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Cesar Sanson
Tributária de um marxismo reducionista que vem as forças produtivas – trabalho e capital – como meio para controlar e transformar os recursos naturais com vistas à produção de bens materiais, base do crescimento econômico, a atual esquerda latino-americana enxerga nos povos indígenas um obstáculo ao pleno desenvolvimento do modelo em curso.
Nesse modelo, as terras, as águas, as matas, o ar, a biodiversidade e os minérios estão subordinados à lógica produtivista, âncora do crescimento econômico e base da distribuição de renda. Na medida em que os povos indígenas ocupam os territórios onde se encontram os recursos vitais para o modelo, eles devem ser removidos. É nesse contexto que devem ser interpretadas as tensões que envolvem os povos indígenas em todo o território latino-americano e, particularmente, no Brasil.
O arsenal de emendas constitucionais, portarias e regulamentações associadas aos grandes projetos e ao braço armado do ruralismo e do Estado – vide o caso do povo Munduruku – ameaçam não apenas os territórios, mas a própria integridade física dos povos indígenas. O Estado de exceção, na concepção agambeniana, chegou aos povos indígenas.
O caso brasileiro é emblemático nessa perspectiva. O modelo econômico em curso é altamente dependente da exploração e exportação de matérias-primas, em especial de commodities agrícolas e minerais. Nessa perspectiva e para viabilizar o modelo, o Estado brasileiro investe pesado em obras de infraestrutura na área de transporte e geração de energia – rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, aeroportos, usinas hidrelétricas, linhas de transmissão, dentre outras.
O modelo necessita do total controle do território e na medida em que está ocupado por indígenas ou outros povos tradicionais - quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos –, eles se tornam um empecilho e precisam ser removidos. Como destaca análise de conjuntura do Conselho Indigenista Missionário - Cimi , “é muito evidente que os setores político-econômicos anti-indígenas e antidemocráticos, representantes do agronegócio, das mineradoras, das grandes empreiteiras e o próprio governo brasileiro estão articulados e empenhados para ampliar o acesso, o controle e a exploração dos territórios indígenas, quilombolas, dos pescadores artesanais, dos camponeses, de preservação ambiental, dentre outros”.
Para conseguir seus objetivos, diz o Cimi, os setores anti-indígenas adotaram uma estratégia que tem três objetivos centrais:
• Inviabilizar e impedir o reconhecimento e a demarcação das terras indígenas.
• Rever procedimentos de demarcação de terras indígenas já finalizados.
• Invadir, explorar e mercantilizar as terras demarcadas, que estão na posse e sendo preservadas pelos povos indígenas, pelos quilombolas e por outros grupos tradicionais.
É nesse contexto que se assiste ao uso de diferentes instrumentos político-administrativos, judiciais e legislativos para derrogar os frágeis direitos indígenas. A artilharia é pesada e visa atingir os objetivos citados acima. Entre as principais iniciativas dos ruralistas para o desmonte dos direitos indígenas e com o explícito objetivo de “abrir a porteira” dos seus territórios, destacam-se:
• PEC 215: O projeto de emenda constitucional propõe transferir do poder Executivo para o Congresso Nacional a demarcação e homologação de terras indígenas e quilombolas, além de rever os territórios com processo fundiário e antropológico encerrado e publicado.
• PEC 38: Dá ao Senado Federal competência para aprovar processos de demarcação de terras indígenas e determina que a demarcação de terras indígenas ou unidades de conservação ambiental respeite o limite máximo de 30% da superfície de cada estado.
• PEC 237: Permite a posse indireta de terras indígenas por produtores rurais. A PEC acrescenta um parágrafo à Constituição para determinar que a pesquisa, o cultivo e a produção agropecuária nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios poderão ocorrer por concessão da União, tendo em vista o interesse nacional.
• Projeto de Lei 1610: Prevê a mineração em terras indígenas, ou seja, a exploração mineral poderá ocorrer em todo e qualquer espaço no interior da terra indígena.
Os povos indígenas, porém, não enfrentam apenas o agronegócio. Enfrentam também o governo que tem direcionado seu arsenal de instrumentos jurídicos para derrotar os indígenas quando se trata de defender o seu modelo. Dentre as principais iniciativas do governo, destacam-se:
• Portaria 303: De iniciativa da Advocacia-Geral da União (AGU), a portaria confirma o entendimento do STF de que os direitos dos índios sobre as terras não se sobrepõem aos interesses da política de defesa nacional, ficando garantida a entrada e instalação de bases, unidades e postos militares no interior das reservas. A expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas e de “riquezas de cunho estratégico para o país” também não dependerão de consentimento das comunidades que vivem nas TIs afetadas, de acordo com as regras.
• Decreto nº 7.957/13: Cria a Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública, tendo como uma de suas atribuições “prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos técnicos sobre impactos ambientais negativos”. Na prática significa a criação de instrumento estatal para repressão militarizada de toda e qualquer ação de comunidades tradicionais, povos indígenas e outros segmentos populacionais que se posicionem contra empreendimentos que impactem seus territórios. Foi o que se viu na Operação Tapajós.
• Portaria Interministerial 419/11: Regulamenta a atuação de órgãos e entidades da administração pública com o objetivo de agilizar os licenciamentos ambientais de empreendimentos de infraestrutura que atingem terras indígenas.
Logo, a postura do governo em relação aos povos indígenas é clara: ou os povos indígenas submetem-se ao modelo ou sentirão a mão pesada do Estado. Portanto, a atitude do governo brasileiro não é de descaso, omissão e negligência para com os povos indígenas – o governo tem um lado nesse debate e o seu lado é a defesa do seu projeto.
Toda a insatisfação dos povos indígenas ficou latente quando recentemente não conseguiram audiência com a presidente. Afirmaram os povos indígenas em carta pública: “Perdemos as contas de quantas vezes em que Dilma esteve com latifundiários, empreiteiras, mineradores, a turma das hidrelétricas. Fez portarias e decretos para beneficiá-los e quase não demarcou e homologou terras tradicionais nossas. Deixou sua base no Congresso Nacional entregar comissões importantes para os ruralistas e seus aliados”.
Os povos indígenas, entretanto, resistem como historicamente resistiram. Na sua luta contra os ruralistas e contra a insensibilidade do governo, contam com poucas forças, entre elas, a principal é o Cimi. Os partidos de esquerda não apoiam a luta indígena, apenas alguns parlamentares isolados. Há partidos de esquerda que são claramente anti-indígenas, tal como o PCdoB. O movimento sindical sequer conhece essa luta e raramente se posiciona quanto aos seus conflitos.