Edição 405 | 22 Outubro 2012

O Universo fértil e as três bailarinas

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Márcia Junges / Tradução: Luís Marcos Sander

Acaso, necessidade e fertilidade se imbricam na composição da concepção de Universo do matemático jesuíta George Coyne. Precisamos deixar de lado o Deus ditador e “newtoniano”, compreendendo-o ao invés disso como criação constante

“A liberdade para buscar a compreensão, e não o dogmatismo no que se compreende, caracteriza o melhor da busca científica das origens e do sentido do Universo e, especialmente, da vida no Universo”. Com essa percepção o matemático George Coyne, jesuíta, respondeu por e-mail às questões da IHU On-Line, explicando o que compreende por Universo fértil. Esse conceito deve ser pensado como “um balé com três bailarinas: o acaso, a necessidade e a fertilidade. Isso significa que o Universo é tão fértil na oferta de oportunidades para o sucesso de processos tanto do acaso como da necessidade que esse caráter do Universo precisa ser incluído na busca por nossas origens no Universo”. Coyne adverte que aquilo que a ciência nos fala sobre Deus deve ser diferente do Deus pensado por filósofos e teólogos da Idade Média: “Para o crente religioso, a ciência moderna revela um Deus que fez um Universo que tem dentro de si um certo dinamismo e, assim, participa da criatividade do próprio Deus. Se respeitam os resultados da ciência moderna, os crentes religiosos têm de se afastar da noção de um Deus ditador, um Deus newtoniano que fez o Universo como um relógio que continua a tiquetaquear regularmente. Talvez se devesse ver Deus mais como aquele que fala palavras animadoras e sustentadoras a um Universo em que ele está criando continuamente”. Sem o Bóson de Higgs, pontua o cientista, “não teríamos uma explicação de como as partículas maciças e, por conseguinte, a química e a vida vieram a existir. O Bóson de Higgs é essencial para que haja matéria no Universo pela qual ele pode ser tornar fértil com a química complexa”.

George Coyne é matemático com doutorado em astronomia. Foi diretor do Observatório do Vaticano por 25 anos. Em 2009, recebeu o prêmio Van Biesbroeck da Associação Americana de Astronomia por relevantes serviços prestados. Ele trabalha com o diálogo entre fé e ciência, na Universidade do Arizona, localizada na cidade de Tucson, Estados Unidos.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Em que medida a comprovação da existência do Bóson de Higgs modifica o conhecimento que temos acerca da origem do Universo?

George Coyne –
Embora a demonstração de sua existência não esteja completa, os cientistas do CERN estão muito próximos de estabelecer a existência do Bóson de Higgs. Em vez de “mudar” nosso conhecimento da origem do Universo, a existência do Bóson de Higgs seria uma confirmação sólida do Modelo Padrão , a teoria que determinou nosso conhecimento da física dos primórdios do Universo nos últimos 50 anos.


IHU On-Line – Que outras descobertas dessa magnitude são esperadas a partir das experiências conduzidas no acelerador LHC, do CERN?

George Coyne –
É muito difícil prever, mas eu não estabeleceria um limite para a destreza dos físicos que estudam as partículas elementares. Eles sempre conseguem descobrir novas partículas elementares que contribuem para nossa compreensão do Universo que observamos hoje, 13,7 bilhões de anos após o Big Bang.


IHU On-Line – O senhor afirma que o Universo é dinâmico. Como podemos compreender esse dinamismo?

George Coyne –
No Universo em expansão ao longo de bilhões de anos entidades cada vez mais complexas vieram a existir até que se desenvolveram moléculas cada vez mais complexas. Pela própria natureza da química, há cada vez mais direção nesse processo. À medida que a complexidade aumenta, a complexidade futura se torna cada vez mais predeterminada. É dessa maneira que o cérebro humano veio a existir e ainda está evoluindo. Chamo isso de processo dinâmico.


IHU On-Line – Em que aspectos a concepção do Universo dinâmico muda a forma como as pessoas compreendem Deus e sua criação?

George Coyne –
O que a ciência nos diz a respeito de Deus tem de ser muito diferente do Deus concebido pelos filósofos e teólogos da Idade Média. Para o crente religioso, a ciência moderna revela um Deus que fez um Universo que tem dentro de si um certo dinamismo e, assim, participa da criatividade do próprio Deus. Se respeitam os resultados da ciência moderna, os crentes religiosos têm de se afastar da noção de um Deus ditador, um Deus newtoniano que fez o Universo como um relógio que continua a tiquetaquear regularmente. Talvez se devesse ver Deus mais como aquele que fala palavras animadoras e sustentadoras a um Universo em que ele está criando continuamente.


IHU On-Line – Qual é a relação da descoberta do Bóson com a ideia de Universo fértil, ao qual o senhor se refere? O que é esse Universo fértil exatamente?

