Edição 407 | 05 Novembro 2012

Os resquícios do encontro catequético e ritual nos séculos XVI a XVII

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Graziela Wolfart

“Em sua ambição missionária (religiosa) e universalista, o catolicismo sustentou diálogos e entendimentos, mas também justificou e produziu confrontos e mal-entendidos que revelam visões de mundo e interesses radicalmente distintos”, destaca Adone Agnolin

A partir de um “olhar duplamente estranhado” (de historiador e de, ainda de algum modo, estrangeiro), da atualidade política, social e religiosa do Brasil, o professor da USP, Adone Agnolin, concedeu a entrevista a seguir à IHU On-Line por e-mail, onde abordou, dentre outros temas, o problema que diz respeito à relação entre Ocidente e alteridades antropológicas. Para ele, o contexto missionário asiático revelou, ao olhar atento da moderna missão jesuítica, “aquilo que nós hoje chamaríamos de surgimento ou, talvez melhor, da evidência de uma perspectiva e, sobretudo, de uma ‘consciência hermenêutica’”. E continua: “foi justamente o paralelo (isto é, o equívoco) que se estabeleceu entre budismo e cristianismo que demonstrou efetivamente a derrota dessa primeira atividade e estratégia missionária que, inevitavelmente, apontou para a necessidade de redirecionar a adaptação jesuítica, partindo finalmente de uma mais solida inserção e de um profundo entendimento do contexto das ‘civilizadas’ culturas orientais: apontou, enfim, para a imprescindibilidade de uma nova e apriorística (em relação ao projeto evangelizador) problemática hermenêutica asiática a ser aprofundada no novo contexto missionário”.

Adone Agnolin possui graduação em Filosofia pela Università degli Studi di Padova, Itália. É doutor em Sociologia e pós-doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. Desde 2003, é professor em História Moderna no Departamento de História da USP. É autor de, entre outros, O apetite da antropologia – o sabor antropofágico do saber antropológico: alteridade e identidade no caso tupinambá (São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005); e Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séc. XVI-XVII) (São Paulo: Humanitas / FAPESP, 2007).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que o senhor destaca das memórias e das narrativas nas religiões islâmica, judaica e orientais?

Adone Agnolin –
Qual religião para qual Oriente? Esta pergunta se imporia necessariamente enquanto problematização, primeira e necessária, da pergunta inicial. De fato, tentando responder à questão posta pela entrevista, colocam-se inicialmente dois problemas bastante complexos, mas a partir dos quais somente pode-se começar uma abordagem propriamente historicista à problemática implícita. Não podendo ser respondida nesse limitado espaço, por um lado somos obrigados a deixar de lado, por enquanto, a questão da definição de “memórias” e “narrativas”: absolutamente não secundária, levando em consideração que estas também são sempre histórica e culturalmente definidas; por outro lado, todavia, não podemos deixar de levar em consideração a questão central, problemática e historicamente complexa, de uma definição de “religiões”, cujo rótulo (segundo a própria pergunta) está implicitamente “colado” às três dimensões históricas, culturais e civilizacionais, profundissimamente diferenciadas. A problemática que traçamos, portanto, é fundamental e sua investigação improrrogável para permitir uma resposta que se coloque, quanto menos, em uma perspectiva de investigação propriamente histórica. Para realizar essa tarefa, impor-se-ia uma abordagem que parta de uma fundamental perspectiva metodológica qual aquela adotada em nossos estudos e que consiste substancialmente na perspectiva de uma metodologia histórico-religiosa. Não podendo nesse espaço nos adentrarmos nela, remetemos apenas indicativamente aqui a uma breve síntese dessa perspectiva que propusemos, entre outros, em um artigo intitulado “O debate entre história e religião em uma breve história da história das religiões: origens, endereço italiano e perspectivas de investigação” (In: Revista Projeto História, n. 37 “História e Religiões”, São Paulo, dez. 2008, p. 13-39); remetemos ainda à organização dos trabalhos para tradução e edição brasileira do Manuale di Storia delle Religioni de P. Scarpi, G. Filoramo, M. Raveri, M. Massenzio (Laterza, Roma-Bari 1998): realizada para a editora Hedra, São Paulo, 2005, 4 vols., com vista principalmente ao vol. IV, de Marcello Massenzio, A história das religiões na cultura moderna; tudo isso na espera de uma nossa mais recente e densa síntese-reflexão, de próxima publicação: História das religiões: prolegômenos à perspectiva histórico-comparativa do estudo das religiões, São Paulo, Loyola, no prelo.


