Edição 199 | 09 Outubro 2006

As concepções grega e moderna sobre o vácuo

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II Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Século XXI: um diálogo desde a Filosofia

Analisar As concepções grega e moderna sobre o vácuo. Esse é o tema da palestra que o Prof. Dr. Roberto de Andrade Martins, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), profere nesta quarta-feira, 11-10-2006, em continuidade à programação do evento II Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Século XXI: um diálogo desde a Filosofia. A atividade acontece na Sala 1G119 do IHU das 17h30min às 19h. Por e-mail, ele afirmou com exclusividade à IHU On-Line que não existe uma postura unânime a respeito do vácuo na ciência recente. E que, durante o evento, ele pretende “colocar o dedo na ferida, indicando que os cientistas recentes se esqueceram de pensar sobre o que estão falando e por isso, em diversos momentos históricos, acreditaram que podiam estabelecer aquilo que a ciência não pode atingir”.

Graduado em Física pela Universidade de São Paulo (USP), Martins é doutor em Lógica e Filosofia da Ciência pela Unicamp com a tese Sobre o papel dos desiderata na ciência e pós-doutor pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. É autor de Commentariolus - Pequeno Comentário de Nicolau Copérnico Sobre Suas Próprias Hipóteses Acerca dos Movimentos Celestes. São Paulo: Nova Stella, 1990 e O Universo: Teorias Sobre Sua Origem e Evolução. São Paulo: Moderna, 1994 e um dos organizadores de Filosofia e História da Ciência no Cone Sul: 3º Encontro. Campinas: Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC), 2004.

Idéias antigas e recentes a respeito do vácuo

IHU On-Line - Em que consistem as concepções grega e moderna sobre o vácuo?

Roberto de Andrade Martins
– Entre os antigos gregos, é necessário distinguir entre os que aceitavam o vácuo (e que eram uma minoria) e os que negavam a sua possibilidade (a maioria). Para os atomistas, que defendiam sua existência, o vácuo seria um lugar (ou espaço) sem nenhum corpo. Para os críticos do atomismo, o vácuo seria o nada absoluto, o não-ser, que pelo seu próprio conceito não pode existir. Parmênides  e os demais eleatas, bem como Platão e Aristóteles (apenas para mencionar alguns nomes) negaram a possibilidade do vácuo porque lhes parecia que esse conceito levava a contradições. Durante a Idade Média, predominou a idéia de que seria impossível um vácuo e que provavelmente nem Deus seria capaz de produzir um espaço vazio. No entanto, no início da Idade Moderna, o estudo e debate sobre o antigo atomismo levou a novas posturas, menos críticas. Em meados do século XVII, ficou claro que era possível produzir, artificialmente, espaços em que parecia não haver nenhuma matéria, como nos experimentos de Evangelista Torricelli . René Descartes  admitiu a validade dos experimentos, mas interpretou-os supondo que o espaço aparentemente vazio estava repleto de uma matéria invisível e sutil, capaz de passar pelos poros da matéria grosseira. Blaise Pascal , pelo contrário, defendeu que aquele espaço era realmente um vácuo, no sentido de um espaço absolutamente vazio. Houve na época um forte debate filosófico, no qual (em minha opinião) os argumentos contra o vácuo absoluto eram os mais fortes. No entanto, as pessoas que tinham mais interesse no estudo empírico da natureza do que na filosofia acabaram deixando de lado essas discussões e foram se acostumando com a idéia do vácuo.

Pode-se dizer que, no século XVII, a visão predominante era a de que existe vácuo nos poros da matéria sensível e também no espaço celeste. A física de Isaac Newton  contribuiu para isso, porque ele próprio mostrou que a existência de qualquer matéria invisível no espaço celeste deveria perturbar o movimento dos planetas, e essa perturbação não era observada. Porém, ocorreram depois novas oscilações da opinião científica. No início do século XIX, a luz passou a ser considerada como uma onda, e essa teoria trouxe consigo a aceitação de um éter luminífero – uma substância invisível que preencheria todo o espaço e cujas oscilações constituiriam a luz. A teoria eletromagnética de James Clerk Maxwell  também admitia a existência de um éter, que seria o agente responsável pelas forças entre cargas elétricas. Assim, não haveria espaços vazios no sentido absoluto – apenas espaços sem matéria comum. Em certo sentido, era uma opinião semelhante à de Descartes.

