Edição 408 | 12 Novembro 2012

Terrorismo versus segurança

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Thamiris Magalhães / Tradução: Benno Dischinger

Uma solução justa, pacífica e duradoura só será possível quando Israel abandonar os territórios ocupados e se implementarem as resoluções pertinentes do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas, declara Manuel Quintero Pérez

“Parece-me que a ocupação tem o efeito de uma importante militarização da sociedade israelense, que parece viver prisioneira de uma equação esquemática e reducionista: terrorismo versus segurança”, afirma Manuel Quintero Pérez, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, a educação e as narrativas transmitidas pelos meios que inculcam nos israelenses o dever de defender seu Estado contra o inimigo (o mundo árabe, os palestinos) também alimentam o temor, o racismo e a xenofobia. “A separação física e psicológica entre palestinos e israelenses serve somente para perpetuar a desconfiança e os preconceitos e impedir um diálogo que provavelmente modificaria as percepções mútuas”.

No horizonte imediato de muitos palestinos que habitam na Margem Ocidental, continua o presbítero diaconal da Igreja Presbiteriana Reformada em Cuba, a ocupação está representada e encarnada no soldado israelense que custodia os pontos de controle ou os portões de acesso às suas terras de lavoura, e no colono judeu que usurpou suas terras ilegalmente. “É estranho, então, que o olhar do palestino seja um olhar de hostilidade? Por sua vez, o soldado israelense, imbuído de uma educação e ideologia que pregam a superioridade racial e cultural e o direito inalienável do povo judeu à ‘Terra Prometida’, vê em cada palestino um inimigo real ou potencial”. E frisa: “Em minha opinião, é importante superar qualquer visão maniqueísta do conflito e apreciá-lo em toda a sua complexidade, advertindo que a ocupação é responsável por uma interação entre israelenses e palestinos que desumaniza tanto os ocupados como os ocupantes”.

Manuel Quintero Pérez é engenheiro, jornalista e presbítero diaconal da Igreja Presbiteriana Reformada em Cuba. Ocupou diversos cargos em organismos ecumênicos internacionais. Entre 1994 e 2004, foi diretor de comunicações do Conselho Latino-Americano de Igrejas – CLAI. Desde 2009, atua como coordenador internacional do Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e Israel – PAEPI/EAPPI com sede em Genebra, Suíça.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Considerando o Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel – EAPPI, qual é seu principal objetivo e missão? Que fatores levaram à sua criação pelo Conselho Mundial de Igrejas – CMI?

Manuel Quintero Pérez –
O Programa de Acompanhamento Ecumênico surge num contexto muito particular: a Segunda Intifada, cujo início completa dez anos nestes dias. Essa insurreição palestina tem sua raiz da visita do militar e político israelita Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas – embora as razões de fundo seja preciso buscá-las no descontentamento generalizado pelo descumprimento dos Acordos de Oslo de 1993 e o fracasso das negociações de Camp David (julho de 2000).


Paciência

A presença de Sharon, líder do partido Likud, acompanhado por um forte contingente de policiais antimotins israelitas, foi a clássica gota que extravasou a taça da paciência palestina. Nos dias seguintes a essa visita, produziram-se violentos enfrentamentos em Jerusalém e outros lugares da Cisjordânia (Ribeira Ocidental). Quatro anos depois, quando a Segunda Intifada chega ao seu fim, 6.371 palestinos e 1.083 israelitas haviam morrido nos enfrentamentos...


Paz duradoura

Em 9 de novembro de 2000, quando a insurreição e a violência se haviam estendido por todos os territórios ocupados e dentro do próprio estado de Israel, líderes das Igrejas em Jerusalém, de todas as famílias cristãs, fizeram um chamado à comunidade cristã internacional para que expressassem sua solidariedade com o povo palestino. Em seu chamamento, esses líderes afirmaram o direito do povo palestino a lutar contra a injustiça para alcançar sua liberdade, sublinhando, ao mesmo tempo, que os meios de luta não violentos eram os mais poderosos e eficazes; e reclamaram a implementação dos princípios do direito internacional mediante o cumprimento obrigatório de todas as resoluções das Nações Unidas, como um requisito indispensável para alcançar uma paz duradoura.


