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Márcia Junges
“Não há consenso acerca do que seja ético em Filosofia; claro que do ponto de vista dos direitos humanos (kantiano na sua base) não se pode usar gente como meio (escravo) e por isso traficar gente é antiético. Não vejo como relativizar esta questão sem foçar a barra de um niilismo pseudochique”. A provocação é do filósofo Luiz Filipe Pondé na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Em sua opinião, não é preciso odiar para trabalhar no tráfico: “basta gostarmos muito de dinheiro e sermos atrofiados afetivamente”. E arremata: “Não creio em grandes autonomias. A prática do tráfico de pessoas indica que a humanidade não mudou nas suas potencialidades de desumanização”. Essa temática inspirou o tema de capa da edição 414 da revista IHU On-Line, de 15-04-2013, intitulada Tráfico de pessoas. A forma contemporânea de escravidão humana.
Luiz Felipe Pondé leciona na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, entre outras instituições. Graduado em Medicina, pela Universidade Federal da Bahia, e em Filosofia Pura, pela USP, é mestre em História da Filosofia Contemporânea e em Filosofia Contemporânea, respectivamente pela USP e pela Université de Paris VIII, França. Doutor em Filosofia Moderna pela USP e pós-doutor pela Universidade de Tel Aviv, Israel, escreveu O homem insuficiente (São Paulo: Edusp, 2001); Crítica e profecia. Filosofia da religião em Dostoievski (São Paulo: Editora 34, 2003); Conhecimento na desgraça. Ensaio de epistemologia pascaliana (São Paulo: Edusp, 2004); e Do pensamento no deserto: ensaios de filosofia, teologia e literatura (São Paulo: Edusp, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em termos éticos, como podemos compreender o fenômeno do tráfico de pessoas sob o ponto de vista de quem trafica e de quem é traficado?
Luiz Filipe Pondé – Ética para alguns são hábitos, para outros são princípios, para outros a busca do prazer e do bem-estar. Não há consenso acerca do que seja ético em Filosofia; claro que do ponto de vista dos direitos humanos (kantiano na sua base) não se pode usar gente como meio (escravo) e por isso traficar gente é antiético. Não vejo como relativizar esta questão sem forçar a barra de um niilismo pseudochique.
IHU On-Line – Em que medida sua constatação, segundo a qual o ódio nos move mais do que o amor, nos ajuda a compreender a objetificação das pessoas através do tráfico de seres humanos?
Luiz Filipe Pondé – Afetos são determinantes. Amar custa mais do que odiar; às vezes o que salva é a indiferença pura e simples, mas ela muitas vezes ajuda a quem odeia. A vida é violenta, incerta e bela às vezes. Por isso o ódio é sempre uma resposta mais a mão, ainda mais porque ele em algumas ocasiões é a única resposta possível. Não acho que precisemos odiar para trabalhar no tráfico; basta gostarmos muito de dinheiro e sermos atrofiados afetivamente.
IHU On-Line – O que essa prática demonstra sobre o tipo de mentalidade, indivíduo e sociedade que temos no século XXI? O que essa prática significa numa sociedade que se diz e que se quer autônoma?
Luiz Filipe Pondé – Autonomia é quase sempre figura do marketing de comportamento, como ser bem resolvido sexualmente. Não creio em grandes autonomias. A prática do tráfico de pessoas indica que a humanidade não mudou nas suas potencialidades de desumanização. Um erro comum nosso é achar que a política humaniza. A política é uma prática de institucionalizar conflitos e intenções; ela não tem nada a ver com moral (esta sim humaniza). É a moral dos afetos, quase impossível num mundo narcísico como o nosso.
IHU On-Line – Em que medida a “hipocrisia do amor à norma” fundamenta o rechaço da sociedade a práticas como o tráfico de pessoas e a prostituição?
Luiz Filipe Pondé – Penso que são duas práticas distintas e não necessariamente ligadas. Toda forma de violência se alimenta desse tipo de hipocrisia. No caso da prostituição, ela muitas vezes é praticada por pessoas que gostam de sexo. Não creio na vitimização universal das prostitutas... Claro que em caso de crianças a coisa é sem vontade mesmo. Ainda assim, que hipocrisia é a daqueles que falam que sexo é legal, que prostituta é profissional do sexo, mas quando Nelson Rodrigues afirma que a prostituta é uma vocação atávica de toda mulher, berram que isso é uma ofensa...
IHU On-Line – Qual é o lugar, o papel da cobiça no mundo do tráfico de pessoas?
Luiz Filipe Pondé – Não muito além do que em qualquer outra atividade ilícita.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Luiz Filipe Pondé – Nunca vai acabar o tráfico de gente porque a vida humana é barata e porque cada vez mais tem mais gente.
Baú da IHU On-Line
Leia a edição especial que a IHU On-Line publicou sobre o tema tráfico de pessoas.
* Tráfico de pessoas. A forma contemporânea de escravidão humana. Edição 414 da revista IHU On-Line, de 15-04-2013.
Leia mais...
Luiz Felipe Pondé já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:
* A mística judaica. Publicada na edição 133 da Revista IHU On-Line, de 21-03-2005, disponível em http://migre.me/2Uqa9
* Parricídio, niilismo e morte da tradição. Publicada na edição 195 da Revista IHU On-Line, de 11-09-2006, disponível em http://migre.me/2Uqgr
* A fé é dada pela graça. Publicada na edição 209 da Revista IHU On-Line, de 18-12-2006, disponível em http://migre.me/2Uqmj
* A Teologia da Libertação: será que ela não crê demasiadamente nas promessas modernas e na sua gramática hermenêutica? Publicada na edição 214 da Revista IHU On-Line, de 02-04-2007, disponível em http://bit.ly/aN0tOK
* “Perdão tem que ser graça”. Publicada na edição 388 da Revista IHU On-Line, de 09-04-2012, disponível em http://bit.ly/HskR3E
* Pecado: conceito que fala do nada moral que somos. Publicada na edição 412 da Revista IHU On-Line, de 18-12-2012, disponível em http://bit.ly/Wqvz6G