Edição 408 | 12 Novembro 2012

O papel religioso no conflito do mundo árabe

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Thamiris Magalhães | Tradução: Luís Marcos Sander

O papel mais importante da pessoa religiosa no conflito não é tanto propor soluções, e sim falar uma nova linguagem que, por princípio, rejeite todo e qualquer desprezo pelo outro, tendo um discurso de respeito, avalia David M. Neuhaus

“Eu era uma criança que não levava Deus a sério. Minha família era composta de refugiados do Holocausto de Hitler, e o que fiquei sabendo sobre o que aconteceu durante o Holocausto fez com que fosse difícil para mim levar a sério a ideia de um Deus onipotente. Como esse suposto Deus podia permitir tanto sofrimento?”, relembra David M. Neuhaus, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Contudo, continua, “Deus me surpreendeu, e quando eu tinha 15 anos me encontrei com uma mulher que irradiava a presença de Deus. Encontrei-me com Deus nela, e não havia espaço para negar Deus. Ela era idosa e frágil, e nela eu me encontrei com o Deus sofredor, o Deus que de fato é onipotente, mas abriu espaço para a humanidade e deu liberdade aos seres humanos, seus filhos amados. Deus os leva a sério e permite que o expulsem, que o exilem do mundo que criou e deu a eles. Esse Deus me foi revelado no Crucificado por essa mulher idosa. A alegria dela, uma alegria que irradiava dela e me enchia de alegria, foi a chave e me abriu uma porta que tinha estado trancada antes”.

Neuhaus, judeu convertido ao catolicismo, nasceu em Joanesburgo, na África do Sul. Concluiu bacharelado em Psicologia e Ciência Política na Universidade Hebraica de Jerusalém. Realizou mestrado em Ciência Política na mesma instituição com o tema: “Política e Islã em Israel, 1948-1987”. Concluiu o doutorado com tese intitulada Entre a tranquilidade e a agitação: As funções políticas da religião: Um estudo da minoria árabe em Israel 1948-1990, também na Universidade Hebraica de Jerusalém. Lecionou no curso de Ciência Política do Centro Universitário de Boston, EUA. Concluiu bacharelado em Teologia, no Centro Sèvres, Instituto Superior de Teologia e Filosofia, de Paris, na França. Em 2000, foi ordenado sacerdote católico romano, ingressando na Companhia de Jesus. Em 2009, foi nomeado vigário patriarcal para os católicos de língua hebraica de Israel. E em 2011, passou a ser coordenador da Pastoral entre Migrantes em Israel.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Que inspiração o apartheid sul-africano pode oferecer para a superação do conflito israelo–palestino?

David M. Neuhaus –
Duas coisas me ocorrem:

1) Os sistemas de opressão, discriminação e desumanidade não conseguem se sustentar. O espírito humano presente tanto no opressor como no oprimido acaba triunfando, quando o opressor não pode mais ignorar a humanidade do oprimido, não pode mais se recusar a ver no oprimido um irmão e uma irmã.

2) As coisas podem mudar de formas inesperadas. O sistema do apartheid na África do Sul teve um fim repentino com o aparecimento de dois homens, Mandela  e De Klerk , que estavam dispostos a considerar que as coisas poderiam ser diferentes. Antes do colapso do sistema, parecia não haver nenhum fim à vista. De modo semelhante, em Israel/na Palestina, embora não pareça haver luz no fim do túnel, Deus pode nos surpreender enviando pessoas capazes de pensar de maneira diferente, imaginando criativa e profeticamente um país sem ocupação, sem discriminação, sem medo e sem violência.


IHU On-Line – Como você entende as narrativas religiosas no mundo árabe? E em sua teologia, de que maneira a religião é trabalhada, especialmente relacionada ao conflito israelo-palestino?