O conceito de “religião”: ocidental

Aqui, por enquanto, partiremos da pergunta que nós mesmos propusemos acima: “qual religião para qual Oriente?”. Tentando responder minimamente à sua complexidade, remetemos aqui, no breve espaço dessa entrevista, ao trabalho já clássico de um autor, estudioso do hinduísmo, que não pertence à nossa perspectiva e metodologia de estudos, mas que, mesmo assim, conseguiu de forma brilhante formular bem o problema (indo quase ao encontro da perspectiva propriamente histórico-religiosa), sugerindo algumas adequadas e importantes orientações de investigação a esse propósito. Em seu Introduction général à l’étude des doctrines hindoues , René Guénon nos oferece uma síntese inicial de uma significativa análise comparativa, relacional e diferencial, depois de ter evidenciado a constituição de um processo histórico de intermediação realizada pelo Islã entre os dois contextos: aqueles do Ocidente e do Oriente. É nessa base que, levando em consideração, justamente, a antiga e prioritária unidade tradicional da “Cristandade” ocidental (do Ocidente medieval), o autor mostra como esta foi concebida substancialmente segundo sua específica modalidade “religiosa”. Dessa maneira, o conceito de religião se configura como um conceito própria e totalmente ocidental que, em termos de constituição de unidade civilizacional, foi atingindo, em sua formação, também aquela do mundo muçulmano. Dito de outra forma, a civilização islâmica é, entre aquelas orientais, a que mais se aproxima do Ocidente: paralelamente à sua colocação geográfica, poder-se-ia dizer que é a intermediária, sob vários pontos de vista, entre o Oriente e o Ocidente. Entre essas duas dimensões civilizacionais, enfim, aparece a diferenciação comparativamente mais significativa, dois modos completamente distintos da perspectiva de leitura dos respectivos patrimônios culturais: um puramente oriental e outro – este sim um modo propriamente “religioso” – compartilhado com, pela e na civilização ocidental. A constatação mais evidente da peculiaridade do “religioso” ocidental (e, portanto, de sua profunda diferença com o Oriente) é evidente, de resto, justamente no fato que “hebraísmo, cristianismo e islamismo se apresentam como os três elementos de um mesmo conjunto, fora do qual [...] é bastante difícil aplicar apropriadamente o próprio termo de ‘religião’” (ibidem, p. 58). Não por último, com relação ao Islã, é significativo o fato de que este esteja fundado sobre uma tradição que pode ser definida como “religiosa” nos moldes ocidentais, enquanto, por outro lado, diferentemente do Ocidente atual, esta tradição religiosa muçulmana se constitui como ordem social em sua totalidade integrada na religião: no contexto islâmico, a legislação é inseparável dessa religião porque nela encontra seu princípio e razão de ser.


