Edição 404 | 05 Outubro 2012

Vaticano II: luta hermenêutica entre a identidade e a novidade

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Graziela Wolfart e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Anete Amorim Pezzini

Segundo o teólogo espanhol Victor Codina, é preciso elaborar na América Latina uma pneumatologia a partir dos pobres que possa ser uma fonte de esperança para a Igreja e o mundo: “outro mundo é possível, outra Igreja é possível”, afirma

Ao destacar os principais desafios que o mundo apresenta hoje à Igreja, o teólogo espanhol Victor Codina faz uma retrospectiva histórica dos últimos 50 anos, desde a convocação do Concílio Vaticano II, e descreve um panorama contundente do cenário contemporâneo. E ele questiona: “A Igreja será capaz de dizer uma palavra a este novo mundo de hoje?” Na entrevista que aceitou conceder por e-mail à IHU On-Line, ele considera que talvez tenha chegado a hora de pensar em um novo concílio, “que não seja somente um sínodo geral da Igreja Romana, mas algo verdadeiramente ecumênico, universal, de todos os batizados, de que participem não somente bispos, mas também leigos e mulheres, jovens e simpatizantes de outras religiões. Isso não é possível? É um sonho utópico? É um ideal para o qual devemos tender, pensando em uma Jerusalém II? A inspiração de João XXIII não se esgotou”.

Víctor Codina, jesuíta, licenciado em Filosofia e Letras pela Universidade de Barcelona, em Teologia pela Universidade de Innsbruck, e doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Desde 1982 reside na Bolívia, onde alternou a tarefa de professor de Teologia na Universidade Católica Boliviana de Cochabamba com o trabalho de formação de leigos e na pastoral popular. Entre suas últimas publicações, destacamos: Para comprender la eclesiología desde América Latina (Estella: Navarra, 2008), No extingáis el Espíritu (Santander: Sal Terrae, 2008), Una iglesia nazarena (Santander: Sal Terrae, 2010) e Diario de un teólogo de postconcilio (Bogotá: Paulinas, no prelo). Dentre seus livros publicados em portugués, citamos O credo dos pobres (São Paulo: Paulinas, 1997). Ele estará na Unisinos participando do Congresso Continental de Teologia, com a conferência “As Igrejas no Continente 50 anos depois do Vaticano II: questões pendentes”. Saiba mais em http://bit.ly/q7kwpT.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Concílio Vaticano II foi um novo pentecostes? Como o senhor analisa a importância do Concílio para a Igreja?

Victor Codina – João XXIII mandou rezar para que o Vaticano II fosse um novo pentecostes. E, de fato, assim sucedeu: o ar fresco do Espírito rejuvenesceu e renovou a Igreja por dentro. Há um antes e um depois do Vaticano II, que produziu uma verdadeira mudança:

– de uma Igreja tipicamente de cristianismo, centrada no poder e na hierarquia, verdadeira pirâmide hierárquica, passando para uma Igreja do Povo de Deus, de pessoas batizadas (LG II), a qual caminha junto com toda a humanidade na história e está aberta aos desafios dos novos sinais dos tempos (GS 4, 11, 44);

– de uma Igreja centrada em si própria (eclesiocentrismo) para uma Igreja orientada para o Reino de Deus, do qual ela é o sacramento e a semente (LG 1,5); 

– de uma Igreja sociedade perfeita “tão histórica e visível como a República de Veneza ou o reino dos Francos” (Bellarmino ) para uma Igreja mistério da salvação, enraizada na Trindade (LG I), uma multidão congregada pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo (LG 4);

– de uma Igreja vista como a prolongação da encarnação de Jesus, e com risco de cair no cristomonismo de que os orientais nos acusam, para uma Igreja que brota tanto de Cristo como do Espírito que unge os fiéis com o dom da fé e reparte uma pluralidade de carismas (LG 12);

– de uma Igreja centralizada e uniforme para uma Igreja de Igrejas, comunhão da pluralidade de Igrejas locais corresponsáveis, nas quais e pelas quais existe a Igreja Universal (LG 23);

– de uma Igreja triunfante, dominadora, gloriosa, que parece ter chegado à plenitude da escatologia, para uma Igreja pobre e que abraça os pecadores em seu seio (LG 8), para uma Igreja peregrina para o Reino, que se preenche do pó do caminho (LG VII);

– de uma Igreja que afirmava que fora dela não havia salvação para uma Igreja que acredita que o Espírito oferece a todos a possibilidade de salvação em Cristo, por caminhos somente conhecidos por Deus (GS 22), pois a Divina Providência não nega sua graça às pessoas de coração reto as quais não por sua própria culpa chegaram a conhecer a Deus (LG 16);

– de uma Igreja acostumada ao anátema e à excomunhão para uma Igreja que prefere usar o diálogo, o perdão e a misericórdia;

– de uma Igreja que não respeita a liberdade religiosa, porque acredita que o erro não tem direitos, para uma Igreja que reconhece e respeita a liberdade de cada um de buscar e professar sua fé segundo sua consciência (DH).

