Edição 406 | 29 Outubro 2012

O “mensalão” e a esquerda. Uma leitura crítica a partir da esquerda

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Cesar Sanson

“É inegável que a direita procura usar o ‘mensalão’ como um aríete para abalar a fortaleza em que se transformou o mito Lula, porém, cabe à esquerda social abordar esse tema e criticá-lo pela esquerda. Validar o discurso de que não se pode criticar os dirigentes do PT pelos equívocos que cometeram porque isso significa jogar ‘água no moinho da direita’ é recusar a essência do que significa ser esquerda”, escreve Cesar Sanson, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e docente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, em artigo que sintetiza a Conjuntura da Semana publicada no sítio do IHU em 23-10-2012. A íntegra pode ser acessada no link http://bit.ly/TPvSBe Eis o artigo.

A repercussão daquele que é considerado o maior e mais extenso julgamento da história do Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Penal 470, popularmente conhecida como 'mensalão', ganhou grande espaço na mídia, nas redes sociais e assumiu no debate ares extremado de ideologização. Embora a ação tenha julgado vários personagens da esfera privada – banqueiros, empresários e publicitários –, o foco maior ficou nos personagens da esfera pública, particularmente das lideranças de proa do PT. A esquerda brasileira, majoritariamente, tratou a ação como “julgamento político” – muitos como um “julgamento de exceção”. 

É inegável o uso político do julgamento do mensalão – recurso constitutivo ao pesado jogo político. No seu conteúdo geral, entretanto, a posição de intelectuais, organizações sociais e ativistas políticos que criticaram o julgamento como sendo de “exceção” é simplista e grave porque corrobora o sentimento geral de que ética não combina com política e, pior ainda, autoriza aquela velha história de que em função de objetivos considerados maiores, os fins justificam os meios. 

Tampouco se pode aceitar a tese do que aconteceu foi acidental, ocasional. O que sucedeu com o ‘mensalão’ e suas derivações é regra corrente na estruturação, financiamento e mobilização pela disputa do poder. Tampouco vale a justificativa de que os outros sempre fizeram o mesmo e apenas agora, por ser o PT, é que o julgamento passou a ser rigoroso. Na realidade, faz tempo O PT vem manifestando sinais que se transformou num partido tradicional no modo de fazer política. Segundo o filósofo Thales Ab'Sáber o ‘mensalão’ “foi o cartão de visita e o atestado das práticas políticas de direita que o partido [PT] passou a utilizar para chegar e se manter no poder – entendida a direita aqui nos termos da política brasileira. Conchavos de bastidores com partidos oportunistas e mesmo politicamente inimigos, manipulação de processos eleitorais através de acordos que serão pagos posteriormente a qualquer custo, concepção do Estado como uma fonte de financiamento dos interesses particulares de grupos, tudo isso à margem da lei”.

O cientista político Fábio Wanderley Reis considera que o ‘mensalão’ só foi possível em decorrência de uma espécie de desvio ideológico do PT: “A arrogância produzida por certa autoimagem ideologicamente condicionada, que levou à desqualificação dos outros participantes do jogo parlamentar, considerados burgueses, e à ideia de que o melhor a se fazer era comprar sua lealdade. É um cinismo autorizado, um maquiavelismo de araque, em função de objetivos considerados maiores, com a ideia de que os fins justificam os meios”.

A tese de “desvio ideológico” é contestada por aqueles que consideram o mensalão como uma contingência da indispensável necessidade de se construir uma maioria de sustentação ao governo – a tese da governabilidade. Sobre isso comenta o sociólogo Luiz Werneck Vianna: “A matéria bruta da Ação Penal 470, o mensalão, foi gestada no interior e a partir dessa decisão política de perseguir objetivos de mudança social desancorada de uma ativa esfera pública democrática, que importava a mobilização dos movimentos sociais, que logo, aliás, seriam postos sob a influência de agências estatais, quando não estatalizados tout court, convertendo-se a política num quase monopólio da chefia do Executivo”. Segundo ele, “aos partidos dessa bizarra coalizão presidencial, tangidos a ela com a expectativa de extrair recursos públicos para sua reprodução eleitoral, caberia conceder apoio parlamentar às iniciativas governamentais, enquanto ao Executivo, pelas vias decisionistas do direito administrativo, caberia realizar a agenda de mudanças avaliada como compatível com as circunstâncias”.

