Edição 404 | 05 Outubro 2012

Leitura bíblica a serviço da vida: libertadora e ecumênica

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Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães

“Isso porque nossa leitura bíblica quer ser uma leitura popular da Bíblia. Ou seja, uma leitura bíblica que ajude o movimento popular nas suas lutas, tanto nas suas vitórias e conquistas, quanto nas suas derrotas”, explica Francisco Orofino

“Sempre lembro esta frase de Jesus: ‘Eu vim para que todos tenham vida’ quando estou fazendo cursos populares. Existe certo medo de um diálogo ecumênico mais amplo e aberto”, lamenta Francisco Orofino. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Orofino lembra que Jesus diz que veio para que todos tenhamos vida. “Jesus não diz que veio para que todos tenhamos mais Bíblia, ou mais Igreja, ou mais catecismos... Isso significa que as igrejas cristãs, ao invés de ficarem disputando espaços na TV para seus programas particulares, ou disputando número de adeptos nos censos promovidos pelo IBGE, deveriam buscar caminhos comuns que tornassem a mensagem de Jesus Cristo mais presente na construção da sociedade brasileira.” E acrescenta: “O que adianta dizermos que somos um país cristão, já que praticamente 90% da população se define assim, se somos, ao mesmo tempo, uma sociedade desigual, concentradora de renda, violenta e consumista?” 

Francisco Orofino é biblista e educador popular. Assessora grupos populares e comunidades de base nos municípios da Baixada Fluminense. É autor de vários livros e leciona em Institutos de Teologia voltados para a formação de leigos. Fez doutorado em Teologia Bíblica na PUC-Rio (2000). É professor de Teologia Bíblica no Instituto Paulo VI, na diocese de Nova Iguaçu, RJ.

Ele participará do Congresso Continental de Teologia, no próximo dia 9 de outubro, das 14h30min às 16h30min, falando a partir do tema “Bíblia e hermenêutica”. Acesse a programação completa em http://bit.ly/NMoI2N. 

Confira a entrevista. 

IHU On-Line - Quais os principais passos para a reflexão sobre a hermenêutica bíblica?

Francisco Orofino - Creio que três passos são necessários: primeiro, é saber que a Bíblia é acolhida pelo povo como Palavra de Deus. Esta fé, que é anterior a qualquer método de interpretação, já existia na caminhada popular. Uma fé que foi, durante muito tempo, transmitida oralmente, já que o povo não tinha Bíblias e era, na sua grande maioria, analfabeto. Mas encontrou muitos meios de transmitir a fé e o conteúdo das histórias da Bíblia. Este ponto é importante. É mesmo fundamental em nossos trabalhos bíblicos. É partindo deste ponto que nossa leitura bíblica aqui no Brasil se torna impossível de transpor para qualquer país da Europa. Lá, infelizmente, a Bíblia se tornou um livro oficial e eclesiástico. 

Ver-Julgar-Agir

Em segundo lugar, nosso trabalho com Bíblia inseriu-se num projeto pastoral bem mais amplo, que partia do método Ver-Julgar-Agir. Um círculo bíblico nada mais é do que uma popularização deste método. Foi este método pastoral, desenvolvido a partir dos trabalhos da JEC e da JUC, que nos permitiu mudar a visão que tínhamos da revelação de Deus. O ponto de partida é a realidade, considerada aqui como a real situação do povo que se congrega nas comunidades. Em seguida, com o texto bíblico, busca-se julgar ou iluminar esta situação com a Palavra, a partir da espiritualidade profética. A Palavra serve para anunciar a presença de Deus ou denunciar a ausência de Deus nas realidades humanas, especificamente do grupo que está fazendo seu exercício hermenêutico. Assim, a fala ou revelação de Deus não vem propriamente da Bíblia, mas dos fatos e acontecimentos iluminados pela leitura bíblica.

Palavra de Deus na vida 

Em terceiro lugar, o povo avança e descobre que a Palavra de Deus não se encontra apenas na Bíblia, mas também, e principalmente, na vida. Não “vida” num sentido abstrato, mas nas situações concretas de qualquer ser vivo. A Bíblia apenas ajuda para descobrirmos que Deus nos fala através de qualquer fato ou acontecimento.

IHU On-Line - O que deve fazer parte do diálogo da teologia com as ciências sociais e naturais?

Francisco Orofino - Acredito que a contribuição das ciências sociais e naturais é muito importante no fazer teológico. Afinal, é a contribuição das ciências que nos permite analisar a realidade onde vivemos e que devemos evangelizar.

“Diálogo”

A questão aqui é a palavra “diálogo”. Deve haver abertura para dialogar de ambas as partes. Diálogo é uma atitude adulta onde você sabe no que contribuir e no que deve aprender. Os diversos métodos ditos “científicos” podem cair num racionalismo tão fundamentalista quanto a abordagem bíblica feita sem auxílio das ciências. Da mesma forma, acho uma perda de tempo quando assisto certos debates entre criacionismo e evolucionismo, onde se busca comparar um texto bíblico, elaborado a partir de uma mentalidade semita do século IX AEC com um texto científico, elaborado por um racionalista do século XIX EC.

IHU On-Line - Em que medida a tradução da proposta evangélica de “vida em abundância para todos” possibilita que as igrejas cristãs tenham mais voz e maior repercussão na sociedade?

