Edição 200 | 16 Outubro 2006

Um poder sem controles

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

“O homem tem hoje um poder sem precedentes que, no entanto, não está mais em condições de controlar numa sociedade global sem confins e sem limites. O mundo por ele criado põe em perigo a própria conservação da humanidade e do vivente, expondo-a ao risco de autodestruição (nuclear), de degradação irreversível (pense-se no global warming, no aquecimento global), de mutações incontroláveis (manipulações do corpo e da natureza, ogm etc.)”, é o que atesta a professora de Filosofia social na Universidade de Firenze, Elena Pulcini.

Pulcini é membro do Comitê editoriall da revista Iride. Atenta ao problema da genealogia e da constituição do individualismo moderno, tem posto no centro de sua pesquisa o tema da vida emotiva, do papel das paixões e da patologia social da modernidade, com particular atenção ao relacionamento entre o indivíduo, a comunidade e a globalização. Entre seus livros publicados, citamos: Amour-passion e amore coniugale. Rousseau e l’origine di un conflitto moderno (Venezia 1990); L’individuo senza passioni. Individualismo moderno e perdita del legame sociale (Bollati Boringhieri, Torino 2001); Il potere di unire. Femminile, desiderio, cura (Bollati Boringhieri, Torino 2003); Umano, post-umano. Potere, sapere, etica nel mondo globale (a cura di, Roma 2004). Confira a entrevista a seguir que Elena concedeu por e-mail.

IHU On-Line - Quais são as diferenças entre o Homo faber e o Homo creator? Como podemos entender estes dois conceitos na sociedade atual? E o Homo creator é sinônimo de pós-humano?

Elena Pulcini
- O Homo faber é o próprio paradigma do homem ocidental. É precisamente ele que faz, que fabrica, que produz, servindo-se da técnica para satisfazer as próprias necessidades e familiarizar-se com o mundo. Mas, a partir da modernidade que introduz a liberdade individual, a prioridade do fazer e do produzir expressa um comportamento instrumental e de domínio em relação à natureza, ao outro, ao mundo, tratados prevalentemente como objetos úteis aos fins da própria conservação e da satisfação dos próprios interesses. Diz Hannah Arendt  que “o homo faber se comporta como senhor e dono de toda a terra. Desde que sua produtividade foi representada pela imagem de um Deus-criador...a produtividade humana foi destinada a aparecer como uma revolta prometeica, porque podia edificar um mundo humano somente após a destruição de parte da natureza criada por Deus”.

E, no entanto, o Homo faber tem ainda uma capacidade projetiva, ainda é dotado de um objetivo, embora seja somente utilitarista. O problema, que diz respeito à nossa contemporaneidade, nasce quando o Homo faber degenera, poderíamos dizer, em Homo creator. Esta é uma expressão usada por Günther Anders  em O homem antiquado: “Com a denominação Homo creator – diz Anders – entendo o fato de nós sermos capazes, ou melhor, termos sido tornados capazes de gerar produtos da natureza, que não fazem parte (como a casa construída com a madeira) da categoria dos ‘produtos culturais’, mas da própria natureza”. Potencializado pelo desenvolvimento ilimitado da técnica, o homem não mais se limita, hoje, a transformar a natureza, a introduzir “variações” em temas e códigos já dados, mas adquiriu a capacidade, precisamente, de criar a natureza, de introduzir no ambiente produtos e processos totalmente “novos” (da bomba nuclear às manipulações genéticas), alterando profundamente as próprias leis da evolução e abrindo horizontes de todo imprevisíveis.

Homo creator

O Homo creator é, pois, o efeito da “perversão” do Homo faber, é aquele que é impelido pela hybris prometeica de crescimento e de conquista; aquele que adere ao imperativo da técnica, em virtude da qual “o que se pode fazer se deve fazer”.

O que aconteceu a partir da segunda metade do século XX e da “terceira revolução industrial”, consiste no fato de que o desenvolvimento da técnica assumiu tais proporções, a ponto de fazer as mudanças quantitativas se traduzirem em mudanças qualitativas, gerando uma inversão da função de “meio” da técnica em sua autonomização como “fim”, capaz de subordinar a si, e à própria lógica funcional, as exigências humanas. De meio tendente a satisfazer as necessidades do ser humano, a técnica se transformou num fim que foge ao controle do homem, o qual perdeu a capacidade de administrar, controlar os processos por ele mesmo deflagrados.