Identificação religiosa ou filosófica das tradições orientais

Ora, no que diz respeito, sobretudo, ao contexto oriental, a diferença torna-se evidente quando, por exemplo, passando à análise da unidade tradicional da civilização hindu (no interior de características consideradas comuns ao contexto asiático), Guénon destaca como essa unidade repousa inteiramente sobre o reconhecimento de certa tradição que, por um lado, engloba toda a ordem social, mas por outro o faz a título de simples aplicação a determinadas contingências: isso se deve ao fato de que esta específica configuração da “tradição”, segundo o próprio autor, “não é mais religiosa”: nos contextos asiáticos “nada mais existe de parecido às religiões ocidentais” (idem, ibidem, p. 60-61). Sem pretender seguir minimamente o autor em sua tentativa de definição positiva dessa “tradição”, denominada de “ordem metafísica”, o que merece destaque a respeito dessa parte de sua análise é, justamente, a concepção crítica (negativa) que problematiza uma identificação “religiosa” ou, em outros casos, “filosófica” das “tradições orientais”: hindu ou chinesa. Esta última, partindo de uma concepção tradicional bastante particular (o conceito de gen), vê repousar sua inteira organização social sobre a base da família: tratar-se-ia de uma organização que se opõe a qualquer tipo de individualismo e que chega a realizar uma função que pode ser considerada pelo menos tão importante quanto aquela da casta na sociedade hindu e que, de algum modo, lhe pode ser comparada. Nesse sentido e a partir desses pressupostos, para qualquer tipo de investigação a esse respeito ganha centralidade o instrumento metodológico da “comparação diferencial” em sua consonância no interior de nossa própria perspectiva histórico-religiosa. Segundo a análise proposta por Guénon (ibidem, p. 71), “encontra-se um elemento ritual em cada religião, mas este sozinho não é suficiente a caracterizar a religião em quanto tal [...], porque existem ritos que não são em nada religiosos”. Sobretudo no contexto asiático, existem ritos que têm um caráter pura e exclusivamente social, ou, conforme a definição privilegiada dos missionários dos séculos XVI-XVII, “civil”. Algo parecido pode ser encontrado junto à civilização greco-romana, isto é, antes que se desprendesse o processo de “cristianização” do conceito de “religião”: não é por acaso que a missionação asiática da primeira Idade Moderna procurou utilizar-se, também, desta comparação (veja-se bem, apenas analógica) para tentar entender, de algum modo, a peculiaridade do contexto asiático e com isso poder realizar o próprio projeto missionário. Ainda hoje esses tipos de ritos se encontram, por exemplo, na civilização chinesa, onde não há alguma confusão (toda ocidental) entre civil e religioso e onde as cerimônias do confucionismo são efetivamente ritos sociais que somente alterando-os profundamente em sua hermenêutica podemos identificar por algum (improvável) caráter religioso. E é somente enquanto caracterizados por sua dimensão exclusivamente civil – isenta e autônoma, isto é, não contraposta, como acontece em nossa cultura ocidental, ao “religioso” – que esses ritos podem ser feitos objeto de um reconhecimento oficial o qual, na China, seria inconcebível a qualquer outra condição.


O taoísmo

Outro exemplo significativo é o do taoísmo que, também, possui ritos que lhe são próprios: tudo isso demonstra como no contexto asiático existem ritos (inclusive de “memórias” e “narrativas”: e nesse sentido condicionam profundamente estas últimas) que, por quanto isso possa parecer estranho e, muitas vezes, incompreensível para o Ocidente, têm um caráter bastante diferenciado em relação à conceitualização e à função ritual-religiosa que nos é própria. Um último exemplo que podemos acenar a respeito é o xintoísmo no Japão que, em certa medida, tem o caráter e a função do confucionismo na China: poder-se-ia dizer que, entre outros aspectos, é sobretudo uma instituição cerimonial do Estado e seus funcionários (que evidentemente não são “padres”!) permanecem completamente livres de escolher para si uma própria religião ou de não abraçar nenhuma. A peculiaridade dessa situação, dificilmente identificável com uma dimensão religiosa, pode ser evidenciada pelo fato de que a compatibilidade de doutrinas diferentes nesse contexto se dá à condição que elas não se ponham no mesmo terreno... Mais uma vez, tudo isso demonstra quanto, excluindo o caso de importações estrangeiras, que não puderam exercer uma influência verdadeiramente profunda nem muito extensa, o desconhecimento do ponto de vista que nós identificamos enquanto “religioso” representa um dos raros traços comuns que podem ser observados na mentalidade chinesa, japonesa, mas também indiana e, em boa parte, do contexto extremo oriental.
 

IHU On-Line – Como o senhor define o problema da mediação cultural entre as missões cristãs e as populações indígenas?