No início do século XX, a opinião geral muda novamente, principalmente por influência do empirismo da teoria da relatividade especial de Albert Einstein , que negava a validade de se utilizar na ciência um conceito de algo não-observável, como o éter. O universo se tornou novamente vazio, um imenso espaço do qual os átomos (e outras partículas) ocupam apenas pequenas porções. Essa foi a visão predominante, no século XX. No entanto, o próprio Einstein, em 1920, passou a defender a existência de um éter e a negar a existência de um espaço absolutamente vazio. Outros físicos importantes, como Paul Dirac , também retornaram a um éter. Mais recentemente, vários físicos têm proposto teorias em que não existe um espaço totalmente vazio. Não existe, portanto, uma postura unânime a respeito desse assunto, na ciência recente.

IHU On-Line - Conforme a concepção de Physis de Demócrito , a natureza é constituída por átomos e vácuo. Em que aspectos essa teoria ainda possui atualidade? Quais são suas principais limitações?

Roberto de Andrade Martins
– A idéia de átomos (ou de partículas elementares, durante o século XX) teve enorme influência na ciência recente, mas tem problemas graves. A idéia de um ente físico sem partes, que não pode ser decomposto, pode ser aplicada à matéria que conhecemos desde que utilizemos instrumentos pouco poderosos para romper a matéria. À medida que se utilizam energias progressivamente mais altas, são encontrados progressivamente novos níveis e estruturas naquilo que antes parecia não ter partes. Não há nenhum motivo para se acreditar que se possa chegar, algum dia, a partículas absolutamente sem partes, que não possam ser decompostas. No entanto, em muitos campos científicos, é útil tratar os átomos químicos ou as partículas “elementares” como se não tivessem estrutura.
Quanto ao vácuo, a situação é semelhante. Para estudarmos o movimento de um planeta em torno do Sol, supomos que o espaço em que ele se move é vazio. Mas para estudarmos o próprio campo gravitacional que dirige o movimento do planeta, ou para compreender a estrutura do universo, parece que não é possível fazer essa suposição. Como geralmente os cientistas não estão muito preocupados com os princípios últimos das coisas, e sim com o funcionamento de campos restritos de experiência, eles costumam utilizar os conceitos de átomo (ou partícula elementar) e de vácuo quando isso é conveniente, abandonando os mesmos conceitos em outros domínios.

IHU On-Line - Como essas concepções grega e moderna auxiliaram, em seu tempo, para um entendimento mais ampliado do Universo e da vida que nele surgiu?

Roberto de Andrade Martins
– Sob muitos aspectos, as concepções dos atomistas gregos eram semelhantes a algumas idéias científicas modernas, e por isso os cientistas têm uma tendência a valorizar muito aqueles pensadores. O universo dos atomistas antigos era ilimitado e infinito, eterno, dinâmico, movido pela necessidade (e não por objetivos e finalidades), mas permitindo o surgimento e destruição de infinitas possibilidades na natureza. A própria Terra não podia ser eterna, portanto ela deveria ter se formado em algum movimento, pela reunião de átomos; os próprios seres vivos não podiam ser eternos, portanto também deviam ter uma origem e sofrer transformações, sendo meras combinações temporárias de átomos. Embora a matéria seja eterna (ou seja, os átomos existem sempre), suas formas são temporárias e mutáveis. Pode-se considerar que a busca da origem de cada coisa (inclusive da própria vida) é uma contribuição importante dos atomistas. Também se pode considerar que a tentativa de explicar todos os fenômenos naturais de forma puramente mecânica (pelos movimentos, junções e separações dos átomos) foi extremamente importante e influente.