O Homo creator é aquele que reage ao próprio sentimento de inadequação, rebelando-se contra a fatalidade dos próprios limites humanos; que põe à prova a própria natureza corpórea, sondando-lhe as mais extremas possibilidades e o limite de suportabilidade, até o ponto de produzir aquela “segunda natureza” que hoje não é mais somente uma metáfora, mas uma concreta e inquietante realidade produzida pela técnica.
Está, pois, em ato uma tendência à superação do humano, uma vontade de transcendência do corpo, da natureza, do vivente e da sua “fatalidade” que, alimentada pelo desenvolvimento ilimitado da técnica e solicitada pelos seus imperativos mais cogentes, corre o risco de produzir efeitos nefastos, pondo em cheque a própria sobrevivência do gênero humano.

O homem tem hoje um poder sem precedentes que, no entanto, não está mais em condições de controlar numa sociedade global sem confins e sem limites. O mundo por ele criado põe em perigo a própria conservação da humanidade e do vivente, expondo-a ao risco de autodestruição (nuclear), de degradação irreversível (pense-se no global warming, no aquecimento global), de mutações incontroláveis (manipulações do corpo e da natureza, organismo geneticamente modificado (OGM) etc.). Isso quer dizer que o Homo creator perdeu paradoxalmente a qualidade peculiar do Homo faber que, embora numa ótica essencialmente instrumental, era a de projetar a própria vida e o próprio futuro.

Produz-se a cisão entre aquilo que se faz e a incapacidade da psique de ser up to date com respeito àquilo que se faz (aquilo que Anders chama de “desnível prometeico”). Nesta cisão, se aninha o risco paradoxal de que o mundo que produzimos nos fuja das mãos, autonomizando-se de todo sentido e fim, enquanto o nosso produzir procede, mantido pela incontrolável lei de uma razão instrumental entregue a si mesma, independentemente da nossa capacidade de perceber-lhe, imaginar-lhe, prever-lhe os efeitos.

Homo faber X Homo creator

Embora sendo uma direta filiação do Homo faber e da lógica utilitarista e instrumental que inspira o seu agir, o Homo creator parece ter perdido sua característica peculiar: quer dizer a capacidade prometeica de pre-ver e projetar o próprio agir e a própria vida, a qual ainda o tornava sujeito, embora fosse com êxitos de domínio sobre a natureza e sobre o mundo, dos processos por ele mesmo desencadeados. O homem criador, ao invés, dotado de um poder sem precedentes, que lhe permite criar até a natureza e a própria vida fora dos percursos evolutivos, aparece como sempre mais incapaz de prever e imaginar as conseqüências e os efeitos do próprio fazer e criar.

O Prometeu da idade da técnica, por conseguinte, não está mais na altura do mundo por ele próprio construído, em relação ao qual ele perde a capacidade ativa de projeto e de controle, de escolha e de responsabilidade. E essa perda deixa-o exposto aos resultados que ultrapassam, ou até invertem as próprias expectativas e os objetivos iniciais.

IHU On-Line - É o homem contemporâneo um homem pós-humano? Como a senhora definiria este conceito?

Elena Pulcini
- O Homo creator é, como já o haviam intuído Anders e Hans Jonas , aquele tipo de subjetividade que prefigura precisamente a superação do humano e de tudo o que tradicionalmente associamos ao humano: o corpo, a finitude, a vulnerabilidade, as paixões, a morte, a vida entendida na sua imperfeição e imprevisibilidade. E é ele que, paradoxalmente, ao fazer isso, põe em perigo a própria vida sobre a terra, abrindo a possibilidade de cenários pós-humanos. Pós-humano é um conceito recente que pode ser entendido de vários modos. Entre as teorias do pós-humano, algumas propõem uma visão eufórica e hiperotimista de um futuro caracterizado pela libertação do orgânico e dos seus limites (transumanismo, cibercultura etc.). Aqui se descortina a total transcendência do corpo e da natureza, a completa ultrapassagem, pelo homem, do processo evolutivo, em nome de um desprezo do vivente e de tudo o que conta (emoções, corpo, finitude, morte), reduzido ao inútil e residual fardo, a puro “peso morto”, diria precisamente Anders, e que inibe a possibilidade de libertar-se nas regiões rarefeitas e luminosas de “paraísos artificiais”, ao resguardo do sofrimento e da morte. Na aspiração por um total abandono do biológico, que permitira finalmente ao homem tornar-se plenamente senhor do próprio futuro e do próprio destino, a hybris prometeica se exprime em toda a sua vocação ao ilimitado.