Adone Agnolin –
A problemática proposta acima tem sua complexidade determinada substancialmente pelo olhar culturalmente condicionado do observador ocidental: isto é, condicionado pelo seu poderoso instrumento de universalização da leitura da alteridade sub specie religionis, herdeiro do processo de cristianização da religio romana... Todavia e apesar disso, nos específicos contextos operativos missionários, muitas vezes os jesuítas que se estabeleceram na Índia ao longo do século XVI, no Japão, no último quarto do século XVI, e na China no começo do século XVII, compreenderam melhor que tanta historiografia hodierna a extraordinária peculiaridade e diferença que apontamos até aqui. Por isso, em alguns casos exemplares, e sempre tendo em vista a necessidade de inserção de seu projeto missionário no contexto local, reputaram totalmente natural participar de tais cerimônias locais (realizar uma “mediação cultural” no sentido mais pleno da expressão), construindo assim uma inédita compatibilidade com o cristianismo: mesmo gerando a escandalosa acusação (de outras ordens religiosas e não só) de produzir novas e intrigantes formas de idolatria, polêmica que resultou na “disputa sobre os ritos”: mais conhecida aquela relativa aos ritos chineses, menos aquela relativa aos “ritos do Malabar” que se encontra no centro de nossa atual investigação. E por certos aspectos, esses missionários, havia totalmente razão se pensarmos, por exemplo, como o confucionismo, se colocavam inteiramente por fora do domínio religioso: e, veja-se bem, “por fora” não em termos de contraposição para se autonomizar e caracterizar, como acontece justamente no Ocidente da época moderna, mas em termos de uma diferença que se dá na medida em que não é posta (ainda, na época) a dimensão “religiosa” em termos de contraponto. É nesse sentido que o confucionismo, implicando somente quanto podia e devia normalmente ser admitido por todos os membros do corpo social sem distinção, tornava-se, portanto, perfeitamente conciliável com qualquer religião, assim como com a ausência de toda qualquer religião (a qual coisa, mais frequentemente, é explicada na e para a ótica ocidental em termos de “tolerância”, o que, de fato, resulta ser mais uma categoria gravemente extemporânea ao contexto histórico...).


Uma consciência hermenêutica

Portanto, bem antes e de forma, inicialmente, bem mais complexa daquele apresentado para o Novo Mundo americano, o contexto missionário asiático revelou, ao olhar atento da moderna missão jesuítica, aquilo que nós hoje chamaríamos de surgimento ou, talvez melhor, da evidência de uma perspectiva e, sobretudo, de uma “consciência hermenêutica”. Se, de fato, entendemos esta última como “consciência de uma problemática do contexto”, a nova conjuntura histórica e contextual na qual se inseria a missão jesuítica da primeira Idade Moderna revelara – aos missionários, antes, e à consciência europeia, depois – como a problemática do contexto e uma reflexão consciente sobre ela tornavam-se fundamentais para poder (dentro e a partir delas) enraizar uma obra de significação da mensagem evangelizadora cristã: e, com ela, da sua peculiaridade que se desprendia justamente no interior de contextos e de percursos históricos bastante distintos daquele da civilização ocidental.


Os fracassos e a consciência de uma problemática do contexto

Os fracassos operativos resultados dos esforços dos primeiros missionários se tornarão de extrema utilidade para entender, justamente, a importância desta “consciência de uma problemática do contexto”. Se, por um lado, a ação missionária encontrou-se, logo, na necessidade de produzir, para seus fins, uma série de (primeiras) obras catequéticas, por outro lado, será na base do fracasso (operativamente constatado) delas que, justamente, aos poucos irá se constituindo uma proto-hermenêutica missionária asiática. Tanto em sua produção como na tradução de obras já clássicas para as línguas asiáticas, os missionários acabam se dando conta que, em sua extrema procura de uma aderência literária a essas obras – autorreferenciais em relação ao contexto ocidental de sua produção inicial –, eles obtinham, de fato, sua mais evidente incompreensão ou, às vezes ainda pior, o resultado da produção de mal-entendidos que decorriam delas. Nesse sentido, o contexto missionário e jesuítico asiático acabou produzindo uma progressiva e cada vez mais madura consciência de que unicamente uma problemática do contexto podia oferecer os instrumentos, apriorísticos e fundamentais, para enraizar, antes que uma produção ou tradução/transliteração de qualquer tipo de obra, sobretudo uma “obra de significação” que, depois, se revelasse essencial e norteadora, inclusive para corrigir, sucessivamente, as primeiras obras de traduções catequéticas, doutrinárias e evangelizadoras em sentido mais amplo e abrangente : nesse contexto, para poder responder de algum modo ao imperativo evangelizador, os próprios missionários encontraram-se subjugados por uma inescapável abertura ao problema da mediação cultural junto às populações locais. Exemplo interessante a esse respeito é levar em consideração as obras “literárias” (ocidentais ou locais), por além daquelas propriamente “religiosas”, que os missionários se dedicaram a traduzir para, com elas, encontrar e tecer valores interculturais que, por além daqueles propriamente religiosos, ajudassem a construir um canal comum (de algum modo) de comunicação através da dupla perspectiva de ocidentalização de valores locais e vice-versa. E, de qualquer maneira, na especificidade do contexto asiático, a operatividade desta mediação cultural tornou-se possível somente através de sua necessária inserção no interior de uma consciência hermenêutica e das peculiares dinâmicas missionárias jesuíticas junto às culturas do Oriente.


