Edição 415 | 22 Abril 2013

Rousseau e o papel transformador do contrato

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Márcia Junges | Tradução de Luís Marcos Sander

Para o filósofo canadense David Gauthier, Hobbes recebe mais atenção de Rousseau do que qualquer outro pensador. Hegel, Marx e Durkheim serão influenciados pelo conceito de alienação rousseauniano

 

“Rousseau é o primeiro pensador moderno que trata o indivíduo como um ser que existe numa condição alienada e a reconhecer tanto os aspectos físicos quanto sociais/psicológicos dessa alienação. O caminho se abre para Hegel, Marx, Durkheim e muitos outros”. A análise é do filósofo canadense David Gauthier na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Ele explica que o primeiro parágrafo do capítulo 1 do Contrato social termina de modo “surpreendente”, onde Rousseau não pergunta como os grilhões que cerceiam a liberdade “poderão ser removidos, e sim o que pode legitimá-los. E é isso que seus escritos políticos tentam (e, deveria eu acrescentar, não conseguem) realizar”. E acrescenta: “A análise de Rousseau a respeito do que poderíamos chamar de queda do ser humano, da liberdade natural para a escravidão, é de tirar o fôlego em seu alcance e sua profundidade. Mas sua visão da redenção é uma cura que seria pior do que a doença. Sua principal relevância ou atualidade para a filosofia política consiste em oferecer, a despeito dele mesmo, uma advertência para não seguir seu exemplo em termos políticos”. Gauthier analisa a importância de Hobbes sobre os escritos rousseaunianos: “O que importa para Hobbes, portanto, são os atos de autorização que criam o soberano. O que importa para Rousseau é a substituição do que começou como liberdade natural, mas degenerou em alienação, pela liberdade civil que surge da identificação total com a Vontade Geral”. E pontua o papel transformador do contrato na existência do corpo coletivo, formulador da Vontade Geral.

David Gauthier é professor emérito de filosofia na Universidade de Pittsburgh, Estados Unidos. É autor de The Logic of Leviathan (Oxford: Clarendon Press, 1969), Morals by Agreement (Oxford: Oxford University Press, 1986) e da coleção de ensaios Moral Dealing: Contract, Ethics, and Reason (Ithaca, Cornell University Press, 1990), bem como de The Sentiment of Existence (Cambridge: Cambridge University Press, 2006). 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o lugar do conceito de liberdade na obra de Jean-Jacques Rousseau?

David Gauthier – A preocupação primordial de Rousseau, em seus escritos sociais e políticos, é mostrar como a sociedade veio a privar os seres humanos de sua liberdade natural e considerar se e como a liberdade poderá ser reavida. Para Rousseau, a liberdade exige que os poderes da pessoa sejam adequados para suas necessidades, de modo que ela não dependa da vontade de outras para sua satisfação e sobrevivência, mas unicamente de sua própria vontade. Em sua condição natural, os seres humanos tinham poucas necessidades, e seus poderes, embora limitados, eram adequados para satisfazer suas necessidades, e assim eles eram livres.

A sociedade priva seus membros dessa autossuficiência. Cada pessoa se torna dependente de outras para conseguir sua satisfação e sobrevivência. Cada uma delas, ao ser dependente da vontade de outras, deixa de ser livre. É o que diz o início do capítulo 1 do Contrato social: o ser humano nasce [para ser] livre, mas em toda parte ele está agrilhoado. No Discurso sobre a origem da desigualdade, Rousseau reconstitui a maneira como isso aconteceu, sustentando que a dependência é tanto física, resultante, em parte, da divisão do trabalho, quanto psicológica, de modo que os seres humanos, cujo primeiro sentimento é o de sua própria existência, só vem a obter esse sentimento sendo reconhecidos por outros. Assim, os seres humanos ficam alienados de si mesmos e perdem a liberdade pelo modo de funcionamento da sociedade.

Condição alienada

Rousseau é o primeiro pensador moderno que trata o indivíduo como um ser que existe numa condição alienada e a reconhecer tanto os aspectos físicos quanto sociais/psicológicos dessa alienação. O caminho se abre para Hegel , Marx , Durkheim  e muitos outros.

O primeiro parágrafo do capítulo 1 do Contrato social termina de uma maneira que parece surpreendente. Rousseau não pergunta como os grilhões poderão ser removidos, e sim o que pode legitimá-los. E é isso que seus escritos políticos tentam (e, deveria eu acrescentar, não conseguem) realizar. Ele desenvolve a ideia de uma sociedade da qual cada cidadão depende totalmente, mas com a qual cada um se identifica, de modo que ele obtém seu sentimento de existência do fato de ser membro do corpo coletivo. E, como membro, ele é livre – livre porque identifica sua vontade como parte da Vontade Geral, que dirige a sociedade. Incapazes de sobreviver física e psicologicamente em sua existência independente, os cidadãos constituem coletivamente um corpo que tem poder suficiente para satisfazer as necessidades.