A lista poderia prolongar-se ainda mais. Digamos, para resumir, que o Vaticano II opera um movimento triplo: volta às fontes da fé e da autêntica Tradição (o ressourcement, típico dos teólogos precursores do concílio), abertura para nosso tempo (aggionamento, palavra tipicamente roncalliana) e desenvolvimento da doutrina (na linha do development of doctrine de Newman ). Foram anos de primavera conciliar.

IHU On-Line – Analisando o caminhar da Igreja depois do Concílio, pode-se falar de diferentes tendências quanto à sua recepção?

Victor Codina – Já nos documentos do Vaticano II, como observou L. Acerbi, coexistem duas eclesiologias: uma eclesiologia de comunhão, que é a dominante, mas também outra, mais jurídica. Isso se deve a Paulo VI, que queria que os documentos fossem aprovados por uma grande maioria, e para a qual teve de admitir numerosas emendas que respondiam aos setores mais conservadores, herdeiros da eclesiologia da cristandade. Mas, apesar disso, houve uma minoria muito crítica perante o Concílio, cujo representante mais radical foi o arcebispo Marcel Lefèbvre , que afirmava que o Concílio era modernista e protestante. Também, na aplicação do Vaticano II, houve alguns excessos (na liturgia, na moral, no ecumenismo, na missiologia, na pastoral), o que provocou uma reação contrária que culpava o Vaticano de todos os males da Igreja pós-Conciliar: abandono do ministério e da vida religiosa, diminuição da prática sacramental e das vocações, etc. Em 1985, João Paulo II convocou um Sínodo sobre o Vaticano que, embora reafirmasse suas linhas de fundo, promoveu uma corrente que destacava mais a continuidade da tradição anterior do que a novidade, chegando alguns inclusive a questionar-se, no Vaticano II, se havia sucedido algo novo. Viveu-se um verdadeiro conflito de interpretações, uma guerra hermenêutica entre a identidade e a novidade, esquecendo-se de que não há identidade sem progresso, nem um progresso autêntico que rompa com a verdadeira tradição da Igreja. O problema é que muitos identificaram a grande Tradição eclesial com a tradição do século IV, de Trento  ou do século XIX. João XXIII foi um homem profundamente tradicional, mas de uma tradição que voltava às fontes e, por isso mesmo, podia avançar e dar um salto para frente. Como consequência de tudo isso, foi-se gerando na liderança da Igreja uma verdadeira involução conciliar, que se manifesta de múltiplas formas (possibilidade de um retorno à liturgia em latim, nomeações de bispos seguros e conservadores, centralização romana e enfraquecimento das conferências episcopais, confrontos com os setores críticos da Igreja, freio aos leigos…). Passou-se da primavera eclesial ao que K. Rahner chamou de “inverno eclesial”. Como afirma o grande historiador do Vaticano II, G. Alberigo , parecia que a minoria conciliar que, no concílio, havia ficado de alguma maneira marginalizada era a que levantava agora as bandeiras da tradição antimodernista, antiliberal, antiprotestante e anticomunista.

IHU On-Line – Quais são os aspectos mais relevantes da recepção do Concílio na América Latina?