George Coyne –
O Universo tem 13,7 bilhões de anos de idade e contém cerca de 100 bilhões de galáxias, cada uma das quais contém, em média, 200 bilhões de estrelas de uma variedade imensa. À medida que essas estrelas vivem e morrem, elas fornecem as substâncias químicas necessárias para a evolução da vida. É isso que quero dizer com o termo “fertilidade do Universo”. Sem o Bóson de Higgs não teríamos uma explicação de como as partículas maciças e, por conseguinte, a química e a vida vieram a existir. O Bóson de Higgs é essencial para que haja matéria no Universo pela qual ele pode ser tornar fértil com a química complexa.


IHU On-Line – Qual é a relação entre acaso e necessidade na formação do Universo?

George Coyne –
Faço referência à dança do Universo fértil, que é um balé com três dançarias: o acaso, a necessidade e a fertilidade. Isso significa que o Universo é tão fértil na oferta de oportunidades para o sucesso de processos tanto do acaso como da necessidade que esse caráter (do Universo) precisa ser incluído na busca por nossas origens nele. Com o termo “necessidade”, designo a atuação das leis da natureza. Com o termo “acaso”, quero dizer que essas leis só funcionarão quando houver as condições certas para que funcionem.


IHU On-Line – Qual é a importância da transdisciplinaridade, do diálogo entre os saberes para o avanço da ciência, como no caso de uma teoria unificadora?

George Coyne –
A suposição é que existe uma base universal para nossa compreensão e, como essa base não pode ser autocontraditória, a compreensão que temos a partir de uma disciplina deveria complementar aquela que temos a partir de todas as outras disciplinas. Somos mais fiéis à nossa própria disciplina, sejam as ciências naturais, as ciências sociais, a filosofia, a literatura, o pensamento religioso, etc., se aceitamos esta base universal. Isso significa na prática que, ao mesmo tempo em que permanecemos fiéis aos critérios rigorosos da verdade de nossa própria disciplina, estamos abertos para aceitar o valor de verdade das conclusões de outras disciplinas. E esta aceitação não deve ser somente passiva, no sentido de não negarmos estas conclusões, mas também ativa, no sentido de integrarmos estas conclusões nas conclusões derivadas de nossa própria disciplina.


IHU On-Line – Como percebe essa necessidade de explicação e compreensão de todas as leis que regem o Universo? O que essa vontade de saber revela sobre a forma como os seres humanos compreendem a ciência?

George Coyne –
A busca da compreensão dos mistérios do Universo, incluindo a nós mesmos nele, é cada vez mais humana; ela nos estimula, provoca, questiona de formas que nos impelem a ir além da ciência na busca de satisfação, ao mesmo tempo em que os dados científicos fornecem os estímulos. Nesse contexto, a melhor ciência, para seu grande mérito, não faz de conta nem presume que tenha as respostas últimas. Ela simplesmente sugere e nos urge a seguir em frente, muito consciente de que nem tudo está dentro de seu horizonte. A liberdade para buscar a compreensão, e não o dogmatismo no que se compreende, caracteriza o melhor da busca científica das origens e do sentido do Universo e, especialmente, da vida no Universo. Este é, com efeito, um campo em que as certezas sempre se encontram no futuro; por isso, ele é vital, dinâmico e exige muito das pessoas que buscam descobrir seus segredos e suas implicações religiosas.


IHU On-Line – Poderia explicar a afirmação do Papa João Paulo II em carta escrita ao senhor, na qual dizia que hoje era preciso fazer uma teoria inspirada na imagem do mundo na ciência, assim como na Idade Média se fez uma teologia inspirada em Aristóteles?

George Coyne –
O Papa estava, sem dúvida, referindo-se à obra monumental de Tomás de Aquino , em que ele estabeleceu um rico fundamento filosófico para a teologia cristã integrando-a na filosofia de Aristóteles. Desde o início do papado de João Paulo II pode-se discernir uma nova concepção do relacionamento entre ciência e fé. Um aspecto desse relacionamento é o papel desempenhado pela ciência na busca do “sentido último”, que é uma expressão que se encontra muitas vezes na encíclica Fides et ratio .


Leia mais...

George Coyne
já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line:

* Teilhard e a teoria da evolução. Edição 143 da revista IHU On-Line, de 30-05-2005

* Fé e ciência: um diálogo em construção. Edição 304 da revista IHU On-Line, de 17-08-2009

* O ocaso de um Deus newtoniano. Edição 403 da revista IHU On-Line, de 24-09-2012


Confira outros materiais publicados sobre George Coyne no site do IHU:

* A substituição do astrônomo do Vaticano. “Darwinista demais?”. Publicada nas Notícias do Dia, em 26-08-2006

* Jesuíta afirma que caso existam, os extraterrestres também seriam filhos de Deus. Publicada nas Notícias do Dia, em 26-08-2006

* Universo fértil. Entrevista com George Coyne. Publicada nas Notícias do Dia, em 05-07-2009

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