Edição 411 | 10 Dezembro 2012

A espiral da violência, a superação do ressentimento e a gratuidade do bem

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Márcia Junges / Tradução: Márcia Junges

Sistema ambíguo que pode gerar muitos sofrimentos, a religião precisa abandonar seu lado sacrificial, pondera Carlos Mendoza. Ações cotidianas, dos justos, é que mudam o curso da história e permitem que a humanidade continue a existir

“As pessoas não perdem a esperança. A partir dessas vítimas com seus atos de solidariedade é que podemos começar a reconstruir um mundo um pouco diferente”, disse o teólogo mexicano Carlos Mendoza, na entrevista que concedeu pessoalmente à IHU On-Line por ocasião de sua vinda ao Congresso Continental de Teologia, sediado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em outubro. A seu ver, é preciso descobrir na exclusão os atos de “gratuidade, de doação e amor não recíproco, de generosidade. Em meio a tanta exclusão as pessoas não se desumanizam, mas chegam a tocar o fundo de si mesmas e dar o melhor de si aos outros”. Ele fala, ainda, que muitos pensadores tem proposto uma religião sem religião, que excluiria a mentalidade sacrificial, através da qual sempre há necessidade de uma vítima. “Esses autores dizem que a religião é um sistema de poder, crenças e ritos e como sistema gera sacrifícios, exclusão e algum tipo de sofrimento. Por isso se afirma que a religião só corresponde a um momento da vida espiritual. Há outro que vai mais além da religião, e os místicos e profetas de todas as religiões são incômodos para as suas instituições porque as colocam em questionamento”. Mendoza acentua que é nos gestos cotidianos de homens e mulheres comuns que a humanidade consegue sobreviver: “De outro modo, já teríamos nos destruídos todos se não houvesse homens e mulheres que detêm a espiral de violência em sua própria vida cotidiana”.

Carlos Mendoza-Alvarez se formou em Filosofia, pela Universidade Autônoma do México, e fez doutorado em Teologia, em Paris e Friburgo (Suíça). Em sua tese de doutorado procurou tecer um diálogo com o pensamento hermenêutico de Paul Ricoeur, a ética da alteridade de Emmanuel Levinas e a teoria mimética de René Girard. Dentre seus escritos, destaca-se o livro O Deus escondido da pós-modernidade: desejo, memória e imaginação escatológica. Ensaio de teologia fundamental pós-moderna (São Paulo: É Realizações, 2011). Mendoza participou do Congresso Continental de Teologia falando sobre o tema “modernidade e pós-modernidade”.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Entre avanços e recuos, como analisa os 40 anos da Teologia da Libertação?

Carlos Mendoza –
Analiso como um sinal dos tempos da recepção criativa do Concílio Vaticano II  na América Latina. Isso quer dizer que a Teologia da Libertação é uma experiência eclesial, de pensamento e cultura afortunada que temos desse Concílio. Isso porque tomou muito a sério e a fundo os desafios do mundo moderno, visto desde o reverso da história, ou seja, a partir das vítimas, dos excluídos, dos pobres, coisa que o Concílio Vaticano II assinalou com os sofrimentos, alegrias, tristezas e angústias dos pobres. Nas conferências de Medellín tomou-se a sério um pensamento teológico que lhe deu articulação teórica com presença nos processos sociais – a Teologia da Libertação.


IHU On-Line – A partir dessa realidade pós-moderna, quais seriam os principais desafios dessa teologia?

Carlos Mendoza –
O principal desafio é se abrir aos excluídos de todo o sistema de dominação e a partir daí reler a passagem de Deus como fizeram a primeira geração de teólogos, falando dos pobres desde sua experiência de empobrecimento social, econômico e cultural. Agora temos consciência de que há outras expressões da exclusão e do sofrimento, e a Teologia da Libertação dá espaço para inspirar muitas teologias novas, contextualizadas por grupos como as mulheres. A teologia feminista se sabe e se diz devedora da Teologia da Libertação. Claro que agora ela caminha sozinha. Trata-se de uma teologia que as mulheres constroem a partir de sua experiência pessoal de empoderamento, de sua situação como consequência da exclusão, de sua busca por um outro tipo de racionalidade e comunhão. Isso quer dizer que a Teologia Feminista é um bom exemplo de como a teologia latino-americana enriqueceu com essas outras vozes, com novas identidades.

