Edição 414 | 15 Abril 2013

Teologia do Holocausto: reflexões sobre o massacre nazista

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Márcia Junges

FINGUERMAN, Ariel. Teologia do Holocausto. São Paulo: Paulus, 2012. Jornalista e filósofo Ariel Finguerman examina os impactos da Shoá para as religiões e observa que a segunda e terceira gerações de sobreviventes continuam a ser impactadas pelo genocídio

Como compreender que na pátria de Goethe e Beethoven tenha florescido uma ideologia assassina, movida pelo ódio e que matou milhares de pessoas “indesejáveis”? O que esse acontecimento provocou na estrutura das religiões? É a partir dessa perspectiva que Ariel Finguerman escreveu Teologia do Holocausto (São Paulo: Paulus, 2012), fruto de seus estudos na Universidade de Tel Aviv e na Universidade Hebraica de Jerusalém. Segundo ele, na entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail, uma das maiores reflexões da obra é onde estava Deus enquanto os campos de concentração espalhavam o terror entre seus prisioneiros. Ocorre “que a Bíblia não garante um livre arbítrio absoluto ao ser humano”, adverte. “Então simplesmente não podemos explicar o nazismo por um livre arbítrio absoluto, se formos seguir a Bíblia”. E completa: “A tradição judaico-cristã aposta num Deus ativo e justo, portanto cada nova catástrofe coloca esta questão novamente no centro do debate. Talvez o budista, que se concentra mais no potencial humano e menos em teologia, possa encarar melhor esta situação”. Paradoxalmente, a Shoá fomentou um diálogo entre o catolicismo e o judaísmo, para além dos dois mil anos de conflitos entre ambos os credos: “Vivemos um novo tempo de diálogo e amizade. As cabeças estão mudando, sem que se precise abrir mão de crenças. Penso que isto é bem melhor, algo que devemos fazer em nome das futuras gerações”. Ele se diz esperançoso com a sinalização do Papa Francisco em aprofundar o diálogo inter-religioso. 

Há mais de dez anos radicado em Israel, Ariel Finguerman é graduado em Filosofia e Jornalismo pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em Judaísmo pela mesma instituição. Seu doutorado foi cursado também na Universidade de Tel Aviv. É pós-doutor pela Universidade Hebraica de Jerusalém com a temática da Teologia do Holocausto. Para maiores informações, visite seu site http://arielfinguerman.com/.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a Teologia do Holocausto? Quais são suas especificidades em relação à teologia tradicional?

Ariel Finguerman – Teologia do Holocausto é o nome que se dá para o conjunto das reflexões a respeito do massacre nazista e seu impacto nas estruturas da religião. Há ali pensadores judeus, cristãos e acadêmicos em geral. É um campo de reflexão que existe bem assentado nos EUA, Europa e Israel, mas pouco debatido no Brasil. O objetivo do meu livro foi trazer este debate para o país. 

IHU On-Line – Quais são as grandes perguntas religiosas que o Holocausto despertou?

Ariel Finguerman – O Holocausto abalou algumas dos nossos mais fundamentados pilares da religião. Tanto judaísmo quanto cristianismo acreditam numa divindade que se preocupa com os seres humanos. A Bíblia diz que a divindade pune os perversos e abençoa os justos. Afirmações como estas foram desafiadas pelos fatos que se passaram nos guetos e campos de concentração nazistas.

IHU On-Line – Em que aspectos essa obra analisa “onde estava Deus” enquanto ocorria o Holocausto?

Ariel Finguerman – Esta é uma questão que provavelmente nunca poderemos responder. Podemos apenas abordá-la com nossos instrumentos teóricos da teologia. A Bíblia nos diz que Deus “oculta sua face”, isto é, afasta-se eventualmente dos assuntos mundanos, tanto como punição ao pecado quanto pela própria característica da divindade. É um Deus que eventualmente se distancia de nós. É uma forma de responder onde Ele estava.

IHU On-Line – Em que sentido é um desafio conciliar o massacre nazista com uma religião que define a Divindade como justa, boa e preocupada com assuntos humanos?

Ariel Finguerman – Após grandes tragédias da história, desde um tsunami violento até a queda de um avião ou um massacre de civis, retornamos a este desafio. A tradição judaico-cristã aposta num Deus ativo e justo, portanto cada nova catástrofe coloca esta questão novamente no centro do debate. Talvez o budista, que se concentra mais no potencial humano e menos em teologia, possa encarar melhor esta situação.

IHU On-Line – Quais são suas reflexões fundamentais sobre o livre arbítrio a partir da Shoá?

Ariel Finguerman – Se entendemos o ser humano como dotado de livre arbítrio, um dom doado pela própria divindade à humanidade, então podemos explicar o fenômeno nazista sem comprometer Deus. Afinal, Hitler chegou ao poder através de eleições democráticas e limpas. Mas o ponto é que a Bíblia não garante um livre arbítrio absoluto ao ser humano. Lembremos o episódio do faraó do Êxodo, que quis deixar os israelitas saírem do Egito, mas Deus como que invadiu sua mente para “endurecer seu coração”. Então simplesmente não podemos explicar o nazismo por um livre arbítrio absoluto, se formos seguir a Bíblia.

IHU On-Line – Em que sentido o judaísmo e o cristianismo foram desafiados de formas diferentes a partir desse fato histórico?