Os grilhões não são removidos, mas fortalecidos. Porém eles não são mais símbolos de alienação. Ao vincular cada um com o todo, eles se tornaram símbolos de legitimação. Mas a legitimidade é aquela da democracia totalitária. Cada um só é livre na medida em que internaliza a Vontade Geral, pois só fazendo isso ele pode não depender de nenhuma vontade exceto de sua própria. Por conseguinte, Rousseau chega à conclusão de que a pessoa que queira resistir à Vontade Geral deve ser “forçada a ser livre” (CS 17). É sobre esse pano de fundo que passo a responder as perguntas.

IHU On-Line – Qual é a atualidade de Rousseau para a filosofia política?

David Gauthier – A análise de Rousseau a respeito do que poderíamos chamar de queda do ser humano, da liberdade natural para a escravidão, é de tirar o fôlego em seu alcance e sua profundidade. Mas sua visão da redenção é uma cura que seria pior do que a doença. Sua principal relevância ou atualidade para a filosofia política consiste em oferecer, a despeito dele mesmo, uma advertência para não seguir seu exemplo em termos políticos. Jean-Jacques era conhecido como o “Cidadão”, mas o sexto passeio dos Devaneios de um caminhante solitário deixa muito claro o abismo que o separa das fantasias do Contrato social.

IHU On-Line – Em que aspectos Hobbes  e Rousseau lançam as bases para o moderno pensamento social?

David Gauthier – Se o que eu disse na primeira resposta está correto, então a contribuição de Rousseau para os fundamentos da teoria social é dupla: ele introduz o tema da alienação e da perda da liberdade na sociedade moderna e nos mostra (em contradição com a concepção que tenta defender no Contrato social) onde NÃO deveríamos buscar uma solução.

Hobbes vê o problema para o qual as instituições sociais e políticas são a solução como a tendência dos indivíduos, quando deixados por conta de sua própria motivação natural, a interagir de formas que parecem individualmente racionais, mas são coletivamente muito custosas – a guerra de todas as pessoas contra todas. As pessoas fariam melhor em cooperar, caso consigam concordar com as condições para a cooperação e fazer com que essas condições sejam executadas, para impedir cada uma de tentar tirar proveito da cooperação de outras. Podemos concordar com os traços gerais do pensamento de Hobbes, embora encontremos mais ocasiões para a cooperação voluntária do que ele admite e, consequentemente, menos necessidade de um soberano absoluto como executor. O papel das instituições sociais na coordenação do comportamento cooperativo receberá maior atenção do que Hobbes lhe dá. O que está faltando na explicação de Hobbes é a ideia do governo por parte do povo – a ideia básica da democracia. Para Hobbes, é suficiente estabelecer o governo do povo e para ele.

Hobbes teve poucos seguidores. Sua explicação da condição humana natural foi rejeitada, mas, em minha opinião, mais por antipatia emocional do que por uma argumentação falha. Sua análise da lógica do conflito é, tanto quanto sei, sem igual até o desenvolvimento da teoria dos jogos . Mas a maior parte do pensamento social busca seus fundamentos em outros lugares, seja para o bem ou para o mal.

IHU On-Line – Quais são as diferenças fundamentais entre o contratualismo de Hobbes e o de Rousseau?

David Gauthier – Rousseau não é um pensador profundamente contratual. Ao escrever Do contrato social, ele estava empregando o marco conceitual de sua era. Rousseau atribui um papel transformador ao contrato, por fazer existir um corpo coletivo, que formula a Vontade Geral. Um contrato geralmente é concebido como um acordo que oferece benefícios mútuos às partes contratantes. Em Rousseau, as partes do contrato ou, como ele diz muitas vezes, do pacto parecem ser, por um lado, as pessoas enquanto indivíduos, que, aceitando a Vontade Geral, criam um corpo coletivo que é a outra parte do contrato e que aceita cada indivíduo como uma parte indivisível do todo coletivo. Isso significa usar a ideia do contrato de uma maneira muito nova.

Hobbes oferece uma explicação mais simples e direta de como o acordo produz um soberano, mas dever-se-ia observar que o passo crucial em seu argumento se encontra na autorização. Os futuros membros da sociedade concordam entre si que cada um dê a uma pessoa, ou assembleia, o direito de representá-lo ou de agir em seu nome. Cada um abre mão de seu direito natural de agir da forma que pareça melhor para si e aceita o soberano como aquele que age por todos eles, com a finalidade de que a paz e a cooperação substituam a guerra e a competição destrutiva.