Recriação do homem

A obsolescência do homem e a necessidade de re-criá-lo fora das leis da evolução - é este o mesmo pressuposto que associa os teóricos da Vida e da Inteligência Artificial, animados pelo sonho de uma completa emancipação do corpo, e os fatores radicais da engenharia genética, inspirados pelo desejo do “melhorar” a espécie, livrando-a dos defeitos e dos riscos intrínsecos à reprodução natural e sexuada.
Indiferente aos outros fins que não sejam aqueles da realização sem limites das próprias potencialidades intrínsecas, a tecnociência, nas suas expressões mais otimistas, termina por radicalizar – como diz André Gorz  – aquela “hostilidade ao acaso, hostilidade à vida, hostilidade à natureza” que caracteriza desde as origens a lógica peculiar da razão instrumental moderna e que hoje não conhece mais limites.

Em suma, na recusa do corpo e do orgânico, que emerge nas fantasias de onipotência pós-humana, poderemos reconhecer nada mais do que a extrema manifestação daquele processo, inconfessado, mas insidiosamente eficaz que Paulo Virilio reassumiu no “conceito de desaparecimento”; aludindo àquele desejo de desaparecimento do vivente que, desde os alvores da modernidade, anima o imaginário técnico-científico tão potentemente a ponto de descambar, enfim, na perda do próprio instinto de conservação da espécie. Voltando ao que Anders havia captado muito bem há mais de cinqüenta anos, poderemos dizer que este desejo de desaparecimento do vivente se apresenta indissociável do Streben faustiano e prometeico do sujeito moderno: isento de qualquer imperfeição e contingência, e disposto paradoxalmente a cancelar as próprias origens humanas, projetando-se na dimensão “imaterial” do pós-humano.

Há, todavia, um setor mais interessante da reflexão sobre o pós-humano, no qual a superação do humano quer dizer mascarar aquele aspecto de domínio e de narcisóide separação que é intrínseco ao paradigma moderno e antropocêntrico e ultrapassar sua visão dualista, responsável por hierarquias e exclusões.

A visão humanista da identidade como autocentrada e fechada no mito da própria pureza antrópica, indisponível para o acolhimento da alteridade, Donna Haraway  opõe provocadoramente a imagem “utópica” do cyborg, criatura híbrida feita de orgânico e inorgânico, simbolicamente alusiva a uma identidade mestiça e impura, contaminada pelo não-humano e em constante metamorfose; e, sobretudo, “comprometida com o mundo”, disponível para acolher o diferente de si.

Numa perspectiva antidualista, a teoria do pós-humano que se inspira em Haraway (como, por exemplo, na Itália, Roberto Marchesini ) auspicia a superação do “antropocentrismo ontológico”, ou seja, a pretensão humanista do homem entendido como universo isolado como sujeito auto-referencial e totalmente impermeável à contaminação externa. Resulta daqui a proposta de assumir a idéia do homem como “fruto híbrido”, constitutivamente sempre em débito para com a alteridade não-humana, seja ela animal ou mecânica.

Em suma, a filosofia do pós-humano reivindica, a partir de uma crítica radical do humanismo e de toda oposição hierárquica entre humano e não-humano, entre o Eu e o outro, a idéia de uma subjetividade caracterizada por uma “promiscuidade ontológica” e por uma disponibilidade à “hibridação” que desmorona toda pretensão à imunização e à separação do mundo; pretensão tanto mais privada de sentido quanto mais o mundo vem a ser invadido pela técnica: pelas mutações, pelos enxertos e pelos implantes intra e inter-específicos que ela produz ou que simplesmente possibilita.

A proposta é indubitavelmente interessante, pois ela insiste precisamente na abertura à alteridade, na necessidade de romper a autarquia, aliás ilusória, do sujeito moderno. A proposta é, afinal, a de reconhecer a posição de heterodependência do humano em relação a processos externos, para os quais é desejável um comportamento não mais separador e fundado numa oposição hierárquica entre homem e mundo, entre si e o outro, mas, ao contrário, conjugante e acolhedor; que reconheça as próprias máquinas não como algo externo e ameaçador para uma presumida integridade do humano, mas como “amigáveis consigo”, como diz Haraway, que desbordam em nós e nos quais nós, por nossa vez, desbordamos.