Contudo, seguem-se pendentes outros grupos, como os povos originários latino-americanos, que em 1992, data do quinto centenário da chegada de Colombo às Américas, reafirmam sua identidade para serem povos não colonizados, com sua própria língua, tradições, práticas jurídicas e identidade cultural, além dos símbolos religiosos. Essa é outra teologia que é muito vital e produtiva nos últimos anos, também filha do Concílio Vaticano II e da Teologia da Libertação.


IHU On-Line – Como podemos compreender que haja uma religião sem religião?

Carlos Mendoza –
Essa é uma tendência apontada por vários autores, sejam teólogos ou líderes espirituais, porque a religião está associada ao sacrifício. Há uma mentalidade sacrificial segundo a qual sempre necessitamos de alguma vítima, como diz Girard  e outros pensadores. Esses autores dizem que a religião é um sistema de poder, crenças e ritos e como sistema gera sacrifícios, exclusão e algum tipo de sofrimento. Por isso se afirma que a religião só corresponde a um momento da vida espiritual. Há um outro que vai mais além da religião, e os místicos e profetas de todas as religiões são incômodos para as suas instituições porque as colocam em questionamento. Foi o que fizeram São João da Cruz , Santa Teresa  e grandes místicos antigos e modernos que acentuam ser a instituição um meio apenas, e não um fim. Diversos autores dizem que a religião, às vezes, separa em vez de unir. As guerras religiosas são uma contradição e sem dúvida são a violência mais terrível que a humanidade já conheceu – tudo em nome de Deus. Hoje nos damos conta de que a religião é um sistema ambíguo que pode gerar grandes sofrimentos. Por isso alguns autores dizem que é preciso ir mais além do sistema de crenças, doutrinas e moral para então entrar numa dimensão mais contemplativa da experiência religiosa. Os meios se demonstram curtos porque a experiência é mais rica e comprometedora, o que representa um desafio ao falar de religião sem religião. Isso implica em mais mística e experiência espiritual, além de mais compromisso ético. O que tal pensamento propõe é ir mais além da religião, em sua experiência originária.


IHU On-Line – A exclusão tem muitos rostos. Como podemos compreender que através desses rostos, dessa alteridade, se revele o rosto de Deus?

Carlos Mendoza –
Porque nesses rostos e experiências de gratuidade há algo que transcende os limites do humano e do mal. Isso que dizer quer através de uma pessoa que compartilha seu pão, que perdoa e guarda a memória dos que foram sacrificados, que supera seu ressentimento, graças a esses atos concretos a humanidade pode sobreviver. De outro modo, já teríamos nos destruídos todos se não houvesse homens e mulheres que detêm a espiral de violência em sua própria vida cotidiana. Não se trata de grandes atos heroicos, mas a partir de uma perspectiva de reverter em seu corpo, em sua sensibilidade e inteligência, toda a violência, transformando-a em outra coisa. Isso fazem os pais de família com seus filhos, o artista ao criar, o líder social que promove uma mudança de justiça para sua comunidade. As ações dos justos não são espetaculares, são cotidianas, e é isso que faz mudar a história. A história existe graças a esses pequenos atos cotidianos de generosidade, de justiça e compromisso com a verdade. Essa é a vida. Devo “pagar” essa fatura porque estou habitado por uma força interior que chamamos de Deus. Por isso os justos são seres transparentes, translúcidos, íntegros de coração. São pessoas coerentes com seus princípios de escuta, abertura e simpatia para com o Outro.


IHU On-Line – Hans Küng disse que o Concílio Vaticano II foi uma espécie de dislexia. A partir dessa afirmação, pode-se pensar que a teologia de Roma seria como a coruja de Minerva de Hegel, que só levanta voo ao entardecer, ou seja, chega tarde demais para um mundo em constante mutação?

Carlos Mendoza –
Creio que inclusive em Roma há muitas teologias. Há uma que é mais solene e oficial quando se expressa em documentos dirigidos aos bispos e à Igreja em geral. Nos encontros mais pessoais, com pastores ou líderes, há outras compreensões mais benevolentes e compassivas, menos formais. Há uma tendência a centralizar a discussão e fechá-la nos debates, mantendo a autoridade. Mas isso não é exclusivo da igreja hierárquica, mas das instituições de poder, inclusive como as empresas. Creio que esse seja o problema: devemos compreender a Igreja como mais do que uma empresa ou um sistema de poder. A Igreja existe desde o primeiro inocente que foi vitimado. Creio que devemos ter uma compreensão de Igreja mais inclusiva da história humana, porque essa instituição existe como grande projeto para que nós humanos vivamos com um pouco mais de dignidade.


Leia mais...

Carlos Mendoza
já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

* É possível falar de Deus na sociedade contemporânea? Edição 404, de 05-10-2012

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