Victor Codina – O Vaticano II foi conduzido pelos bispos e teólogos da Europa Ocidental, que dialogaram com o homem moderno, desenvolvido, culto e secular. Embora João XXIII houvesse desejado que o rosto da Igreja conciliar fosse o da Igreja dos pobres, isso não se refletiu nos documentos conciliares, exceto por alguma referência em Lumen Gentium , 8 e Gaudim et Spes , 1. Os bispos da América Latina constituíam a chamada “maioria silenciosa”, apesar de alguns pronunciamentos proféticos de Hélder Câmara, Larraín , e de um grupo de bispos do Terceiro Mundo que convidavam a Igreja a voltar-se aos pobres e à pobreza evangélica. Foi em Medellín (1968) e em Puebla (1979) onde a Igreja da América Latina realizou uma recepção criativa e inspiradora do Vaticano II, relendo o concílio a partir da situação de pobreza e de injustiça do continente. Aplicou a doutrina conciliar dos sinais dos tempos, e escutou no clamor do povo pobre um verdadeiro sinal dos tempos, a presença do Espírito que pedia justiça e direito. Nesse clima, surge a opção pelos pobres, as CEBs, a leitura popular da Bíblia, os bispos defensores dos pobres, verdadeiros Santos Padres da Igreja dos pobres (Romero, Angelleli, Gerardi, Proaño, Méndez Arceo , Hélder Câmara, Mendes de Almeida , Samuel Ruiz , Silva Henríquez…), agentes pastorais comprometidos com o povo, com a vida religiosa inserida nos meios populares e o martírio. A Teologia da Libertação que nasce nesse contexto acompanhou todo esse processo, iluminando-o com os valores evangélicos e a verdadeira Tradição eclesial.

Novos atores

Em um segundo momento, até os anos 1990, embora a problemática da pobreza e da injustiça não tenha desaparecido mas aumentado, surgiram novos cenários e novos atores, novos sujeitos emergentes: jovens, mulheres, indígenas e afro-americanos, as culturas, as religiões, a terra e seu clamor ecológico. As conferências de Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), ao mesmo tempo em que reafirmam as opções de Medellín e Puebla pelos pobres, abriram-se a essa nova problemática: diálogo intercultural e inter-religioso, nova evangelização, estado de missão, missão permanente, etc. Também a Teologia da Libertação abriu-se para essas novas temáticas e para esses novos sujeitos emergentes: teologia índia e afro-americana, ecológica, feminina, intercultural e inter-religiosa, etc. 

IHU On-Line – Depois de cinquenta anos da inauguração do Concílio, quais são os principais desafios que o mundo apresenta hoje à Igreja?

Victor Codina – Nesses cinquenta anos houve profundas mudanças em todo o mundo, caíram tanto o muro de Berlim como as Torres Gêmeas, surgiram a globalização, as novas tecnologias, consolidou-se o mercado neoliberal, agravou-se a crise do meio ambiente, aumentaram os fluxos migratórios, massificou-se o mundo urbano. Estamos ante uma mudança cultural e religiosa sem precedentes, um verdadeiro tsunami invade o planeta. A problemática do Vaticano II foi insuficiente e, de algum modo, superada. O problema não é hoje tanto a Igreja, mas Deus, a secularização, o diálogo inter-religioso e, além disso, a exclusão de grandes setores da riqueza da terra e da sociedade do conhecimento, a discriminação da mulher na sociedade e na igreja patriarcal de hoje, a indignação dos jovens perante a sociedade violenta e desumana que receberam das gerações passadas, a ameaça ecológica e a crise econômica, etc. A Igreja será capaz de dizer uma palavra a este novo mundo?

Mas tudo isso também afeta a estrutura da Igreja institucional. Há temas que o Vaticano II não conseguiu abordar (eleição de bispos, estado vaticano e estrutura do primado petrino, núncios, celibato sacerdotal…), outros que ficaram pela metade do caminho por falta de mediações institucionais, outros que surgiram novamente: diálogo com o mundo da biologia e da sexualidade, feminismo, ecologia, pluralismo religioso, movimentos pentecostais, transmissão da fé às novas gerações, etc. Não se pode falar de nova evangelização sem questionar o modelo atual de estrutura eclesiástica no que tem de retrógrado e deforme.

A tudo isso se soma a crescente falta de credibilidade eclesial, os escândalos sexuais, as misteriosas intrigas da cúria vaticana, a diminuição de vocações, a baixa frequência sacramental em muitos setores, o abandono silencioso da Igreja por parte de milhões de fiéis, o aumento da indiferença e o agnosticismo religioso que, acrescido ao anterior, produz uma sensação de grande perplexidade e de crise eclesiástica. A barca de Pedro sacode-se de um lado para outro no meio do mar; alguns comparam essa situação com a que precedeu a Reforma no século XVI, outros aos anos anteriores ao Vaticano II.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta o momento presente da Igreja no cenário latino-americano?