Porém o risco de fundo destas posições consiste na aceitação substancialmente acrítica da técnica, na legitimação pura e simples de processos transformadores que, ao invés, por sua própria radicalidade, por sua mole quantitativa e por seu caráter inovador, são potencialmente portadores de patologias, seja no plano psíquico, seja no plano ético e político.

Risco desta passagem

O risco contido nesta passagem é o da perda do mundo. O Homo creator se expõe, em outros termos, ao risco da abertura de um abismo entre o mundo fabricado por ele e sua capacidade de estar à altura deste mundo, administrando ativa e conscientemente suas transformações e futuros equilíbrios. E isso quer dizer perder o controle e desviar-se do objetivo e do sentido do agir e expor-se ao risco da destruição da humanidade que, no entanto, como já sublinhei, não é a única coisa a dever preocupar-nos, porque isso significaria permanecer numa ótica antropocêntrica; o problema consiste, antes, no perigo daquele “desaparecimento do vivente” que desde sempre se aninha no imaginário ocidental e moderno.

IHU On-Line - Que gênero de ética se pode pensar numa sociedade secularizada?

Elena Pulcini
- Não creio que se possa pensar numa ética deontológica, fundada em imperativos abstratos, no mundo complexo, plural e fremente em que vivemos. A idade global contém, no entanto, uma chance inédita que é a precondição de uma possível ética nova, fundada antropologicamente e inspirada pelas próprias grandes transformações em ato. Em outros termos, pela primeira vez somos todos iguais na debilidade, antes de toda diferença e até de toda desigualdade. Estamos todos expostos aos mesmos riscos e submissos a um destino comum. A interdependência global, a compressão do espaço e do tempo produzidos pela globalização, a perda dos confins, prefiguram pela primeira vez a possibilidade de um elo planetário, embora na distância e na diferença, que transforma a humanidade num novo sujeito; na condição, todavia, que ela saiba assumir a responsabilidade pelas próprias ações e pelas próprias decisões.

É preciso, pois, pensar numa ética da responsabilidade, como já propunha Hans Jonas há algumas décadas; a qual, no entanto, não deve ter fundamentos deontológicos.
O que proponho é uma ética da responsabilidade que se baseie, antes, na consciência da própria vulnerabilidade. Em outras palavras, é o espectro da perda do mundo e da própria vida que pode – e é este o desafio – impelir os homens a reconhecerem sua comum unidade e a agirem em comum. Para que isso suceda é, todavia, preciso superar a cisão “prometeica” entre produzir e sentir, entre fazer e imaginar e adquirir a capacidade de pensar-se como sujeito vulnerável; vulnerável paradoxalmente em virtude do próprio vertiginoso poder. Penso, pois, que a responsabilidade deva ter um fundamento emotivo, que emerja da percepção mesma da própria debilidade e do amor pelo mundo. E por isso prefiro falar de cuidado, antes que de responsabilidade: cuidado de si, da natureza, do Planeta, do outro, a partir da consciência que somente juntos é possível esconjurar o espectro da catástrofe.

IHU On-Line - Do ponto de vista filosófico, sobre o que se constrói o conceito do pós-humano? Quais são os autores que em certo sentido discutiram esta problemática?

Elena Pulcini
- Se já em Anders e em Jonas fora caracterizado o conceito de superação do humano, o pós-humano, de Francis Fukuyama  até Donna Haraway, é um conceito novo, cujos aspectos perigosos e negativos sublinhei, mas que também podemos assumir positivamente como prefiguração de um mundo no qual o homem não seja o único centro do mundo, mas o próprio mundo e o inteiro vivente possam tornar-se o centro, o objeto a conservar e proteger.

IHU On-Line - Quais são as razões que a humanidade ainda tem para viver em comum? O que nos une como seres humanos? Para que futuro queremos andar?

Elena Pulcini
- O que nos une é precisamente nossa humanidade, entendida como nossa condição de seres finitos, imperfeitos, vulneráveis, dependentes um do outro e conscientes do fato de que o mundo que nos foi dado não é mais um dado, mas é algo que, para continuar a existir, deve tornar-se objeto do nosso cuidado. Devemos interrogar-nos: que mundo queremos construir, que caracteres do humano queremos conservar, para nós mesmos e para as gerações futuras, às quais estamos ligados pelo próprio sentido do nosso estar no mundo? É sobre isso que se funda a necessidade de estar-em-comum, de aliar-se para construir um futuro que possa não só hospedar a vida, mas uma vida digna de ser vivida.

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição