Edição 407 | 05 Novembro 2012

O sagrado como uma dimensão vital da experiência humana

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Graziela Wolfart

Para Pablo Wright, todas as instituições históricas religiosas são herdeiras da modernidade predominante no Ocidente

“As manifestações populares de religiosidade mostram uma imensa criatividade ideológica, ritual e organizacional que põe em apuros a aparente estabilidade simbólica de figuras, valores e práticas rituais das religiões institucionais”. A afirmação é do antropólogo e professor da Universidade de Buenos Aires, Pablo Wright. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele explica que, a partir da perspectiva antropológica, “as religiões não se esgotam nas instituições históricas que conhecemos e que para o senso-comum são sinônimos de ‘religião’. As religiões são fenômenos socioculturais que têm muitas facetas, são dinâmicas e possuem muitas camadas de sentidos simbólicos em suas crenças, rituais e organização. A experiência do sagrado é uma dimensão vital da experiência humana, e ela aparece nos diferentes tempos, épocas e culturas com diferentes roupagens; mas sempre é uma experiência social atravessada pelo coletivo. Nossa tarefa como antropólogos é decifrar o sentido das roupagens, de onde elas vêm, o que propõem e que relação possuem com o contexto maior – seja local ou global – no qual têm sentido para os atores sociais”.

Pablo Wright é professor no Instituto de Ciências Antropológicas da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad de Buenos Aires – UBA. Pesquisador independente do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – Conicet, da Argentina. Suas especialidades são antropologia simbólica, antropologia da religião e etnografia do Chaco.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que o senhor destaca sobre as narrativas da modernidade religiosa contemporânea?

Pablo Wright –
As narrativas da modernidade religiosa são múltiplas e variadas. Todas, seja de instituições históricas, como a Igreja Católica e as diferentes igrejas protestantes, seja até mesmo as formas de hinduísmo e/ou budismo, são, em maior ou menor medida, herdeiras da modernidade predominante no Ocidente. Esta modernidade está atravessada por ideais culturais do iluminismo, com sua ênfase na razão e na ciência experimental como modelos autorizados de explicação sistemática do mundo e de seus fenômenos; pelas forças e pelas utopias da revolução industrial e da tecnologia; pelas instituições de controle social e organização político-territorial, como os estados e as escolas; pela ideologia do indivíduo como sujeito autônomo, entre as mais importantes. Outras instituições e grupos ou movimentos menos hegemônicos, como as diferentes organizações pentecostais e neopentecostais, os grupos espíritas e os grupos esotéricos históricos – como o Rosacruz , a Teosofia , e as diversas modalidades da Antroposofia  –, junto às manifestações contraculturais neo-orientais dos anos 1960, com a confluência frouxa no chamado movimento da Nova Era, propõem visões alternativas a essas certezas da modernidade. Tanto as religiões históricas como aquelas contraculturais recém-mencionadas parecem defender algumas narrativas mestras e criticar outras, ou oferecer novas interpretações a velhos problemas. Agora, as narrativas tentam construir pontes com a ciência, a psicologia, a antropologia, inclusive com a economia e o mercado, às vezes propondo novas vias de acesso à transcendência ou à imanência ontológica, conforme o caso. Às vezes, a partir de propostas neotradicionais, se propõe voltar às origens místicas do mundo e do ser humano com um novo olhar que enriqueça os dramas existenciais da vida contemporânea.


IHU On-Line – Quais as novidades da religiosidade popular em nossos dias?

Pablo Wright –
O termo “religiosidade popular” não é conceitualmente útil a partir da antropologia para analisar formas mais ou menos criativas e heterodoxas da religiosidade de sujeitos sociais não institucionais. O termo reflete o lugar de enunciação que define o fenômeno e que indica um olhar institucional. Uma vez dito isso, podemos afirmar que as manifestações populares de religiosidade mostram uma imensa criatividade ideológica, ritual e organizacional que põe em apuros a aparente estabilidade simbólica de figuras, valores e práticas rituais das religiões institucionais. Essa criatividade se expressa, por exemplo, em figuras populares que ajudam aos mais necessitados; ou personagens históricos ou míticos que têm como tarefa atender às necessidades de gente que não encontra respostas simbólicas nem práticas a seus dilemas vitais. Expressam modos de sentir, de agir e de sonhar de forma definitiva, como uma agência coletiva que tem suas próprias lógicas simbólicas e políticas, onde o que está em jogo não é só o universo de crenças e de rituais, mas também a identidade social que estas formas de religiosidade convocam e ajudam a construir.


IHU On-Line – Em que os sujeitos contemporâneos creem e por que creem? O que justifica sua fé e sua vivência religiosa?

Pablo Wright –
Hoje em dia, apesar das crises dos sistemas religiosos, há um amplo contingente de crentes nas religiões históricas, sejam eles mais ou menos praticantes ou devotos. No entanto, os sistemas de crenças e as instituições religiosas vêm de marcos coletivos de identidade religiosa que cumprem importantes funções sociais. O que é indubitável é que, para as classes médias em geral, há uma maior individualização das crenças e às vezes um pertencimento múltiplo a distintos grupos, onde, como afirma o antropólogo Alejandro Frigerio , a identidade social pode passar por uma igreja, por exemplo, enquanto que a identidade religiosa se dispersa por um conjunto de práticas e crenças alternativas, como o curandeirismo, o xamanismo, a Nova Era, etc. Não obstante, observa-se também uma amplíssima variedade de sujeitos que participam em diversos grupos. Em termos culturais, qualquer objeto, evento ou personagem histórico pode se transformar em objeto de crença. Trata-se de uma ação coletiva onde estas pessoas se carregam de um valor simbólico especial. E as tradições religiosas, sejam institucionais ou não, e os contextos sociopolíticos e culturais, são os que guiam estes processos de carga, perda ou recarga.


