que o raciocínio baseado em meios e fins tome conta de tudo seriam desastrosos. Essa é uma questão teórica e prática também.

Um equívoco de Kant?

Tem havido um reavivamento marcante do cristianismo nos Estados Unidos. O Islã, pregado com grande vigor em países predominantemente muçulmanos e, muitas vezes, vinculado a concepções antiocidentais, está sendo disseminado em muitas partes da Europa e dos EUA. Há versões dessas duas doutrinas religiosas que adotam a concepção de que a vontade desimpedida de Deus é a fonte da moralidade. A reação de Kant ao voluntarismo de sua época, particularmente o de Pufendorf , oferece material importante para as pessoas que se opõem a essa compreensão de moralidade.

As teorias que colocam a virtude e as virtudes no centro aumentaram de modo marcante no Ocidente em anos recentes. Consequentemente, o trabalho de Kant sobre a virtude, nas Lições de ética e na Metafísica dos costumes, receberam mais atenção do que em qualquer época anterior.

A maioria dos esforços para avaliar a filosofia moral de Kant seguem seus textos e discutem sobre leituras específicas das muitas passagens controvertidas contidas neles. Duas obras recentes tentam entender a ética kantiana não só em seus detalhes, mas num contexto muito amplo. No volume 3 da obra The Development of Ethics, Terence Irwin  dedica 172 páginas a um estudo abrangente – e muito crítico – da filosofia moral de Kant. A explicação de Irwin é, até certo ponto, distorcida por sua própria convicção de que o eudemonismo é a concepção correta, de modo que Kant tem de estar equivocado. Mas é uma exposição perceptiva e impressionante, da extensão de um livro inteiro, que trata a ética de Kant sistematicamente e a associa a obras anteriores. Em seu tratado On What Matters, de dois volumes, Derek Parfit  sustenta que a ética de Kant é uma parte da verdade a respeito da moralidade, e que a melhor maneira de entendê-la é ver como ela e as principais concepções concorrentes – como o utilitarismo, por exemplo – se combinam formando uma única visão da vida moral.

IHU On-Line – Qual é a importância desse filósofo e seu sistema na filosofia moral hoje?

Jerome B. Schneewind – O sistema de Kant incide de muitas formas sobre sua filosofia moral. Entretanto, a maioria dos comentadores e teóricos tenta desvincular os escritos éticos de Kant das complexidades do sistema. As limitações que ele impõe ao conhecimento teórico abrem o caminho para seus argumentos práticos em favor da crença na existência de Deus e da imortalidade, assim como, é claro, em favor da liberdade. Mas os argumentos kantianos sobre Deus e a imortalidade recebem muito menos atenção na literatura recente do que suas concepções de liberdade. As duas primeiras partes da Fundamentação são discutidas com muito mais frequência do que a Parte III. Mas essa parte está começando a atrair mais atenção do que costumava acontecer. As concepções de Kant a respeito do mal estão recebendo maior atenção, mas creio que há poucos defensores de suas concepções religiosas de modo geral. Depois de uma negligência prolongada, ambas as partes da Metafísica dos costumes estão sendo estudadas com esmero, assim como as Lições de ética. Todas essas discussões e exposições pressupõem que o leitor e a leitora estejam familiarizados com uma certa porção do pensamento de Kant fora da ética.

IHU On-Line – Em quais aspectos autonomia e liberdade estão imbricadas a partir do pensamento de Kant?

Jerome B. Schneewind – A autonomia e a liberdade estão essencialmente vinculadas na concepção de Kant. Ser autônomo é ser livre no sentido moralmente relevante, e a liberdade moral se expressa ou se torna evidente na ação autônoma.

IHU On-Line – Kant queria refutar a lei moral baseada na heteronomia. Como podemos compreender essa concepção tendo em vista os ideais do iluminismo e a ideia que se tinha da humanidade naquele tempo?

Jerome B. Schneewind – Muitos pensadores iluministas sustentavam, como os iniciantes na filosofia e muitos economistas ainda o fazem, que toda ação humana deliberada visa beneficiar somente o agente. Com base nessa concepção, toda ação é heterônoma por ser guiada por motivos que nos são simplesmente dados por nossos desejos. Kant insistia, pelo contrário, que as pessoas podem ser autônomas. Podemos estar motivados a cumprir nosso dever simplesmente porque é nosso dever. E ele argumentou extensamente para mostrar que o egoísmo moral não podia explicar adequadamente o que todos nós achamos que é a moralidade nem oferecer uma orientação adequada para a ação. Ele sustentava que o imperativo categórico podia fazer as duas coisas.

Kant se opunha ao otimismo simplório muitas vezes associado com o iluminismo. Ele acreditava que nós deveríamos de fato tentar satisfazer nossos próprios desejos e os das outras pessoas, mas tão somente dentro dos limites fixados pelo imperativo categórico. E a orientação do imperativo categórico bem que poderia não nos levar a produzir o máximo de felicidade para todos os envolvidos.

Ser esclarecido, sustenta Kant, é pensar por conta própria, não seguir o interesse próprio ou egoísmo, nem diretivas convencionais ou religiosas, a menos que se possa perceber que o imperativo categórico as aprovaria. Portanto, o iluminismo kantiano pode nos mostrar conflitos insolúveis entre a felicidade e o dever. E, para ele, a autonomia sempre supera a heteronomia.