Victor Codina – A situação da América Latina é diferente daquela da Europa Ocidental. Trata-se de um continente muito religioso, com uma forte religiosidade popular marcada por grandes valores. Mas é um continente de batizados que não terminou o catecumenato (E. Dussel), que forma parte integrante do batismo (como afirmava o teólogo Ratzinger). Não é por acaso que o lema de Aparecida seja o de formar discípulos e missionários de Jesus Cristo. Por isso, em Aparecida 12, afirma-se que uma fé católica reduzida a uma lista de normas e proibições, a práticas devocionais fragmentadas, a adesões parciais e seletivas às verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos e à mera repetição de princípios doutrinais e morais não poderá resistir ao teste do tempo. Daí surge a preocupação de colocar o continente em estado de missão, em uma conversão pastoral: uma pastoral não clerical nem centrada no templo, mas leiga e centrada na casa do povo, orientada perante tudo à evangelização e à proclamação da Palavra mais do que uma sacramentalização meramente ritualista e sem impacto; que promova uma iniciação à experiência espiritual em contato com Jesus de Nazaré; que forme comunidades vivas, comprometidas com sua história, em diálogo com as culturas modernas e nativas; que priorize os pobres e solidarize-se com eles em suas lutas por justiça; que não sinta saudades dos apoios sociológicos e estatais da Igreja da cristandade; que se vá configurando como uma Igreja nazarena, pobre, simples, solidária, pascal.

IHU On-Line – Levando em conta os desafios atuais da Igreja, sobretudo os implicados na chamada segunda modernidade, como o senhor analisa a atualidade do Vaticano II? Precisa ser retomado ou há necessidade de um novo concílio?

Victor Codina – A chamada segunda modernidade, modernidade tardia, pós-modernidade ou terceira ilustração supõe assumir dimensões muito esquecidas: pessoa, liberdade, consciência, corpo, sexualidade, prazer, relação ambiental, abertura aos diferentes e diversos, pluralismo, gratuidade, festa, cotidianidade, pequenos relatos, etc. Evidentemente, isso pode levar ao narcisismo, hedonismo, ao irracionalismo, ao relativismo, ao consumismo, à superficialidade, ao esquecimento dos demais e, em especial, dos pobres, etc., mas esses valores da pós-modernidade podem e devem ser assumidos em seus aspectos positivos pela Igreja. Mas, para isso, o Vaticano II, longe de ser um estorvo, é um ponto de partida irrenunciável: não se pode avançar contra ou à margem do Concílio, mas deve-se ir além dele. Evidentemente há motivos suficientes para um novo concílio como alguns cardeais manifestaram (Martini , Lehman …), mas com os bispos nomeados nas últimas décadas não tem, humanamente falando, muitas garantias de uma mudança no futuro. Por outro lado, talvez, chegou a hora de pensar em um concílio que não seja somente um sínodo geral da Igreja Romana, mas algo verdadeiramente ecumênico, universal, de todos os batizados, de que participem não somente bispos, mas também leigos e mulheres, jovens e simpatizantes de outras religiões. Isso não é possível? É um sonho utópico? É um ideal para o qual devemos tender, pensando em uma Jerusalém II? A inspiração de João XXIII não se esgotou.

IHU On-Line – Gostaria de destacar mais algum aspecto, além do que foi perguntado?

Victor Codina – Gostaria finalmente de assinalar que a eclesiologia não pode converter-se no centro de nossa preocupação cristã, já que somente Jesus Cristo é o princípio e o fundamento de nossa fé. Mas, no momento atual, acredito que tanto a cristologia como a eclesiologia devem ser profundamente pneumatológicas, inspiradas pela força e pelo calor de um Espírito que não se limite ao dom pascoal do Ressuscitado à sua Igreja, mas que é o Espírito que precede e transborda a Igreja, descendo sobre toda a humanidade; o Espírito da criação, dos profetas de Israel, da encarnação e da ressurreição de Jesus; o Espírito da vida presente em todas as tradições religiosas da humanidade, o que se move a partir de dentro todos os movimentos sociais, culturais, políticos ecológicos e que tudo encaminha para o Reino. Esse Espírito do Senhor é o que não abandona hoje sua Igreja, mas que a impulsiona a levar adiante a inspiração de João XXIII e do Vaticano II. Na América Latina, tem-se que elaborar uma pneumatologia a partir dos pobres, que possa ser uma fonte de esperança para a Igreja e o mundo: outro mundo é possível, outra Igreja é possível. 

Leia mais...

>> Victor Codina já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira: 

“Temos de crer e esperar que outro mundo e que outra Igreja são possíveis”. Entrevista publicada na edição número 222, de 04-06-2007, disponível em http://bit.ly/P9iyWI 

Vocação religiosa: mais mística e mais profética. Entrevista publicada na edição número 299, de 06-07-2009, disponível em http://bit.ly/OXl1ci

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