Atuações do CMI

O Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas – CMI, que se reuniu de 29 de janeiro a 6 de fevereiro de 2001, pediu a suas Igrejas-membro que incrementassem seus esforços para condenar a injustiça e todas as formas de discriminação, terminar a ocupação israelita dos territórios palestinos, orando e promovendo uma paz justa e integral no Oriente Médio.
O CMI também organizou a visita de uma delegação ecumênica a Israel e à Palestina, em junho de 2001, que foi seguida por uma Consulta Ecumênica Internacional, celebrada em Genebra em agosto desse ano. Seguindo as recomendações dessa consulta, o Comitê Executivo do CMI, que se reuniu em setembro, decidiu o lançamento de “um programa ecumênico de acompanhamento que incluísse uma presença internacional”. Esse programa aproveitaria as experiências de organizações como os Christian Peacemaker Teams (Equipes Cristãs de Ação para a Paz) e estaria estreitamente vinculado com as Igrejas locais.


Pela superação da violência e por uma paz justa

Logo após um processo de intensas consultas com igrejas e agências ecumênicas entre outubro de 2001 e janeiro de 2002, em fevereiro de 2002 um Grupo de Trabalho sobre Acompanhamento desenvolveu o marco de referência para o programa. Este foi finalmente aprovado pelo Comitê Executivo do CMI, que se reuniu nesse mesmo mês. O programa foi parte da Campanha Ecumênica para Terminar a Ocupação Ilegal da Palestina e
Apoiar uma Paz Justa no Oriente Médio, sendo a primeira iniciativa do CMI dessa Década para a Superação da Violência (2001-2010).


Principal objetivo e missão

Desde suas origens, a visão que animou o programa é a de uma solução justa, pacífica e duradoura do conflito palestino-israelense; uma solução que possibilite a coexistência harmônica de ambos os povos nessa região que nós cristãos chamamos Terra Santa. Essa solução só será possível quando Israel abandonar os territórios ocupados e se implementarem as resoluções pertinentes do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas.

A ocupação se manifesta estruturalmente nos assentamentos ou colônias, na ignominiosa presença do chamado “Muro de segurança”, que em certos lugares separa as populações palestinas de suas terras de cultivo, nos pontos de controle fixos ou móveis, na exclusão dos palestinos de determinadas zonas que Israel considera de interesse militar, especialmente na chamada Zona “C”, na progressiva, deliberada e sistêmica política de judaicização da cidade de Jerusalém, na abusiva apropriação das águas e de outros recursos.

O resultado físico da ocupação se aprecia muito bem num mapa que foi chamado, com toda razão, o “arquipélago palestino”: o artista converteu em mar todas as áreas da Costa Ocidental, em possessão ou sob controle de Israel.

O satírico humor desse desenho não deixa de ressaltar a trágica fragmentação do território palestino numa série de ilhas e ilhotas com escassa conexão entre si. E isso num território que representa apenas 22% do que correspondia aos palestinos, segundo a participação decretada pela Resolução 181 das Nações Unidas de 29 de novembro de 1947.


Solução de dois estados cada vez menos possível

Ban Ki-Moon, em seu mais recente discurso ante a Assembleia Geral das Nações Unidas, no passado dia 25 de setembro, assinalou que a solução de dois estados tem cada vez menos probabilidades de subsistir e advertiu Israel que sua política de construção e expansão das colônias nos territórios ocupados está obstaculizando as perspectivas de paz na região. E acrescentou: “A porta para alcançar a paz poderia estar se fechando para sempre”.

Frente a esta situação, em vista da terrível perspectiva de fechamento definitivo do caminho para a paz, a missão do EAPPI tem sido e continua sendo contribuir com os esforços não violentos de palestinos e israelitas para pôr fim à ocupação.


IHU On-Line – Quando e como iniciou o programa?