David M. Neuhaus –
As narrativas religiosas em Israel e no mundo árabe são diversificadas, mas talvez o que muitas das narrativas têm em comum é o tema de que Deus está do nosso lado e nós estamos sofrendo como vítimas inocentes. Creio que o que muitas vezes falta em nossas narrativas e em nossa teologia é um aspecto crítico em que o dedo não esteja apontado para o outro, para o inimigo, e sim para nós mesmos. Precisamos desenvolver esse aspecto crítico de modo que nossas teologias sejam mais proféticas ao confessarmos nossos próprios pecados e nos darmos conta de que não há justiça nem paz – não apenas porque o inimigo é um obstáculo, mas também porque nós estamos fechados para a vontade de Deus.


Ausência de crítica

A falta de um aspecto crítico em nossas narrativas religiosas e em nossa teologia parece estar relacionada com uma insistência de que nós somos vítimas, vítimas inocentes, das circunstâncias e da maldade de outros. A mentalidade de vítima pode se tornar extremamente malévola na medida em que, em nome da suposta defesa própria, tudo se torna permissível. Isso é o oposto absoluto do desenvolvimento de um senso de responsabilidade e da conscientização de como nós formamos o mundo em que estamos e de como podemos transformá-lo ativamente.


IHU On-Line – Como a sua teologia responde à questão do conflito?

David M. Neuhaus –
Minha teologia não é uma teologia de solução de conflitos. Entretanto, é uma teologia que insiste que Deus é o Senhor da história e que a submissão à vontade de Deus é uma parte essencial do término do conflito. Ela enfatiza que o mundo é criado por Deus e que as pessoas que vivem nessa terra estão aqui por um desígnio divino. Isso quer dizer que todas têm um direito de estar aqui e de viver em segurança, justiça e paz. É uma teologia que se lembra da centralidade desta terra [sc. a Palestina] e deste povo no plano de Deus e recorda incansavelmente que a palavra de Deus parte de Jerusalém para os confins da terra. É uma teologia que se foca em Jesus Cristo como a paz de Deus no mundo, uma paz fundamentada na demolição dos muros da inimizade. É uma teologia focada no Cristo crucificado, que, na cruz, fez com que todos os homens e mulheres fossem um Nele.


IHU On-Line – Que solução o senhor daria para o conflito israelo-palestino? A criação de dois estados seria uma saída interessante? Por quê?

David M. Neuhaus –
Felizmente sou uma pessoa religiosa, e não um político. Assim, não tenho de propor soluções políticas. Dois Estados para dois povos, um único Estado democrático para todos os povos – as soluções variam de acordo com a ideologia; entretanto, o papel do líder religioso é sublinhar os ensinamentos que assegurem que, qualquer que seja a solução encontrada, os habitantes desta terra respeitem uns aos outros e vivam em justiça e paz.


Nova linguagem

O mais importante papel da pessoa religiosa no conflito não é tanto propor soluções, e sim falar uma nova linguagem, uma linguagem que, por princípio, rejeite todo e qualquer desprezo do outro e só tenha um discurso de respeito pelo outro. Essa linguagem nunca pode se esquecer de que todos os homens e mulheres são criados à imagem de Deus, o opressor e o oprimido, o ocupante e o ocupado, o perseguidor e o perseguido.


IHU On-Line – Como você lidava com a religião quando criança? Tinha uma vivência espiritual?

David M. Neuhaus –
Eu era uma criança que não levava Deus a sério. Minha família era composta de refugiados do Holocausto de Hitler , e o que fiquei sabendo sobre o que aconteceu durante o Holocausto fez com que fosse difícil para mim levar a sério a ideia de um Deus onipotente. Como esse suposto Deus podia permitir tanto sofrimento? Contudo, Deus me surpreendeu, e quando eu tinha 15 anos me encontrei com uma mulher que irradiava a presença de Deus. Encontrei-me com Deus nela, e não havia espaço para negar Deus. Ela era idosa e frágil, e nela eu me encontrei com o Deus sofredor, o Deus que de fato é onipotente, mas abriu espaço para a humanidade e deu liberdade aos seres humanos, seus filhos amados. Deus os leva a sério e permite que o expulsem, que o exilem do mundo que criou e deu a eles. Esse Deus me foi revelado no Crucificado por essa mulher idosa. A alegria dela, uma alegria que irradiava dela e me enchia de alegria, foi a chave e me abriu uma porta que tinha estado trancada antes.


