Edição 411 | 10 Dezembro 2012

Poética da agoridade, deslizamento e permanência

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Márcia Junges e Thamiris Magalhães

Condição existencial nos trópicos, permeada por uma atitude afirmativa frente à vida, é um dos traços tropicalistas, destaca Júlio Cesar Valladão Diniz. Flertando com a literatura, deglutindo a bossa nova, a jovem guarda e influências estrangeiras, cria o inusitado
Imagens do Brasil e exterior foram devoradas, deglutidas e devolvidas, acentua Valladão

 

“O ser tropical é um mulato que deliberadamente contrabandeia do exterior a matéria prima da nossa cultura, seja ela europeia ou africana, transformando a diáspora em lugar de deslizamento e permanência. Até hoje”, assegura Júlio Cesar Valladão Diniz em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Essa “poética da agoridade” tem na afirmação da vida no presente grande parte de sua fundamentação. “O tropicalismo fecha a porta modernista sem nostalgia e olha pela fresta o devir-pós-moderno sem nenhum desejo de colonizar o futuro, utilizando a imagem de Octavio Paz”, menciona. Além de movimento cultural e artístico, devemos entender o tropicalismo como um modo de ser, “uma maneira cosmopolita e contemporânea de olhar e tentar compreender o país, a sociedade brasileira, seus dilemas, angústias, grandezas e misérias. Ampliar e amplificar as vozes brasileiras diante dos impasses da modernidade, do silêncio imposto pela ditadura, da dominação do mercado dos bens simbólicos, da mesmice e rigidez estética e conceitual presentes em boa parte da música popular da época”.

Graduado em Português-Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Júlio Cesar Valladão Diniz é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio com a dissertação Uns caetanos (estudo de composições) e a tese Modulando a dissonância: música e letra. Cursou pós-doutorado em Literatura Comparada na Universidade de Salamanca, na Espanha. Foi diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio e é professor na área de Estudos de Literatura. É o organizador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira (Rio de Janeiro, 2002), foi membro do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro (2004-2006) e é pesquisador do CNPq.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira o senhor define o tropicalismo?

Júlio Cesar Valladão Diniz – Definir o tropicalismo em uma palavra ou uma frase é tarefa impossível. O tropicalismo, antes de ser um movimento cultural e artístico, é um modo de ser, uma condição existencial nos trópicos, ou seja, uma maneira cosmopolita e contemporânea de olhar e tentar compreender o país, a sociedade brasileira, seus dilemas, angústias, grandezas e misérias. Ampliar e amplificar as vozes brasileiras diante dos impasses da modernidade, do silêncio imposto pela ditadura, da dominação do mercado dos bens simbólicos, da mesmice e rigidez estética e conceitual presentes em boa parte da música popular da época. O tropicalismo tem a ver com comportamento, com transgressão, com uma atitude afirmativa diante da vida.

IHU On-Line – Em que sentido podemos fazer uma relação entre o movimento do tropicalismo e a modernidade e/ou a pós-modernidade?

Júlio Cesar Valladão Diniz – Acho que toda a nossa tradição é e será sempre moderna, o que não significa que seja modernista. Do romantismo alemão do final do século XVIII de Schiller, Schlegel, Schelling e Schleiermacher às vanguardas históricas do alto modernismo, representadas por Picasso, Matisse, Artaud e Joyce, por exemplo, toda a constituição de um estado de espírito ligado às noções de subjetividade, transgressão, ruptura e invenção é marca da modernidade. Como então falar de pós-modernidade e tropicalismo se no final dos anos 1960 o que vivíamos no Brasil e no mundo era a crise de valores que nos formaram, os valores ligados à tradição moderna? Pode-se, sim, falar de pós-modernidade, em especial em sociedades pós-industriais, a partir do início da década de 1970. O tropicalismo fecha a porta modernista sem nostalgia e olha pela fresta o devir-pós-moderno sem nenhum desejo de colonizar o futuro, utilizando a imagem de Octavio Paz. A defesa de uma “poética da agoridade” em aliança com uma ética que afirma o valor da vida no presente. 

IHU On-Line – A seu ver, quem foram os grandes ícones do movimento? 

Júlio Cesar Valladão Diniz – Difícil dizer quem liderou, quem deu a partida, quem sacou primeiro, quem provocou quem para ir à luta. Concordo com o Tom Zé, para mim, gênio da raça, quando diz que o tropicalismo tem a ver com o encontro existencial, afetivo, artístico e político do Caetano com o Gil. Fatores diversos, num momento de extrema sensibilidade e beleza, colaboraram e corroboraram com os desejos de uma geração ávida de liberdade, mudanças e do novo. O movimento começou em 1967, pautado pela intervenção crítico-musical no cenário cultural brasileiro, e do qual participaram, além de Caetano, Gil e Tom Zé, os poetas Torquato Neto e Capinam, os maestros de formação erudita Rogério Duprat, Damiano Cozzella e Júlio Medaglia, o grupo Os Mutantes, a cantora Gal Costa e o artista plástico Rogério Duarte, entre tantos outros.

IHU On-Line – Qual a relação da antropofagia com o movimento? 

Júlio Cesar Valladão Diniz – A tropicália representou uma retomada extremamente fértil do diálogo com as posturas políticas, estéticas e éticas de Oswald de Andrade, em especial com a antropofagia. A tropicália ressaltou, em sua estética, os contrastes da cultura brasileira, buscando superar as dicotomias arcaico/moderno, nacional/estrangeiro e cultura de elite/cultura de massas, que, hegemonicamente, marcavam a discussão cultural na década de 1960. 