O ‘mensalão’, portanto, passou a ser aceito por muitos como um expediente que foi necessário para garantir governabilidade e realizar os avanços que o Brasil precisava. Nessa concepção trata-se de um mal menor em função de um bem maior – a ideia de que os fins justificam os meios, como já destacado. 

É recorrente no Brasil, a tese de que para sobreviver na política, por um lado, é preciso estar ao lado de quem está no poder e, por outro, quem está no poder precisa se aliar aos que não estão para criar as condições de governar. Segundo o professor da Unicamp Roberto Romano, “é proibido no Brasil ser oposição”. Diz ele: “Se discordar, não tem acesso aos recursos. Sem recursos, não leva obras para a sua região. Sem obras, não é reeleito, fica fora do jogo. Esse ‘é dando que se recebe’, essa ausência de partidos reais, tem como origem essa estrutura do Estado brasileiro que é supercentralizada”. 

A partir da interpretação da realpolitik – na política as coisas funcionam assim, parte da esquerda atribui o destaque ao ‘mensalão’ a retomada de certa agenda udenista no país, ao gosto da direita, que procura obsessivamente desmontar os avanços sociais obtidos na Era Lula. Nessa ótica, o ‘mensalão’ é visto como algo menor diante de tantas conquistas e avanços sociais e econômicos. Essa posição suscita uma questão: A instauração de políticas sociais, o bolsa-família, a política de cotas, a mobilidade social dos mais pobres para cima, fornecem um “salvo conduto” aos erros de seus dirigentes? Tudo pode ser justificado ou atenuado porque o PT, no governo, passou a adotar políticas sociais antes inexistentes?

É inegável que a direita procura se apropriar do discurso udenista e usa o ‘mensalão’ como um aríete para abalar a fortaleza em que se transformou o mito Lula, porém, cabe à esquerda social abordar esse tema e criticá-lo pela esquerda. Validar o discurso de que não se pode criticar os dirigentes do PT pelos equívocos que cometeram porque isso significa jogar “água no moinho da direita” é recusar a essência do que significa ser esquerda.

Uma contribuição para problematizar o tema do ‘mensalão’ é olhá-lo a partir do método da complexidade sugerido por Edgar Morin que propugna que nada está isolado, todas as ações reverberam e apresentam consequências. Ainda mais sofisticado, Morin fala no princípio do ‘caráter complexo da ética’ que se manifesta naquilo que chama de ‘ecologia da ação’. Diz Morin: “Desde o momento em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja ela, esta começa a escapar de suas intenções. Ela entra num universo de interações e finalmente o meio ambiente apossa-se dela num sentido que pode se tornar contrário ao da intenção inicial. Com frequência a ação retorna em bumerangue sobre nossa cabeça”, escreve ele no livro Introdução ao pensamento complexo (Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 80-1).

Aqui entra o PT e a ação de muitos de seus dirigentes, que “aceitavam” o jogo do ‘mensalão’ e suas diferentes modalidades – o mesmo vale para militantes de base – na convicção de que se tratava de um mal menor ou mesmo necessário para o avanço das reformas no Brasil.

A contemporização com os desvios do PT, ou a indulgência para com parcela dos seus dirigentes despolitiza o debate e, ainda mais grave, assume caráter antirrepublicano.

A polêmica do ‘mensalão’ suscita e recoloca em pauta o debate do que é ser esquerda hoje.

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