No entanto, não devemos avaliar o pensamento antigo por sua semelhança com o pensamento moderno, nem por sua aceitação ou rejeição posterior, e sim em sua própria época. Sob o ponto de vista do estudo do universo e da própria vida, não foram os atomistas que lideraram as pesquisas na Antigüidade. Os mais conhecidos astrônomos antigos não eram atomistas; e o mais influente naturalista da Antigüidade foi Aristóteles, que negava o atomismo. Se apagarmos mentalmente da história os estudos aristotélicos sobre os animais, ou a teoria de Hiparco  e Ptolomeu  sobre o movimento dos planetas, teremos uma enorme perda “científica” (para usar um anacronismo); se apagarmos mentalmente da história os atomistas, teremos uma enorme perda filosófica, mas não sob o ponto de vista de conhecimentos a respeito da estrutura do universo e sobre os seres vivos.

IHU On-Line - De que forma é possível pensar a liberdade e o acaso, pressupondo a existência do vácuo?

Roberto de Andrade Martins
– Como vemos no De rerum natura de Lucretius , os atomistas queriam libertar a humanidade do temor com relação aos deuses e àquilo que poderia existir depois da morte. A teoria atomística (não a mera aceitação do vácuo) negava a existência de seres imateriais, negava a existência de um criador do universo, negava um mundo ocupado pelos espíritos dos mortos, eliminava todo sentido da religião tradicional grega. Ela procurava dar uma liberdade moral aos seres humanos. O homem deve criar seus próprios valores, eles não vêm dos deuses. Por sua vez, o atomismo enfatizava que os fenômenos naturais seguem uma necessidade inexorável, que os movimentos dos átomos produzem tudo o que existe, o que gerava a dúvida: pode existir alguma ação livre, ou tudo o que fazemos é automático? Se tudo é necessário, não há escolhas, portanto não há liberdade. Lucretius procurou abrir um caminho para a liberdade, introduzindo o conceito de clinamen dos átomos, um desvio espontâneo e imprevisível, que os leva a não seguirem estritamente linhas retas em sua queda. Em certo sentido, logo, há um acaso no movimento dos átomos, e essa quebra do determinismo poderia abrir caminho para a concepção de liberdade de escolha humana. Há dúvidas, no entanto (de que partilho), de que essa pudesse ser uma boa solução para o problema.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Roberto de Andrade Martins
– Sim. Em minha opinião, não são as crenças ou doutrinas que têm importância, e sim a discussão das mesmas. Aceitar de forma acrítica uma idéia (qualquer que ela seja) é uma postura pobre, do ponto de vista intelectual. Por isso, a atitude mais comum entre os cientistas, que é exatamente a de acreditar (sem questionar) naquilo que lhes ensinaram, é algo que me incomoda muito. A comparação entre a ciência recente e o pensamento antigo pode ajudar a romper essa inércia intelectual, se as pessoas perceberem que há problemas que não foram resolvidos, que há também problemas que jamais poderão ser resolvidos pela ciência, que há limites que não podem ser ultrapassados pela observação e pela experimentação e que por trás de tudo há problemas filosóficos importantes.
Escolhi para tema de minha palestra a comparação entre idéias antigas e recentes a respeito do vácuo, não para mostrar simplesmente que há semelhanças e diferenças, mas para colocar o dedo na ferida, indicando que os cientistas recentes se esqueceram de pensar sobre o que estão falando e por isso, em diversos momentos históricos, acreditaram que podiam estabelecer aquilo que a ciência não pode atingir. Mais claramente: jamais será possível estabelecer cientificamente que existe um espaço absolutamente vazio (sem éter ou algo equivalente); e a própria idéia de um espaço absolutamente vazio levanta problemas filosóficos que jamais foram solucionados. Os cientistas precisam conhecer um pouco mais de filosofia, para não fazerem afirmações falsas – como a de que “já foi provado que o vácuo existe” – e para evitarem outras ingenuidades semelhantes.

 

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