IHU On-Line – Que diferenças cruciais percebe entre a invenção da autonomia nos séculos XVII e XVIII, como o senhor desenvolve em sua obra, e a autonomia como se apresenta em nossos dias?

Jerome B. Schneewind – Até os escritos de Kant, sempre se usava “autonomia” como um termo para designar entidades políticas que não eram obrigadas a obedecer a qualquer autoridade outra do que sua própria. Os estados são autônomos quando têm o direito de fazer suas próprias leis. Kant ampliou o conceito para a esfera pessoal. Somos autônomos quando obedecemos a uma lei que damos a nós mesmos. É nossa própria razão que nos dá a lei. Mais precisamente, nossa razão prática se expressa dando-nos uma lei – o imperativo categórico – que exige que reajamos a nossos desejos e sentimentos de uma maneira específica. Para Kant, a moralidade é o resultado de nossa autonomia.

Kant estava rejeitando uma concepção comum de moralidade como obediência a uma lei ou leis que nos foram traçadas por Deus. Ele também estava rejeitando a reivindicação do egoísta de que devemos seguir nossos desejos baseados no interesse próprio. No século subsequente a Kant houve pouca discussão sobre a autonomia. Fichte  e Hegel  pouco tinham a dizer sobre ela, e Mill , embora acentuasse a importância central da independência da mente, não fez dela o cerne da moralidade como Kant o fez. A maioria dos filósofos morais de língua inglesa desde Sidgwick  e Moore até o desenvolvimento da “ética da linguagem ordinária” e além dela simplesmente não discutiu a autonomia. Talvez surpreendentemente, os filósofos que iniciaram a reavaliação da ética de Kant nesse período – H. J. Paton, L. W. Beck, Mary Gregor – deram muito pouca atenção à autonomia. Não há um artigo sobre autonomia nem mesmo na Encyclopedia of Philosophy, de 1967, editada por Paul Edwards.

Influência silenciosa

Desde 1970, a discussão sobre a autonomia aumentou enormemente. Isso se deve, em parte, à busca incessante dos filósofos mais jovens por questões novas sobre as quais pudessem escrever. Mais importante, porém, é que isso reflete a ascensão de movimentos sociais e políticos de grupos que buscam mais controle sobre sua própria vida – especialmente as mulheres e minorias. Kant tratou a autonomia como um traço essencial da vontade racional. Ela não é vista como uma capacidade contingente cujo desenvolvimento possa ser impedido pela educação e opressão. A contrariedade com atitudes paternalistas por parte de médicos e hospitais levou ao desenvolvimento de estudos sobre a ética do tratamento e da pesquisa na medicina, o que tem sido outro locus importante de discussões a respeito da autonomia. Na teoria política, que ficou em grande parte dormente durante o reinado da filosofia da linguagem ordinária, a obra de John Rawls  despertou um novo interesse pela consideração da autonomia como essencial para uma sociedade liberal. E as inumeráveis publicações sobre a filosofia moral do próprio Kant incluem agora estudos extensos a respeito de sua concepção de autonomia. A própria palavra “autonomia” entrou no discurso popular nas últimas décadas, o que evidencia a influência silenciosa, mas persistente de uma importante teoria filosófica.

IHU On-Line – Há uma confusão entre autonomia e individualismo em nossa sociedade. A que atribui essa má compreensão e quais são os problemas que surgem de tal interpretação?

Jerome B. Schneewind – A autonomia não exige que se atribua grande valor ao que aparta cada indivíduo dos outros e torna cada pessoa singular. O individualismo – que é um termo escorregadio – às vezes parece tornar isso central. Visto que a autonomia exige que cada pessoa pense por conta própria sobre assuntos importantes, é possível confundi-la com o individualismo nesse sentido.

IHU On-Line – Quais são as maiores limitações para a concretização da autonomia?

Jerome B. Schneewind – Kant pensa que nenhum agente racional pode ser ou estar sem autonomia. Se, em vez disso, a autonomia é vista como um ideal e uma conquista, então a opressão racial, sexual, política e econômica, uma educação ruim, o medo da autoridade e alguns tipos de ensino religioso podem, todos eles, tender a impedir que ela seja alcançada.

IHU On-Line – A democracia pode ser considerada a tradução política da autonomia? Dado o comportamento apático dos eleitores, ou a obrigatoriedade em votar (como no Brasil), ainda se pode acreditar que essa aproximação expressa a realidade?

Jerome B. Schneewind – Segundo a concepção do próprio Kant, é possível ser autônomo mesmo numa monarquia despótica, como aquela em que ele próprio viveu. É mais plausível conceber a autonomia como um ideal, um ideal a que aspiramos que nossos concidadãos e nossos filhos correspondam. Visto que a democracia convoca seus cidadãos para decidir seu próprio futuro político, ela incentiva esse tipo de caráter.

A corrupção e a opressão podem levar os eleitores à apatia. Talvez eles desistam do ideal da autonomia na esfera pública. Talvez simplesmente vendam seu voto, como faziam muitos antes que houvesse o sigilo eleitoral. Nenhum sistema político pode garantir que todo o mundo seja autônomo.

 

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