Edição 403 | 24 Setembro 2012

O silêncio de Deus e o seu sofrimento junto dos inocentes

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Márcia Junges e Luís Carlos Dalla Rosa

A Igreja deve “fermentar a cultura e a sociedade”, observa Getúlio Antônio Bertelli. Ela é o sal e o fermento que faz com que a sociedade cresça e não se decomponha

A pergunta pelo silêncio de Deus durante o Holocausto, Guantânamo, Sibéria e outros locais onde a humanidade padeceu (e padece) da vilania humana é uma das grandes questões endereçadas à transcendência. “Ela busca responder com o sofrimento de Deus, que não estava ausente, nem silente, nem impassível, mas sofrendo junto das vítimas inocentes”, esclarece Getúlio Antônio Bertelli, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele fala, também, sobre a influência da ortodoxia oriental sobre as ideias de Thomas Merton, que “redescobriu esse tesouro”. Bertelli menciona que esse pensamento “nos apresenta um tesouro inestimável de fé, que nos é desconhecido, mas que pertence à Igreja indivisa. É aquela Igreja anterior à trágica divisão entre Oriente e Ocidente em 1010”. E frisa: “A Igreja vive no mundo, mas o mundo também vive dentro da Igreja”.

Getúlio Antônio Bertelli é graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia – EST, e em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – UPF. Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio cursou mestrado e doutorado em Teologia com a tese Mística e compaixão: A teologia do seguimento de Jesus em Thomas Merton (São Paulo: Paulinas, 2008). Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP obteve o pós-doutorado. Atualmente leciona na Universidade Estadual do Paraná – campus FAFIPAR, em Paranaguá, no Paraná.

Em 02-10-2012 Bertelli apresenta o minicurso O mistério da Igreja e o silêncio de Deus. Uma reflexão a partir de Thomas Merton, a partir das 14h30min, dentro da programação do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica. A programação completa pode ser conferida em http://bit.ly/rx2xsL.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual é a relação entre o Mistério da Igreja e o silêncio de Deus?

Getúlio Antônio Bertelli –
A questão do silêncio de Deus é levantada pelo oceano de sofrimento humano. É uma pergunta feita de zombaria, revolta e indignação: onde estava Deus durante o Holocausto, quando milhões de seres humanos foram eliminados nos campos de concentração? Em Hiroshima e Nagasaki? Na Sibéria? No Iraque? Em Guantânamo? São perguntas que interpelam o Mistério da Igreja. Ela busca responder com o sofrimento de Deus, que não estava ausente, nem silente, nem impassível, mas sofrendo junto das vítimas inocentes. No Desfigurado, o Servo Sofredor, Deus mesmo aceita ser crucificado, negado, morto. Para Evdokimov, o ponto alto da liberdade humana é a capacidade de negar a Deus pelo ateísmo. E Deus, na imensidão sem limites de sua compaixão, Se deixa negar, rejeitar, crucificar. No Desfigurado e Transfigurado, Ele se põe a nosso favor, em seu “louco amor por nós” (manikós eros, em grego), que o faz descer até à raiz da vergonha. O teólogo Paul Evdokimov  afirma que a filosofia não tem resposta ao problema do mal no mundo. Ao passo que a fé não vê o mal como um problema, mas sim como um inimigo a ser combatido na Oração do Senhor: “Livra-nos do Maligno” .


IHU On-Line – Como se dá a influência da ortodoxia oriental na eclesiologia de Merton ?

Getúlio Antônio Bertelli –
Há uma obra chamada Merton and Hesychasm, que aponta para a grande influência dos teólogos ortodoxos orientais em Merton. Nela existe um longo capítulo, escrito pelo arcebispo anglicano Rowan Williams , que se intitula: “Thomas Merton and Paul Evdokimov” . Lendo os Diários de Merton datados de 1957 a 1961, vemos que ele faz longas citações desses teólogos . Percebemos, sobretudo, a influência dos teólogos ortodoxos russos orientais exilados em Paris, que fundaram o famoso Instituto Ortodoxo de Teologia São Sérgio. Estes exilados tiraram a ortodoxia de seu isolamento e a tornaram conhecida no mundo inteiro. O pensamento ortodoxo oriental nos apresenta um tesouro inestimável de fé, que nos é desconhecido, mas que pertence à Igreja indivisa. É aquela Igreja anterior à trágica divisão entre Oriente e Ocidente em 1054. Merton redescobriu esse tesouro, e foi para ele um voltar às fontes da fé bíblica, apostólica, patrística . Em mais de 150 CDs ele transmite seu pensamento sobre os Santos Padres da Igreja do Oriente, antigos e atuais. Para mencionar apenas um CD, “Beauty is from God” (“A beleza vem de Deus”), tema tão caro na liturgia, iconografia e espiritualidade da ortodoxia oriental.


IHU On-Line – Quem são suas grandes referências nesse aspecto?