O que importa para Hobbes, portanto, são os atos de autorização que criam o soberano. O que importa para Rousseau é a substituição do que começou como liberdade natural, mas degenerou em alienação, pela liberdade civil que surge da identificação total com a Vontade Geral.

IHU On-Line – Como se mesclam o contratualismo, a ética e a razão nas obras desses pensadores?

David Gauthier – Diz Hobbes: “a razão sugere artigos convenientes da paz, com base nos quais os seres humanos poderão ser levados para um acordo [isto é, contrato]. Esses artigos são aqueles que, de outro modo, são chamados de leis da natureza” (Leviatã, cap. 13). “Uma lei da natureza é um preceito ou regra geral, descoberto pela razão, pelo qual uma pessoa é proibida de fazer aquilo que destrói sua vida ou tira os meios de preservá-la, e de deixar de fazer aquilo que ela pensa que melhor poderá preservar sua vida” (ibid., cap. 14). “Ora, a ciência da virtude e do vício é a filosofia moral, e, por isso, a verdadeira doutrina das leis da natureza é a verdadeira filosofia moral” (ibid., cap. 15).

Diz Rousseau: “Essa transição [via contrato social] do estado da natureza para o estado civil produz uma mudança extremamente notável no ser humano substituindo o instinto pela justiça em sua conduta e dotando suas ações da moralidade de que careciam anteriormente” (CS I.8). A razão não desempenha um papel central na concepção de Rousseau.

IHU On-Line – Em que medida a filosofia de Rousseau é um marco decisivo para a política do nosso tempo, a fim de pensarmos e fazermos democracia?

David Gauthier – Rousseau não é um democrata. Para ele, a democracia é um modo de exercer o poder executivo, e está subordinada ao poder legislativo, que expressa a Vontade Geral. Rousseau pensa que diferentes modos de poder executivo são apropriados para diferentes sociedades. Os estados pequenos e pobres são os que mais se prestam para o governo democrático. Esse não é um início promissor para “a teoria e a prática da democracia” no mundo moderno.

Eu disse que Rousseau é o a primeiro a adotar o que, seguindo Talmon e outros, chamei de democracia totalitária. Contudo, essa certamente não é a linguagem usada por Rousseau. Isso não é uma forma de governo, mas, para Rousseau, a única forma legítima que a soberania pode assumir. A Vontade Geral suplanta as vontades dos indivíduos e, em termos ideais, faz isso totalmente. Isso pode ser chamado de democracia porque a Vontade Geral vem de todo mundo e se aplica a todo ele, de maneira igual. Mas não é democracia liberal, nem democracia social, assim como esse termo veio a ser atribuído ao moderno Estado de bem-estar que aceita o livre mercado. Isso é mais semelhante a sociedades que visam produzir o “novo homem soviético” suplantando o indivíduo burguês.

Eu hesitaria antes de acusar Rousseau de defender o totalitarismo moderno. Mas o mais semelhante a ele no mundo da Antiguidade foi Esparta, cujas instituições ele aprovava. E na sexta das Cartas escritas da montanha Rousseau diz que os leitores do Contrato social dirão que ele escreveu “a história do governo de Genebra”. Aquela oligarquia calvinista rígida não é modelo para pensadores democráticos.

IHU On-Line – Quais são as grandes influências intelectuais de Rousseau?

David Gauthier – Hobbes recebe mais atenção de Rousseau do que qualquer outro pensador. Mas as diferenças de Hobbes em relação a Rousseau são mais profundas do que Rousseau reconhece. O projeto hobbesiano consiste basicamente em mostrar a justificação da autoridade política para tornar a paz e a cooperação possíveis para seres humanos que estão naturalmente em conflito uns com os outros. O projeto de Rousseau – repetindo o aspecto principal de minha exposição – consiste em restaurar a liberdade para pessoas que são naturalmente livres, mas perderam sua liberdade natural à medida que a sociedade se tornou crescentemente ubíqua.

Além de Hobbes, Rousseau foi – o que não causa surpresa – afetado por Maquiavel , que, segundo ele, foi comumente mal entendido, e Montesquieu . E, é claro, os autores clássicos, Platão  e Aristóteles , são significativos para ele.

IHU On-Line – Quem são seus grandes interlocutores, seus contemporâneos?

David Gauthier – Diderot , o pai da grande Enciclopédia, e Voltaire, defensor de déspotas esclarecidos, foram os principais rivais de Rousseau (embora Diderot tenha sido originalmente seu amigo). Rousseau acreditava que o iluminismo aumentou a alienação dos seres humanos em relação à sua verdadeira identidade, em vez de promover a liberdade. Rousseau está, é claro, ligado com Hume, mas como convidado (paranoico) e anfitrião (bem intencionado). Mas eles não estavam intelectualmente envolvidos, como Rousseau estava com Diderot e Voltaire.

 

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