IHU On-Line – Por que o senhor acredita que estamos diante de uma verdadeira globalização religiosa? Como o senhor define essa situação?

Pablo Wright –
A globalização religiosa é parte do processo mais geral de globalização econômica e cultural que se deu desde a década de 1960, e mais ainda desde o final dos anos 1980, com os avanços tecnológicos das comunicações. As diferentes formas de contracultura dos anos 1960 geraram a emergência de muitas e importantes correntes de crítica religiosa nutridas pelo orientalismo, onde grupos de origem hindu, chinesa, coreana ou japonesa passaram pelos Estados Unidos e, a partir daí, se expandiram pelo mundo, inclusive retornando a seus lugares de origem com uma identidade institucional e corpo de crenças e rituais reelaborados. Atualmente, os grupos mantêm contato global através de páginas web, teleconferências e outros meios similares. Muito da estrutura ideológica dos movimentos da Nova Era foi bastante influenciada por estas formas neo-orientais. No mundo cristão, a expansão de grupos protestantes de diversas características é paralela com a expansão política e econômica dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial, e expressa em suas diferentes etapas históricas até os presentes modos persistentes de globalização e de colonização cultural, com múltiplas reelaborações locais. Finalmente, as migrações trabalhistas em função das crises econômicas e/ou políticas em diferentes países do planeta, contribuíram para expandir tanto as instituições como os modos de religiosidade de lugares distantes, que antes não haviam estado em contato. Todos eles sofrem importantes processos de adaptação cultural aos lugares de chegada.


IHU On-Line – Em que consiste o mundo religioso que poderia ser entendido como paralelo ao mundo das religiões oficiais, mas que hoje transcende essa categoria e compete com os credos antigos?

Pablo Wright –
O mundo religioso que convive com as religiões oficiais possui um conjunto de crenças variadas e provê os sujeitos sociais de marcos de identidade e de experiência que eles não recebem daquelas instituições históricas. Em geral, trata-se de um mundo sagrado povoado de muitas entidades (deste mundo e de outros do universo) com diversos poderes com os quais as pessoas podem estabelecer um contato direto, onde a ideia de ter próprias experiências do sagrado é muito valorizada. Estas experiências se relacionam com tecnologias do ser particulares (relacionadas com as ideias de Foucault  sobre “tecnologias do eu”), que se orientam a transformar o corpo e a alma da pessoa. Não creio que há uma competência direta dos novos credos com os que ocupam um lugar mais ou menos hegemônico no campo religioso, pela desigualdade de capitais simbólicos e culturais em questão. Mas em termos de ideologia religiosa, de práticas rituais, de projeção social e/ou identitária, impactam profundamente no imaginário coletivo, reelaborando velhos livros sagrados e dogmas à luz de uma filosofia de vida onde se tenta restabelecer o contato “direto” com a revelação, com o mítico, com o poder sagrado da salvação e da redenção ontológica.


IHU On-Line – Que espaço as religiões tradicionais ocupam em relação à conversão de fiéis no século XXI?

Pablo Wright –
A partir de uma perspectiva antropológica podemos dizer que sempre haverá religiões tradicionais, ou seja, conjuntos de organizações de crenças e práticas com muita ou pouca institucionalidade que, em certo momento, da história se estabilizam e se tornam “tradicionais” frente a outras que surgem de fragmentos daquelas ou de movimentos socioculturais que vêm de outras áreas do campo religioso. Ou seja, as religiões que agora são tradicionais, o cristianismo, o islamismo, o hinduísmo, ou o budismo, por exemplo, o são hoje de certa forma mais ideológica que prática, já que na prática há um sem-número de organizações dentro do campo cristão, por exemplo (seja católico ou protestante), que nos previne de pensá-lo como algo homogêneo, centralizado e possuindo uma unidade dogmática, ritual, organizacional e política. É mais uma comunidade imaginada do que uma realidade fática, empírica. Mas isso não nos deve distrair da análise sociopolítica do campo religioso, onde há alguns atores hegemônicos e outros que ocupam diversas posições mais periféricas. Nesse contexto, poderíamos definir os primeiros como “tradicionais” frente aos segundos que seriam contestatários e questionadores da “verdade” sagrada que aqueles nos oferecem. Mas estas diferentes posições no campo são históricas, não permanentes.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário?

Pablo Wright –
Creio que seria importante assinalar que, a partir da perspectiva antropológica, as religiões não se esgotam nas instituições históricas que conhecemos e que para o senso-comum são sinônimos de “religião”. As religiões são fenômenos socioculturais que têm muitas facetas, são dinâmicas e possuem muitas camadas de sentidos simbólicos em suas crenças, rituais e organização. A experiência do sagrado é uma dimensão vital da experiência humana, e ela aparece nos diferentes tempos, épocas e culturas com diferentes roupagens; mas sempre é uma experiência social atravessada pelo coletivo. Nossa tarefa como antropólogos é decifrar o sentido das roupagens, de onde elas vêm, o que propõem e que relação possuem com o contexto maior – seja local ou global – no qual têm sentido para os atores sociais.

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