Consciência historiográfica

Sobretudo, porém, tendo em vista as dimensões propriamente “religiosas” dos empreendimentos ultramarinos, a atuação missionária, a realização de uma mediação cultural protagonizada por estes, as diferentes modalidades em que isso se constituiu a partir dos diferentes contextos e das diferentes relações de força das culturas ou dos interlocutores locais, é importante levar em consideração como tudo isso pôde e pode começar a ganhar uma maior consciência historiográfica a partir do momento em que, fundamentando-se na base da anterior realização de uma análise propriamente histórico-crítica-comparativa (aquela da perspectiva histórico-religiosa, que acenamos acima), se começou a propor a necessidade de uma metodologia de investigação, propriamente histórica, da categoria de religião através de um percurso histórico-comparativo: interno e esterno ao Ocidente que produziu a categoria.

1. Internamente no mundo ocidental, o percurso da categoria do religioso permitiu recuperar sua dimensão e função de universalização – implementada na base do modelo da anterior civitas romana, ressemantizado no processo de sua sucessiva cristianização.

2. No contexto externo, além de manifestar a força universalizante e de tradução das alteridades etnológicas realizada sub specie religionis, esta perspectiva forneceu à nova historiografia a possibilidade de se abrir para este novo impulso crítico que redimensiona o religioso na história, permitindo também focalizá-lo a partir de outros prismas: nesta direção distinguiram-se, finalmente, os diferentes sentidos das missões religiosas dependendo dos diversos tempos e contextos, permitindo a apreciação de formas diferenciadas de sua associação aos processos de formação das novas sociedades coloniais.


O contexto imperial português

Nesta última perspectiva, logo acima apontada, devem ser entendidos processos, funções, mediações e, finalmente, a colocação estratégica das missões no contexto imperial português. Deve-se enfim, muito provavelmente, à maior força (historicamente determinada e determinante) de organização do ideário imperial por parte do “Império simbólico” o fato de que, no começo do empreendimento, os agentes da evangelização cristã viram-se reconhecida (e, de qualquer modo, sempre reivindicaram) uma precedência para organizar os interesses comerciais, diplomáticos e militares do império marítimo português (cf.: Charles R. Boxer. O império marítimo português – 1415-1825). Essa função das missões no contexto imperial torna-se ainda mais evidente lá onde possamos destacar como a prioridade da organização dos interesses imperiais se identificou, sobretudo, com a entrega aos missionários da função de tutelar pela sua aplicação junto aos diversos povos com os quais entraram em relação, nos diversos pontos que constituíam a rede imperial: no fundo, os agentes missionários foram não somente os instrumentos privilegiados de mediação e de tradução do “religioso” ocidental para as culturas outras, mas foram, principalmente através desse código interpretativo e prioritário, os veículos privilegiados do princípio de universalidade estendido, pela administração imperial, para as culturas extraocidentais. Significativo o fato de que as missões nesse contexto imperial tinham em vista, ao mesmo tempo, oferecer uma legitimidade à expansão portuguesa no interior de um imperativo (antes próprio) de “moralização” e/ou “civilização” (este último no contexto americano, onde acabou se tornando prioritário em relação àquele, dependente e sucessivo, da evangelização) das práticas indígenas que deviam, para tanto, serem subordinadas à finalidade principal da conversão dos povos: e o esforço deste empreendimento realizava-se junto aos conselhos e outros órgãos da administração ultramarina portuguesa, assim como na criação de línguas veiculares (“línguas gerais”, “grego da terra”, “latim dos Brâmanes” etc.) que serviram tanto para a evangelização como para as trocas comerciais e para a inserção na e formação de uma diplomacia local.