IHU On-Line – De que maneira podemos relacionar o tropicalismo com a literatura brasileira? 

Júlio Cesar Valladão Diniz – Antes de qualquer coisa, gostaria de afirmar que há uma questão fundamental no estado da arte dos estudos literários hoje que merece a nossa reflexão: o processo contínuo e irreversível de ressemantização do conceito de literatura. O diálogo proposto pelos Estudos Culturais abre inúmeras possibilidades de articulação intertextual e interdisciplinar entre as práticas escriturais e as distintas manifestações estéticas. Em outras palavras, o conceito de literatura com o qual fomos formados já não existe mais. É claro que para uma boa parte da crítica literária, o que eu estou dizendo é um disparate, uma loucura. Mas na verdade acho que há uma noção de literatura expandida que atravessa o panorama contemporâneo e nos ajuda a entender que o que se chama (ou se chamou) de literatura está presente em letras de música, na cultura audiovisual e nas artes plásticas, por exemplo. O tropicalismo colocou os pés, mãos e estômago na literatura brasileira, provocando com ela uma nova parceria. Há uma área de trânsito no movimento entre textualidade, sonoridade, corporeidade e plasticidade. A literatura sempre esteve ali, contrabandeada, travestida, potencializada em suas referências, citações, costuras e rasuras.

IHU On-Line – Quais foram, a seu ver, os principais desafios enfrentados pelo movimento do tropicalismo? 

Júlio Cesar Valladão Diniz – Como já mencionado acima, penso que o tropicalismo vivenciou o desejo antropofágico preconizado por Oswald de Andrade de uma maneira afirmativa, alegórica e radical. Há na vontade de potência tropical e híbrida a nobreza do mulato que afirma a vida, o empenho com a transformação da estética em valor vital, contra a moral do escravo, representada no panorama cultural dos anos 1960 no Brasil pelo ressentimento e autoritarismo de uma grande parte da esquerda intelectual. Ao mesmo tempo, por mais paradoxal que pareça, o tropicalismo representa a quitação de contas com o alto modernismo, a rasura com a contribuição milionária de todos os acertos e erros de Mário e Oswald de Andrade, o esgotamento do projeto modernista e o início de outro momento da arte brasileira, em sintonia com as grandes transformações políticas, sociais e culturais do Ocidente.

IHU On-Line – Qual a relação da tropicália com a MPB?

Júlio Cesar Valladão Diniz – A ação tropicalista representa a radicalização da volta a uma tradição do kitsch, do exagero, da hipérbole, da “cafonização” das imagens, da leitura crítica dos diapasões do Brasil, seja em sua estética, seja em seu comportamento geracional, seja em sua maneira de pensar a cultura. A construção de um imaginário hiperbólico e a opção por uma estética do excesso são retomadas e reafirmadas pela tropicália, fazendo não o circuito tradicional e previsível de um programa vanguardista, ou seja, negando a bossa nova, a canção de protesto e a jovem guarda. Os tropicalistas incorporaram à sua estética tanto os procedimentos de uma performance over da fase heroica da MPB quanto os procedimentos minimalistas da bossa nova. Sua proposta voltava-se para a absorção de distintos gêneros musicais, como samba, bolero, frevo, música de vanguarda e o pop rock nacional e internacional, incorporando a utilização da guitarra elétrica. O maior valor do tropicalismo é a capacidade (presente até hoje nas ramificações tropicalistas e tribalistas) de repensar o lugar do corpo, da alteridade, das novas subjetividades, da visualidade e da voz na cena performática. O tropicalismo, em seu melting pot triturador, meteu e tirou inúmeras vezes a colher estetizante e politizante de seu caldeirão. Celso Favaretto conseguiu, em seu ensaio de 1979, perceber que a tropicália não só trabalhava com materiais que representavam o kitsch, o cafona, a extroversão, o excessivo na cultura brasileira, mas também com a sofisticação de uma formatação clean, com seu gesto mais intimista, sua construção mais plana e angular de uma tradição da bossa nova, a voz dissonante, desencaixada, tradutora de modulações. Esta constatação se aplica às canções como também aos cenários dos shows, roupas e principalmente às capas dos discos, em função da proximidade dos músicos com os artistas plásticos. 

Fazendo um balanço da iconografia das capas de disco durante os anos 1950 e 1960, percebe-se uma enorme ruptura na concepção visual da bossa nova em comparação com a das décadas anteriores. Elas são mais claras, “limpas, modernas”. Há uma evidência, quando se observa a coleção bossa nova, de que um novo processo se instaurava, uma “higienização” latente no conteúdo programático bossa-novista, uma depuração radical do excesso, seja ele musical, poético, gráfico ou visual. Em relação ao tropicalismo, o que se vê é exatamente o contrário. As capas dos primeiros discos da tropicália são hipercoloridas, justapondo elementos modernos e tradicionais, o novo e a tradição, bem ao estilo de Sgt. Pepper’s dos Beatles. As imagens do Brasil e do exterior devoradas, deglutidas e devolvidas como proposta de desierquização e em sintonia com as vanguardas de então. 

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo? 

Júlio Cesar Valladão Diniz – O ser tropical é um mulato que deliberadamente contrabandeia do exterior a matéria prima da nossa cultura, seja ela europeia ou africana, transformando a diáspora em lugar de deslizamento e permanência. Até hoje.

 

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