Getúlio Antônio Bertelli –
A maior delas é o já citado Paul Evdokimov (MH 123), que foi observador ortodoxo no Concílio Vaticano II. Ele escreveu uma teologia da beleza . Para ele existe uma tríplice beleza: a primeira é a paradisíaca, genesíaca ou sofiânica (a beleza de Adão antes da Queda). A segunda é a beleza do Desfigurado, daquele que não tem beleza conforme os padrões da mídia, glamour. É a beleza da entrega em favor da humanidade; a terceira forma de beleza é a do Transfigurado, que é também o Desfigurado. É a beleza do Emanuel, Deus em nós; e a beleza de Pentecostes: nós em Deus. Essa terceira beleza é representada pelos ícones (de que falaremos mais adiante). Além de Evdokimov, temos que citar também Olivier Clément (MH 122), que foi seu discípulo, intérprete e divulgador. Merton o cita desde os começos da atividade literária. Um homem amado por católicos, ortodoxos e protestantes, que investiu sua vida inteira na causa da unidade cristã, através da volta às fontes patrísticas. Morreu em 2009. Merton também cita outros renomados teólogos ortodoxos russos, do passado e do presente: Nicolas Cabasillas (século XIV), que escreveu La vie en Jesus Christ, obra que influenciou imensamente gerações de ortodoxos; Gregório Palamas, que fala muito na luz taborina (luz do Tabor, a da transfiguração), que todos podemos experimentar pela fé; Vladimir Lossky (1903-1958), para quem a Igreja é o centro do universo; não por último, Nicolau Berdiaev (1874-1948), filósofo da religião; V. Soloviev (1853-1900); S. Bulgakov (1871-1944).


IHU On-Line – De que forma o legado de Merton influenciou Ernesto Cardenal  e como isso se concretizou na Nicarágua?

Getúlio Antônio Bertelli –
Se, por um lado, Merton foi influenciado pelos teólogos ortodoxos orientais, como dissemos acima, ele também influenciou outras pessoas. Talvez o maior de todos seja Ernesto Cardenal. Este foi seu noviço durante dois anos na Abadia de Nossa Senhora de Gethsemani em Kentucky, EUA (de 1957-1959). A influência de Merton em sua vida foi indelével. Foi um mestre na escola da oração e do trabalho, da natureza e da arte, e também da profecia. Ensinou esta lição: “Não sejam contemplativos sem se envolver profundamente na vida e nos destinos do povo e da nação”. Cardenal aprendeu e aplicou esta lição na Nicarágua: Primeiro, na Ilha de Solentiname, onde fundou uma comunidade contemplativa marginal, contracultural e alternativa, de inspiração mertoniana. Depois, como Ministro da Cultura do governo sandinista, estendeu ao país inteiro a experiência de laboratório que tinha feito com o povo em Solentiname. Concretamente, implantou oficinas de poesia, transformando toda uma nação em povo de poetas e artistas (pintores, escultores, tecelões, atores, músicos); erradicou o analfabetismo; criou escolas de dança, balé, escultura, pintura; resgatou a antiga arte indígena, sua culinária e cerâmica. Um ônibus ambulante distribuía gratuitamente livros para serem lidos nas praças públicas, nas fábricas e presídios. Não por último, devemos realçar que a pintura de Solentiname, famosa até agora, foi influenciada por temas da Teologia da Libertação .


IHU On-Line – Em que medida essas experiências de Merton e Cardenal oferecem uma interlocução entre a Igreja, a cultura e a sociedade?

Getúlio Antônio Bertelli –
A resposta anterior já antecipa um pouco a pergunta atual. A Igreja tem a função de fermentar a cultura e a sociedade: ser o sal que impede de se decompor, e o fermento que a faça crescer. A meta será chegar ao estado de comunhão entre todos os seres humanos, para além das divisões. A Igreja vive no mundo, mas o mundo também vive dentro da Igreja. Quando ela se dirige aos homens de boa vontade, como fez o Concílio Vaticano, é para chamar os governantes e toda a sociedade a se responsabilizar pelos mais necessitados, os famintos, as vítimas da guerra, das mudanças climáticas. Isso ela sempre fez, desde os primórdios. A nossa Igreja no Brasil, através da CNBB, desempenha diariamente este múnus profético, seja no anonimato ou na visibilidade da mídia, mostrando a ternura de Deus para tantas pessoas que necessitam. Mais do que uma interlocução, é uma interpelação. Agora mesmo os bispos do Maranhão lançaram uma carta pastoral a respeito das eleições, alertando para que não se vendam os votos aos políticos interesseiros. Fazem isso lembrando explicitamente os profetas de Israel. E mostrando quem são os verdadeiros candidatos: aqueles que fazem alguma coisa em favor dos pobres.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Getúlio Antônio Bertelli –
Ainda a obra Merton and Hesychasm traz um capítulo de Jim Forest intitulado “Thomas Merton and the silence of icons” (MH 225-233). Apresenta Merton como um dos precursores na valorização da arte do ícone, que hoje se espalha pelo mundo inteiro. É uma herança da teologia ortodoxa oriental. Evdokimov no citado livro sobre a teologia da beleza  diz que essa é um dos nomes de Deus, o grande Compositor e Intérprete da sinfonia da criação. Apresentado assim, Deus não é terrorista, punidor ou castrador, como caricaturado pelo ateísmo de massa. O ícone expressa em cores o que a música expressa em sons, e a Palavra em escrita. É uma teologia da presença divina. Os mais importantes são: o ícone da Natividade, chamado em grego enanthropesis (a humanidade de Deus, o tornar-se anthropos, ser humano); o ícone da Transfiguração; não por último, o ícone da Trindade, de Rublev, sem dúvida o mais famoso do mundo. É cheio de simbolismos: as três pessoas divinas em forma de jovens anjos, cada uma com báculo. A maneira como se dispõem sugere um cálice, no meio o Cristo. Aos ombros algo que sugere uma estola, não como símbolo de poder, mas trata-se da ovelha perdida, que ele carrega nos ombros. Enfim, todo um significado das cores, colocadas a serviço da arte. Um espelho no qual a Igreja inteira pode se refletir no ser e no agir para dentro e para fora do mundo.


Leia mais...

Getúlio Bertelli já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

• Thomas Merton e Ernesto Cardenal: dois precursores da espiritualidade da libertação latino-americana. Entrevista publicada na edição número 285 da IHU On-Line, de 08-12-2008

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