Mediação cultural

Nesse sentido, em sua ambição missionária (religiosa) e universalista, o catolicismo sustentou diálogos e entendimentos, mas também justificou e produziu confrontos e mal-entendidos que revelam visões de mundo e interesses radicalmente distintos. Contudo, nesses turbulentos processos históricos que se desprendiam de um imperativo evangelizador, deve-se reconhecer que ele veio ensaiando, de qualquer modo, processos de “encontro” e de “compatibilizações” dessas diferenças, traduzidas em uma linguagem e perspectiva religiosa: não por acaso, um dos resultados importantes da aquisição dessa perspectiva para a historiografia contemporânea, em relação à problemática em questão, é aquele resultante no diálogo interdisciplinar que foi se constituindo ao redor do conceito de “mediação cultural” (cf. Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. Org.: Paula Montero, São Paulo, Globo, 2006). É no interior desse contexto da necessária realização de uma mediação cultural que a interpretação jesuítica da cultura oriental mostra, neste caso, como o instrumento “religião” tornou-se, para eles mesmos, de escassa utilidade, quando não, pior, de imperdoável distorção daquela realidade. É nesse caso significativo que a tradução dessa cultura “outra” tenha procurado outro necessário instrumento, não somente analógico mas também dialógico e universal que pudesse traduzir esta específica alteridade para o Ocidente. E, mais uma vez, torna-se significativo que, com esse objetivo, a tradução procurou reativar a relação com a cultura da antiguidade romana, justamente em seu privilegiado mecanismo de universalização e mediação cultural anterior à reformulação tardo-imperial do conceito de “religião”: trata-se do civil, contido e permeado pelos seus aspectos propriamente políticos e morais ou, segundo os termos ciceronianos do De re publica, nas “leges et statuta moresque”. O instrumento conceitual do “civil” tornou-se, então, no contexto asiático, mais poderoso que aquele de “religião”, como demonstra o exemplo da nova perspectiva missionária lançada no Japão pela virada da política jesuítica proposta pelo visitador Alessandro Valignano com sua proposta de adoção de uma inédita “política de adaptação” com os senhores feudais (daimyo) contra o budismo que se tornava seu comum e principal inimigo. Foi justamente o paralelo (isto é, o equívoco) que se estabeleceu entre budismo e cristianismo que demonstrou efetivamente a derrota dessa primeira atividade e estratégia missionária que, inevitavelmente, apontou para a necessidade de redirecionar a adaptação jesuítica, partindo finalmente de uma mais sólida inserção e de um profundo entendimento do contexto das “civilizadas” culturas orientais: apontou, enfim, para a imprescindibilidade de uma nova e apriorística (em relação ao projeto evangelizador) problemática hermenêutica asiática a ser aprofundada no novo contexto missionário.


IHU On-Line – Que resquícios ainda persistem na forma de viver a crença religiosa em nosso país e que foram deixados pelo encontro catequético e ritual nos séculos XVI a XVII? Como se dão os processos de alteridade e identidade religiosa no século XXI?

Adone Agnolin –
A respeito do conjunto dessas duas perguntas, não temos a pretensão, aqui, de procurar funções interpretativas assumindo a responsabilidade de um diagnóstico de cunho sociológico. Mantendo, todavia, a perspectiva de nossa atenção propriamente historiográfica para com o problema, permitimo-nos apenas acenar para algumas características gerais, bastante significativas para nosso “olhar duplamente estranhado” (de historiador e de, ainda de algum modo, estrangeiro), da atualidade política, social e religiosa do Brasil. E é justamente a partir do problema que diz respeito à relação entre Ocidente e alteridades antropológicas que precisamos levar em consideração quanto à perspectiva (própria e característica) histórica e operativa do “real”, que pertence propriamente à cultura ocidental, se destaca em relação (e se contrapõe), fundamentalmente, ao patrimônio mítico-ritual das sociedades etnológicas. Estas, nos choques sofridos perante a cultura ocidental, acabam perdendo as funções próprias de seu aparato mítico-ritual enquanto fundamento dessas sociedades que vem sendo progressivamente relegado ao religioso. Mas, a esta altura, ocorre um problema bastante relevante no interior da ressemantização das alteridades etnológicas. De fato, este “religioso”, forçosamente estendido como significante das novas realidades históricas e coloniais, oculta em seu interior uma fundamental e característica distinção que lhe é própria e que com graves dificuldades, lacunas ou mal-entendidos consegue se inscrever no patrimônio (em transformação) dessas culturas “outras”: trata-se da distinção que, a partir do mundo romano, caracteriza ainda peculiarmente o Ocidente e que se configura por sua dialética entre cívico e religioso: o primeiro representando um campo que podemos definir de ação histórica, política e científica; o segundo, o religioso, caracterizado por sua dimensão meta-histórica e extra-humana. Por outro lado, e não apenas secundariamente, é levando em consideração essa distinção prioritária que se pode verificar como historicamente – e sempre a partir de suas raízes afundadas na cultura da Roma antiga –, o cívico na nossa cultura é definido pela dialética entre público e privado, enquanto, por outro lado, o religioso é definido pela dialética entre sacro e profano (Dario Sabbatucci. La Prospettiva Storico-Religiosa, Milão, Il Saggiatore, 1990).


