Edição 199 | 09 Outubro 2006

O gênero é uma instituição social mutável e histórica

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IHU Online

Judith Butler é uma proeminente filósofa americana pós-estruturalista, que tem contribuído há muitos anos para os estudos do feminismo, da teoria queer, da filosofia política e da ética. Ela é professora no Departamento de Retórica e Literatura Comparativa da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e aceitou conceder a entrevista que segue para a revista IHU On-Line por e-mail.

Butler recebeu seu Ph.D. em Filosofia da Yale University em 1984 e seu trabalho foi publicado em seguida com o título Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France. No final dos anos 1980, entre diversas atividades como professora e pesquisadora, Butler se envolveu no esforço pós-estruturalista da teoria feminista ocidental para questionar os termos do feminismo. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, publicado em 1990, é seu principal livro.  A edição francesa, sob o título Trouble dans le Gendre. Pour um féminisme de la subversion, foi publicado no ano passado, 2005, pela Editora La Découverte, com o prefácio “Trouble-genre” do sociólogo Éric Fassin.

IHU On-Line - O que caracteriza o pensamento lésbico contemporâneo?

Judith Butler
- Não sei se existe o pensamento lésbico contemporâneo. Acho que seria um erro basear um tipo de pensamento sobre uma identidade. Se há um certo tipo de pensamento que tenha a ver com as lésbicas, então certamente seria um que tem a ver com como nós “somos” não-singulares ou definíveis em um jogo específico de termos. Estou refletindo se isso seria o pensamento de diferença e relação.

IHU On-Line - O movimento lésbico defende a completa autonomia do sujeito?

Judith Butler
- Eu mesma nunca defendi a completa autonomia do sujeito. Eu esperaria, se existe tal movimento, que ele sustentasse uma crítica rigorosa da autonomia. Afinal de contas, autonomia presume autodefinição e autogoverno, e isso se choca com a noção do animal humano que é constituído em sociedade. Eu prefiro que ressituemos o problema da autonomia dentro da idéia do social, na qual nós estamos inevitavelmente ligados uns aos outros. Autonomia é uma noção defensiva e subscreve a maior parte da história do machismo. Então, se queremos ser “autônomos”, isso poderia ser apenas pela descoberta de que não detemos a verdade sobre nós mesmos.

IHU On-Line - De que formas as tecnologias favoreceram o sentimento de autoconstrução e auto-realização como um sujeito autônomo no caso das mulheres?

Judith Butler
- Você supôs que para mim a “autonomia” é uma meta, mas eu tenho problemas com essa meta. Estou pensando se existem outros termos que possam articular o problema da liberdade. A tecnologia é um instrumento que devemos usar, especialmente a tecnologia reprodutiva. E a tecnologia é também um regime que pode nos usar. Essa é uma aposta e um risco, e não há solução para essa ambivalência.

IHU On-Line - Qual é seu conceito de gênero?

Judith Butler
- Essa é talvez uma questão muito abrangente. Mas tenho argumentado que gênero é performativo. Isso significa que o gênero não expressa uma essência interior de quem somos, mas é constituído por um ritualizado jogo de práticas que produzem o efeito de uma essência interior. Eu também penso que o gênero é vivido como uma interpretação, ou um jogo de interpretações do corpo, que não é restrita a dois, e isso, finalmente, é uma mutável e histórica instituição social.

IHU On-Line - O que podemos entender hoje por “diversidade sexual”?

Judith Butler -
O termo pode representar pessoas envolvidas em uma larga disposição de atos sexuais; pessoas que quaisquer que sejam suas identidades, não são a mesma coisa que os atos que desempenham; pode significar que diferenças morfológicas nem sempre são binárias na forma; que desejos e prazeres não são para se julgar normativamente, mas compreendidos em um contínuo de agenciamento e resposta sexual humana.

IHU On-Line - Em sua opinião, o universo masculino e a sociedade patriarcal estão em crise?

Judith Butler -
Talvez. Mas devemos lembrar que o que é mais problemático é como os poderes patriarcais seguram essa crise. Por exemplo, nos EUA, após termos sido atacados em 11 de setembro, uma certa disposição masculina não podia carregar o fato de sua permeabilidade. Então procuraram estabelecer a absoluta autonomia dos EUA, e isso se tornou uma postura defensiva e agressiva, traduzida em políticas de guerra e destruição.

IHU On-Line - Qual é o papel da religião em uma sociedade de sujeitos autônomos e autoconstituídos?

Judith Butler -
A religião é uma importante matriz para a formulação de valores. Assim como o é o secularismo. Ambos podem assumir formas dogmáticas, e há possibilidade para o questionamento crítico nos dois casos.

IHU On-Line - Como compreendemos uma sociedade na qual os sujeitos podem não ter relação alguma com o transcendental?

Judith Butler
- Depende do que você quer dizer com “transcendental”. Se você fala das condições de possibilidade de conhecer, no sentido kantiano, então para mim não há problema. As condições de possibilidade do saber são históricas e culturais, e estão abertas a crises e mudanças. Se você se refere ao que é “transcendente”, isto é, como o que existe sobre e além da existência, palavra empírica, então eu diria que a “possibilidade” é sempre transcendente. Se nos orientarmos para um futuro que “ainda está por vir”, como Derrida sugeriu, nos orientamos para algo que não é ainda, e então não existe empiricamente. Mas o que imaginamos para a justiça, a igualdade e a liberdade é “transcendente”.  Sem tais ideais, nós não poderíamos continuar em nenhuma de nossa lutas.

 

 

 

 

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