Manuel Quintero Pérez –
O primeiro grupo de observadores ecumênicos, composto principalmente de dinamarqueses, chegou à Palestina em agosto de 2002. Eles se estabeleceram em Jerusalém, mas foram destinados a diversas organizações em Ramala e Belém. Essa experiência-piloto foi fundamental para a organização do segundo grupo, agora com uma representação de vários países, que chegou à Palestina em janeiro de 2003. Gradualmente, o programa começou sua expansão territorial e os acompanhantes ecumênicos se estabeleceram, assim, em diversas localidades da Margem Ocidental. Atualmente, os acompanhantes ecumênicos (ou simplesmente AE) se distribuem em sete localidades: Tulkarem, Jayyous e Yanoun, no norte; Belém e Jerusalém no centro; e Hebron e Yalta no Sul.
No contexto do conflito palestino-israelense, o acompanhamento tem duas dimensões fundamentais: a proteção, a saber, a presença física dos acompanhantes ecumênicos em pontos de controle, portas agrícolas, escolas e aldeias onde ocorrem violações aos direitos dos palestinos; e o trabalho de incidência pública, as ações dos AE de regresso a seus países de origem, ou ações que buscam influir nas políticas de seus Estados, em relação com o conflito.


IHU On-Line – Quantas organizações, igrejas e países estão participando?

Manuel Quintero Pérez –
No início, o EAPPI mobilizou fundamentalmente Igrejas e organismos ecumênicos na Europa e na América do Norte. A partir de 2007, incorporaram-se as igrejas da África do Sul e nos últimos dois anos também alguns países da Ásia (Filipinas, Coreia) e da América Latina. Atualmente passa de setenta o número de igrejas, conselhos de igrejas e ministérios cristãos especializados e vinculados com o programa.


Atuação no Brasil

No Brasil, com o apoio entusiasta da Oficina Regional do Conselho Latino-Americano de Igrejas – CLAI e da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista em São Bernardo do Campo, foi possível apresentar o programa a Igrejas-membro do Conselho Mundial de Igrejas, universidades e instituições teológicas. Tivemos uma acolhida muito favorável em alguns institutos e faculdades da Universidade de São Paulo: cinco estudantes dessa Universidade já participaram como acompanhantes ecumênicos desde 2011 e outros estão se preparando para servir na Palestina durante os próximos meses. Também tivemos dois AE da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil – IECLB, ambos de Porto Alegre ; e o primeiro AE da Igreja Metodista do Brasil se encontra atualmente servindo na comunidade de Yanoun.


IHU On-Line – Que desafios e avanços este programa obteve em relação à corrente situação?

Manuel Quintero Pérez –
Depois de dez anos de presença e incidência pública, é possível falar de alguns êxitos. As diferentes avaliações realizadas por agências externas ao programa, especialmente a partir de 2006, comprovaram que a presença dos AE é considerada como um fator favorável pelas comunidades palestinas, por contribuir efetivamente a uma diminuição dos casos de fustigamento por parte de colonos judeus e a um comportamento menos discriminatório de parte dos corpos de segurança israelitas.


Importância dos acompanhantes ecumênicos

A presença dos acompanhantes ecumênicos mudou radicalmente a situação dos meninos e meninas palestinas que assistem à escola Córdoba em Hebron, e que eram submetidos a maus tratos verbais e a abusos físicos por colonos judeus nessa cidade. Hoje, esses ataques raramente ocorrem, e os meninos e meninas superaram o temor que lhes provocavam ditas hostilidades.


Situação dos habitantes de Yanoun

Os habitantes de Yanoun, uma aldeia de apenas 65 pessoas, situada uns doze quilômetros a sudeste de Nablus, foram submetidos a uma hostilização tão violenta e contínua por colonos do vizinho assentamento judeu de Itamar – destruição de seus olivais e semeaduras de trigo, envenenamento de poços, morte dos animais, assaltos em suas moradias, espancamentos – que optaram por emigrar às aldeias vizinhas em outubro de 2002.

Este êxodo de toda uma comunidade provocou uma viva reação em círculos progressistas e em organismos de direitos humanos israelitas, os quais se reuniram para visitar Yanoun e proteger seus habitantes. Depois, membros de uma organização palestino-israelense, denominada Ta’ayush (“vivendo juntos”, em árabe) estabeleceu uma presença protetora em Yanoun. EAPPI ressituou Ta’ayush em fins de 2003 e, desde então, tem estado presente com seus AE em Yanoun. Essa presença internacional convenceu os aldeões de que era possível regressar a suas humildes vivendas e terras ancestrais de lavradio.