Francisco Orofino - Sempre lembro esta frase de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida” quando estou fazendo cursos populares. Existe certo medo de um diálogo ecumênico mais amplo e aberto. Lembro que Jesus diz que veio para que todos tenhamos vida. Jesus não diz que veio para que todos tenhamos mais Bíblia, ou mais Igreja, ou mais catecismos... Isso significa que as igrejas cristãs, ao invés de ficarem disputando espaços na TV para seus programas particulares, ou disputando número de adeptos nos censos promovidos pelo IBGE, deveriam buscar caminhos comuns que tornassem a mensagem de Jesus Cristo mais presente na construção da sociedade brasileira. O que adianta dizermos que somos um país cristão, já que praticamente 90% da população se define assim, se somos, ao mesmo tempo, uma sociedade desigual, concentradora de renda, violenta e consumista?

IHU On-Line - Como o senhor define que deve ser uma leitura bíblica libertadora e ecumênica a serviço da vida? Como isso se aplica à realidade social, cultural e eclesial latino-americana?

Francisco Orofino - Falar de toda a realidade latino-americana é algo muito vasto. Mas o que vale para nós aqui no Brasil vale para qualquer país da América Latina. Penso que uma leitura bíblica que busca estar a serviço da vida, sempre será libertadora e ecumênica. Isso porque nossa leitura bíblica quer ser uma leitura popular da Bíblia. Ou seja, uma leitura bíblica que ajude o movimento popular nas suas lutas, tanto nas suas vitórias e conquistas, quanto nas suas derrotas. Por exemplo, aqui no Brasil, as comunidades, animadas pela leitura popular da Bíblia, conseguiram muitos avanços e conquistas na etapa constituinte entre 1986 e 1988. Muitas de nossas propostas se fizeram presentes no texto da Constituição. Mas a mobilização também teve derrotas, como a questão da reforma agrária. O mesmo vale para o plebiscito da Dívida ou a luta contra as privatizações tucanas. Muita mobilização para poucos resultados. A lei da Ficha Limpa foi uma grande vitória, mas o referendo do desarmamento foi uma derrota. Importa que a leitura bíblica anime as comunidades na sua caminhada, sabendo que na vida sempre vamos ter momentos de risos e momentos de choro. O que não podemos, como diz o apóstolo Paulo aos tessalonicenses, é “extinguir o Espírito”. 

IHU On-Line - A partir da leitura atenta da Bíblia, associada à conjuntura latino-americana, qual deveria ser a proposta evangélica e cristã no campo econômico, social e ambiental atual?

Francisco Orofino - A resposta evangélica e cristã diante do enorme desastre ecológico que se revela cada vez mais próximo, vinda de uma atenta leitura da Bíblia, não pode ser outra que não seja a aguda análise feita pelo profeta Oséias no século VIII AEC. No livro deste profeta (Os 4,1-4), ele denuncia o caos social originado pelas políticas econômicas e militares da dinastia reinante. Oséias constata que a violação dos mandamentos está gerando uma violência caótica na sociedade daquela época que se refletiria obrigatoriamente na criação de Deus. Oséias aponta para os crimes originados pela não observação dos mandamentos. Numa sociedade em que não haja mais fidelidade, nem amor, nem conhecimentos de Deus, triunfam perjúrio, mentira, assassinatos, roubos, adultério, violência e sangue derramado em grandes quantidades. Uma sociedade assim prostituída coloca em risco a criação de Deus. O colapso se manifesta no gemido dolorido da terra, na morte dos peixes, das aves e dos animais. Os seres humanos enfraquecem e morrem. Nossa geração deve buscar elementos para denunciar um desenvolvimentismo econômico irresponsável que está criando o caos social e ecológico. O projeto de Belo Monte que me confirme!

IHU On-Line – Como biblista, que avaliação o senhor faz do Concílio Vaticano II, passados 50 anos, para a Igreja? 

Francisco Orofino - Como biblista, gostaria de testemunhar que os avanços trazidos pelo Concílio para os estudos bíblicos são irreversíveis. Nestes 50 anos, a Bíblia se tornou um livro de uso pessoal dos fiéis. Isso nunca tinha acontecido antes na história da Igreja Católica. Agora, a Bíblia não pertence mais ao clero porque os fieis leigos têm a possibilidade de ler a fonte primeira da revelação de Deus, como ensina a Dei Verbum! Ou seja, a Bíblia deixou de ser o livro do clero. Com isso, o clero perdeu o monopólio da reflexão teológica. Por isso, eu acredito que a próxima etapa da Teologia da Libertação será feita por leigos, dando respostas mais localizadas para suas comunidades, em suas lutas e desafios. A Bíblia foi conquistada pelos leigos. Não adianta agora querer que um catecismo venha substituir a Bíblia. Entre uma reflexão teológica doutrinária a partir do catecismo e uma reflexão teológica vivencial a partir da Palavra, as comunidades ficarão com a segunda.

Leia mais... 

>> Francisco Orofino já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira: 

Jesus: um apaixonado por Deus e pelas pessoas. Entrevista publicada na Revista IHU On-Line, edição 336, de 06-07-2010, disponível em http://migre.me/aU5ly; 

Uma leitura bíblica libertadora e ecumênica a serviço da vida. Entrevista publicada na Revista IHU On-Line, edição 296, de 08-06-2009, disponível em http://migre.me/aU5ri. 

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