Ariel Finguerman – Realmente o desafio foi diferente. Para o judaísmo, o nazismo representou uma contestação teológica, ao colocar em questão a ideia de um povo escolhido amado por Deus. Também representou um desafio prático, de como seguir adiante após perder um terço do povo judeu de forma brutal. Já o cristianismo foi desafiado pela questão de como explicar o aparecimento de uma ideologia assassina, talvez a mais radical da história, no seio da civilização cristã ocidental.

IHU On-Line – Pode-se dizer que a Shoá abriu uma frente de diálogo entre judaísmo e cristianismo? Por quê?

Ariel Finguerman – Sem dúvida. A Shoá impactou tremendamente a consciência ocidental. Percebeu-se até onde podem ir ideologias que haviam surgido pouco antes, no século XIX, como o racismo ou o nacionalismo extremado. Por conta do Holocausto e da violência generalizada da Segunda Guerra Mundial, o colonialismo foi colocado em xeque e foi criada a ONU. Também os líderes religiosos se conscientizaram da necessidade de controlar extremismos religiosos e da importância do diálogo entre as fés. 

IHU On-Line – Em que medida o diálogo inter-religioso entre judaísmo e cristianismo pode trazer avanços rumo à paz e à fraternidade mundiais? Esse diálogo avançou desde o final da guerra, em 1945?

Ariel Finguerman – Durante dois mil anos, o relacionamento entre judaísmo e cristianismo foi de conflito verbal e físico, realmente uma história triste. Mas vivemos um novo tempo de diálogo e amizade. As cabeças estão mudando, sem que se precise abrir mão de crenças. Penso que isso é bem melhor, algo que devemos fazer em nome das futuras gerações.

IHU On-Line – O que se pode esperar do Papa Francisco em relação ao diálogo inter-religioso entre cristianismo judaísmo?

Ariel Finguerman – Percebe-se claramente na Igreja uma sequência de papas sensacionais quanto ao diálogo inter-religioso, não só com o judaísmo, mas com as demais religiões, especialmente a partir de João Paulo II. Acho que não é exagero afirmar que o catolicismo hoje está na vanguarda do diálogo inter-religioso. Mesmo papas conservadores em relação à vida católica interna se colocam como extremamente liberais e abertos em relação a este diálogo. O Papa Francisco já sinalizou que continuará nesta linha.

IHU On-Line – Como podemos compreender o paradoxo de que o Holocausto tenha ocorrido dentro da cultura europeia cristã?

Ariel Finguerman – É difícil compreender isto e esta é mais uma faceta que torna o Holocausto um caso tão exemplar. Pois se tivesse acontecido numa cultura atrasada, sempre poderíamos dizer que se tratou de um incidente na História, fruto de falta de civilização. Mas a Shoá foi perpretada por uma cultura avançada, a mesma que nos deu Goethe e Beethoven. É uma grande lição, de que a barbárie pode acontecer vitualmente em qualquer lugar do mundo, também no Brasil ou em Israel.

IHU On-Line – Como analisa o posicionamento de Pio XII e da Igreja Católica da época em relação ao Holocausto?

Ariel Finguerman – Esta é uma questão complexa e difícil de ser equacionada. De um lado, o nazismo em sua época despertou certa simpatia, especialmente antes de se tornar uma ideologia assassina, por seu anticomunismo. Havia um temor do avanço da ideologia ateia dos soviéticos, que perseguia igrejas, e Hitler parecia um tipo de solução. Havia também até 1942 a ameaça real de vitória nazista sobre toda a Europa. Some-se a isso um histórico de antissemitismo na Europa de pelo menos mil anos, havia ali um ódio que hoje nem imaginamos. Tudo isso levou a uma passividade geral quando os nazistas começaram a literalmente caçar judeus. Por outro lado, podemos imaginar que se o Papa Pio XII tivesse condenado abertamente a perseguição, talvez tivesse mudado a história. Basta lembrar que o próprio Hitler nasceu numa família católica.

IHU On-Line – Como interpreta o pedido de perdão de Bento XVI ao povo judeu?

Ariel Finguerman – Pedido de perdão vindo de um papa é um gesto muito significativo, uma mão estendida que deve ser apertada pelas lideranças judaicas. Bento XVI, um grande teólogo, é também alemão e foi alistado na Juventude Hitlerista. É algo muito impactante, um exercício de teologia em si. Em nome das futuras gerações, é uma mão que deve ser apertada e abraçada.

IHU On-Line – Vivendo em Israel há mais de uma década, como avalia os impactos do Holocausto na vida e na memória do povo judeu?

Ariel Finguerman – Aqui a memória do Holocausto tem um impacto enorme na vida nacional. Há ainda cerca de 200 mil sobreviventes entre nós. Aos poucos eles estão desaparecendo, mas os psicólogos falam da “segunda geração” e da “terceira geração” de sobreviventes, ou seja, jovens israelenses descendentes destas pessoas continuam impactados pela Shoá. Há também um impacto político muito importante. Cada vez que um líder árabe ou muçulmano menciona a “destruição de Israel”, isto bate forte na psique nacional e provoca uma reação muito forte, às vezes até desproporcional.

Leia mais...

Leia uma edição especial da IHU On-Line relacionada com a temática do Holocausto.

* Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da barbárie. Edição 265, de 21-07-2008, disponível em http://bit.ly/XrVbMz 

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