A fundamental distinção ocidental

Tendo em vista tudo isso e tentando responder em termos gerais às duas perguntas, portanto, podemos apontar que tanto os processos de alteridade e identidade religiosa em contextos coloniais, no século XXI, como a específica herança do contexto brasileiro do encontro catequético e ritual dos séculos XVI e XVII manifestam “resquícios” e processos contraditórios justamente em relação à forçada e forçosa sobreposição dos respectivos termos da fundamental distinção ocidental. Isso significa que, se em termos ocidentais podemos representar a equação segundo a qual cívico: religioso = o público: privado, parece-nos que, no Brasil, a distinção dos planos torna-se, muitas vezes, bastante lábil, quando não perigosamente confusa. No fundo, cabe ressaltar que a construção de um projeto evangelizador e missionário neste contexto da América portuguesa constituiu-se justamente na base da proposta de Nóbrega, a partir dessa confusão essencial dos planos religioso e político, ao mesmo tempo: os aldeamentos jesuíticos, com seus objetivos religiosos, foram construídos conforme o Plano Civilizador do jesuíta e, a partir dessa primeira experiência histórica, as sucessivas reduções jesuíticas, com seus objetivos missionários, traduziam de fato uma primeira e fundamental proposta de reductio ad vitam civilem...


Alguns exemplos

A seguir apontamos alguns exemplos fragmentários e escolhidos ao acaso, propostos apenas para tentar estimular eventualmente uma reflexão a ser empreendida. Apesar, em algum caso, de inegáveis esforços e de alguns significativos resultados em termos institucionais, cremos deva chamar bastante a atenção o fato de manifestar-se aqui no Brasil um forte limite no que diz respeito à realização de um processo pleno de laicização do espaço público (emblemática, entre outras manifestações, a persistência de fortes condicionamentos morais e religiosos em relação a determinadas questões partidárias e político-institucionais). Apesar de uma atenção de fundo e dos extraordinários resultados em termos legais, até mesmo constitucionais (a partir de 1988), que dizem respeito ao reconhecimento de uma fundamental compatibilidade jurídica (e de uma sua consequente regulamentação) da sociedade brasileira em relação às suas sociedades indígenas, chama atenção a constatação de resultados que, muitas vezes, manifestam a total contradição desse esforço em sua realização no exercício prático e cotidiano da cidadania, quando não, como de atualidade, um quanto menos bastante problemático retorno a fundamentos raciais (negadores do princípio de cidadania) norteando institucionalmente práticas públicas, políticas, educativas e sociais. Ainda e finalmente, podemos apontar a forte e evidente dificuldade de construir bases propriamente cívicas, sobretudo no específico âmbito acadêmico, que permitam preparar o terreno fértil para uma possibilidade de pensar a própria dimensão do religioso em termos (peculiares e autônomos) históricos e sociais, subtraídos a uma dimensão transcendente: plenamente legítima essa última “escolha”, entenda-se, no plano individual, mas fortemente prejudicial quando confunde, mais uma vez, os âmbitos do privado daquele público (acadêmico).


Leia mais...

>> Adone Agnolin já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

• Reduções jesuíticas: um projeto político e evangelizador. Publicada na IHU On-Line número 348, de 25-10-2010

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