IHU On-Line – O que o levou a se converter ao catolicismo, sendo hoje um sacerdote jesuíta? Alguma vez lhe passou pela cabeça que acabaria se tornando um padre católico?

David M. Neuhaus –
Sou filho de pai e mãe judeus maravilhosos; faço parte de uma família judaica vibrante; recebi uma educação judaica sólida e tenho orgulho de me unir com meu povo em seus momentos de triunfo e em tudo que esse povo contribuiu para a história da humanidade. Também atualmente continuo solidário com meu povo mesmo tendo grande dificuldade de aceitar o que é feito em seu nome pelos líderes políticos de Israel hoje.


Conversão

O que me levou à Igreja Católica foi o encontro com Jesus Cristo. Ele me levou a seu Pai, um Deus que eu não conhecia antes. Logo no primeiro encontro com Cristo, houve uma percepção de que esse era um encontro radical que envolveria tudo o que sou. Aos 15 anos, logo depois daquele primeiro encontro, escrevi que me tornaria um religioso e me dedicaria ao serviço da Igreja. O chamado para a conversão foi um chamado para a vida religiosa e para o serviço sacerdotal. Levou algum tempo até eu me encontrar com os jesuítas, mas, quando isso aconteceu, pareceu uma união feita no céu.


IHU On-Line – Você esteve envolvido em acolher o Papa à Terra Santa, em maio de 2009. Nesse sentido, como você percebeu o conflito entre judeus israelenses e árabes palestinos? Como o Papa conseguiu lidar com esta situação?

David M. Neuhaus –
Sendo um dos vigários episcopais de nossa diocese, eu de fato me envolvi em acolher o Papa Bento XVI em nossa terra. Muitas pessoas estavam muito preocupadas, antes de sua vinda, de que a visita dele seria explorada por um lado ou pelo outro e que, a longo prazo, a Igreja iria sofrer. Ficamos todos surpresos. Sua visita foi uma grande dádiva para a Igreja e encheu os fiéis cristãos de orgulho. Ele veio falando como um profeta, proclamando fielmente o evangelho de amor, perdão, justiça e paz e dizendo verdades duras aos líderes políticos em toda a região. Ele insistiu que estamos ligados em nossa própria raiz com o povo judeu, e, ainda assim, enfatizou que a Igreja é contrária à ocupação e aos muros que ela tenta levantar. Podemos ficar dilacerados entre essas duas vocações fundamentais – a reconciliação com os judeus depois de séculos de ensino cristão antijudaico e a luta por justiça para os palestinos –, mas que assim seja. Fiquemos dilacerados assim como Jesus ficou, tendo a fé de que nesse dilaceramento a salvação entre e o Reino seja proclamado.


IHU On-Line – Você é israelense e padre católico que vive em Jerusalém, a terra onde Cristo andou. Nesse aspecto, que dimensão especial isso acrescenta para a sua vivência sacerdotal?

David M. Neuhaus –
Viver nesta terra é um grande privilégio. Os Lugares Sagrados são locais onde todos os cristãos podem se revigorar, na medida em que servem de pedras da memória de todos os prodígios de Deus na história da salvação. Nós temos de ser guardiães dessa memória, insistindo que nossa boca esteja repleta, em primeiro lugar e antes de mais nada, de agradecimento por todas as graças de Deus. Viver entre judeus e muçulmanos, como parte de um diminuto rebanho de cristãos, também é um privilégio na medida em que somos desafiados em termos positivos e negativos pelas duas maiorias entre as quais vivemos. Os desafios positivos se baseiam nos exemplos da piedade e vida espiritual de judeus e muçulmanos que podem nos ensinar a ser discípulos melhores de Cristo. Os desafios negativos se baseiam na percepção de que muitos judeus e muçulmanos suspeitam dos cristãos e são até hostis para com eles. Aqui somos chamados a um arrependimento ainda maior em relação a toda a nossa contribuição para esses sentimentos negativos para com os cristãos e a Igreja. Entretanto, também temos o privilégio de sofrer por nossa fé e dar testemunho de que, embora sejamos fracos, a luz de Deus brilha por entre nossa fraqueza.

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