Violência

A ocupação é um fenômeno muito dinâmico: não há “vitórias” ou êxitos definitivos. Embora os palestinos residentes em Yanoun tenham regressado, a presença dos AE não pôde evitar que se produzissem sérios incidentes, como no passado dia 7 de julho. Nesse sábado, na meia-tarde, três palestinos foram atacados em seus campos de lavoura por um grupo de colonos armados com espetos e fuzis automáticos. Os colonos mataram as ovelhas dos palestinos e incendiaram dois trigais e um olival. Quando os palestinos tentaram apagar o incêndio, soldados israelenses lançaram bombas de gases lacrimogêneos para impedir-lhes o acesso. Quatro membros da família Bani Jaber foram feridos e outros foram golpeados tanto pelos colonos como pelos soldados.

Os acompanhantes ecumênicos destacados em Yanoun testemunharam que Jawdat Bani Jaber foi esfaqueado várias vezes por colonos e se lhe negou assistência médica por três horas. Outro aldeão, Jawdat Ibrahim, foi golpeado brutalmente, atado e abandonado pelos colonos num campo afastado da aldeia. Seus familiares não o encontraram até a manhã seguinte, quando foi transladado com urgência a um hospital em Nablus.


Êxitos no plano da incidência política

Podemos apresentar alguns êxitos no plano da incidência política. No ano passado, a Igreja Metodista do Reino Unido adotou uma resolução que exige o boicote das mercadorias produzidas em assentamentos considerados ilegais pelo direito internacional . Nos diferentes passos que levaram a essa resolução, muito especialmente na redação do documento que foi estudado pela igreja para sua tomada de decisão, houve uma destacada participação de ex-acompanhantes ecumênicos nesse país.

No passado mês de julho, apesar da forte oposição do lobby judeu, o Sínodo Geral da Igreja da Inglaterra aprovou uma moção que apoia o trabalho do Programa Ecumênico de Acompanhamento na Palestina e em Israel, exorta os fiéis anglicanos a participarem como voluntários no programa e pede às igrejas e sínodos que façam uso da experiência dos participantes quando regressem ao país. Nessa decisão também tiveram importante papel nossos AE britânicos e irlandeses.


IHU On-Line – O que quer dizer com a expressão “não há mocinhos nem bandidos”, em relação ao conflito israelo-palestino?

Manuel Quintero Pérez –
A ocupação gera comportamentos sui generis em palestinos e israelenses. Diferentes estudos têm comprovado que os palestinos que experimentam assaltos físicos, humilhações, restrição de sua liberdade de movimento, ameaças de demolição de seus lares e incerteza sobre o futuro imediato, sofrem de alto grau de ansiedade e outros problemas mentais. Tenho a impressão, após sete visitas à Palestina e a Israel nos últimos dois anos, de que muitos palestinos vivem num estado de temor e angústia permanentes.


Impressões

Parece-me que a ocupação tem também o efeito de uma importante militarização da sociedade israelense, que parece viver prisioneira de uma equação esquemática e reducionista: terrorismo versus segurança. A educação e as narrativas transmitidas pelos meios que inculcam nos israelenses o dever de defender seu Estado contra o inimigo (o mundo árabe, os palestinos) também alimentam o temor, o racismo e a xenofobia. A separação física e psicológica entre palestinos e israelenses serve somente para perpetuar a desconfiança e os preconceitos e impedir um diálogo que provavelmente modificaria as percepções mútuas.
No horizonte imediato de muitos palestinos que habitam na Margem Ocidental, a ocupação está representada e encarnada no soldado israelense que custodia os pontos de controle ou os portões de acesso às suas terras de lavoura, e no colono judeu que usurpou suas terras ilegalmente. É estranho, então, que o olhar do palestino seja um olhar de hostilidade? Por sua vez, o soldado israelense, imbuído de uma educação e ideologia que pregam a superioridade racial e cultural e o direito inalienável do povo judeu à “Terra Prometida”, vê em cada palestino um inimigo real ou potencial. Uma das mais próximas colaboradoras de nosso programa, uma distinta mulher israelense, sionista declarada, amante de sua história e defensora dos direitos inalienáveis de seu povo, o expressou nos seguintes termos: “Os verdadeiros amigos de Israel são contra a ocupação, porque a ocupação está corroendo a alma de Israel.”


Superação

Por isso, em minha opinião, é importante superar qualquer visão maniqueísta do conflito e apreciá-lo em toda a sua complexidade, advertindo que a ocupação é responsável por uma interação entre israelenses e palestinos que desumaniza tanto os ocupados como os ocupantes.

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