Edição 403 | 24 Setembro 2012

O cinema como lugar de possibilidade de expressão do Mistério

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Márcia Junges e Luís Carlos Dalla Rosa

Para Massimo Pampaloni, a sétima arte pode ser terreno de representação do Mistério se aquele que faz cinema “é alguém que busca o Mistério”. Contudo, pondera, hoje a linguagem cinematográfica revela “o que é atualmente a dimensão religiosa: um deserto total”

 

Local onde atualmente se exprimem “os mitos modernos”, “o cinema torna-se lugar de expressão do Mistério se quem faz cinema deixa, em sua vida, aberta a porta ao Mistério. Esta constatação pode parecer óbvia, mas não é”, analisa o teólogo italiano Massimo Pampaloni na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. E afirma: “A pobreza de indícios do Mistério que, em minha opinião, afeta o cinema contemporâneo é o resultado da luta ferrenha contra o próprio Mistério que se desenrola desde há um par de séculos por parte de agentes aparentemente disparatados, mas com o mesmíssimo objetivo: a destruição da herança judaico-cristã em nosso mundo ocidental e a consequente transformação do Mistério, que desafia a história fazendo-se ele mesmo história, num inócuo esteticismo sincrético, genérico e aguado, bom para todos os paladares”. E acrescenta: “o cinema pode ser lugar de expressão do Mistério só se quem faz cinema é alguém que busca o Mistério, honestamente e cheio de desejo, se o Mistério o inquieta, se arde dentro dele sem deixá-lo em paz”. Essa temática estará em debate em 04-10-2010, quando Pampaloni conduz o minicurso Semânticas do Mistério no cinema, dentro da programação do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica. A programação completa pode ser conferida em http://bit.ly/rx2xsL.

Depois de estudar Teologia no Brasil, no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, Massimo Pampaloni cursou mestrado e doutorado em Ciências Eclesiásticas Orientais no Pontifício Instituto Oriental de Roma, onde atua como docente. Atualmente, também é professor de História da Igreja Antiga e Teologia Patrística na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, em Belo Horizonte.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que relações o senhor estabelece entre teologia e cinema? Qual a sua perspectiva de análise?

Massimo Pampaloni – Comecemos com a segunda parte da pergunta. Minha perspectiva de análise é dupla: é essencialmente a de um teólogo que se interroga seja sobre as modalidades de sua comunicação da fé e, ao mesmo tempo, se põe questões sobre os “lugares humanos”, onde reverbera a presença de Deus. Minha pesquisa neste campo parte de algumas premissas que é bom explicitar logo. Fui aluno do comunicólogo, meu coirmão Pe. Nazareno Taddei SJ  (1920-2006), um dos primeiros que compreendeu a importância das modificações antropológicas e cognitivas das novas modalidades de comunicação. Seus ensinamentos me levaram a prestar muita atenção à linguagem cinematográfica. O filme, para nós (quando digo “nós” me uno idealmente à escola de Taddei), é uma obra de comunicação. O diretor quis comunicar uma ideia através da linguagem das imagens. O espectador faz o processo inverso: a leitura das imagens leva-o à ideia que o diretor queria comunicar.

Isso comporta, obviamente, uma tomada de posição hermenêutica bem precisa que sei não ser partilhada por todos hoje (embora, em minha opinião, não por sua fraqueza intrínseca, mas por causa das hermenêuticas débeis hoje em circulação). Tal posição crê que existe uma intencionalidade do texto (escrito ou fílmico, dá no mesmo) e que seja possível compreender tal intencionalidade. Em outras palavras, o filme tem uma ideia própria que deve ser compreendida. Toda palavra despendida sobre um filme que não foi compreendido é só um aumento da entropia das futilidades. O filme, para nós, não é o equivalente a uma mancha de tinta do teste de Rorschach, uma espécie de pretexto projetivo para o exercício de um “achismo” mais ou menos erudito: é uma forma verdadeira e própria de comunicação. De contrário se estaria reduzindo o filme ao equivalente a sons inarticulados sem sentido.

Esta premissa me ajuda a expressar porque e como, enquanto teólogo, me interesso por cinema. Justamente por ser hoje uma das formas de comunicação mais poderosas não posso negligenciá-lo de modo algum. Vêm-me à mente as palavras de João Paulo II pouco depois de sua eleição: “Antigamente, os nossos santuários enchiam-se de mosaicos, pinturas e esculturas religiosas, para ensinar a fé. Teremos nós bastante vigor espiritual e gênio, para criar ‘imagens móveis’ e de grande qualidade, bem adaptadas à cultura de hoje? Disso dependem não só o primeiro anúncio da fé num mundo frequentemente muito secularizado ou a catequese para se aprofundar essa fé, mas também a inculturação da mensagem evangélica ao nível de cada povo, de cada tradição cultural” . Mas não só reputo interessante o cinema por sua potencialidade comunicativa. Ele é também um dos lugares onde hoje se exprimem os mitos modernos. Com o termo “mito” entendo, com Ricoeur , o relato que articula os símbolos fundamentais para dizer o que, de outra forma, seria indizível. É também por meio dos símbolos que o homem, de per si, se orienta a Deus: seja por meio do cosmos e da natureza, seja por meio do caminho do homem. Há quase cinquenta anos, mas ainda com perfeita atualidade, Jean Daniélou  escrevia: “Não surpreende constatar que, se se quer buscar hoje os mitos do homem contemporâneo, se deveria buscá-los na forma mais válida do cinema. Os filmes de um Bergman , os filmes de um Buñuel  retornam ao mito, sob a forma do embate do homem com situações-limite” .

Teologia mediada

Mas, para responder plenamente à pergunta, devo explicitar também o que se deva entender por teologia. Porque, se a teologia é – para dizer com Bernard Lonergan  – “uma poça de água estagnada com informações”, ou uma espécie de fichário completo, onde tudo já está pronto e basta só tirar fora a ficha que interessa para saber o que se deve saber e/ou pensar sobre determinado assunto, então a teologia não tem nem necessidade nem interesse pelo cinema. Mas se, pelo contrário, sempre com Lonergan, consideramos a teologia “uma torrente dinâmica de pesquisas cumulativas”, então sim a teologia se interessa pelo cinema. Se não na fase da teologia “que medeia” (ou seja, no seu percurso de recuperação de seu passado através da pesquisa, da história, da interpretação e da dialética aplicadas ao depósito recebido, respondendo as perguntas do tipo “Que aconteceu realmente? O que pensavam aqueles padres e aqueles teólogos? Como tais questões evoluíram historicamente? Que problemas e que compreensões não adequadas ocorreram?), certamente na fase da “teologia mediada”, ou seja, quando, desta compreensão do passado nos movemos rumo ao futuro, tomando em consideração o hoje concreto, seja do próprio teólogo, seja dos destinatários de sua teologia.

Eis a resposta à primeira parte de sua pergunta: neste quadro de compreensão da teologia, não é difícil compreender por que o cinema é atualmente um dos lugares mais importantes para o teólogo empenhado na “teologia mediada”, para que o depósito cumulativo das experiências e dos insights do passado possa ir adiante e comunicar-se com a linguagem e as necessidades do tempo que nos é dado viver, e estar à altura do tempo presente .

IHU On-Line – Como o cinema pode ser lugar de expressão do Mistério?

Massimo Pampaloni – O cinema torna-se lugar de expressão do Mistério se quem faz cinema deixa, em sua vida, aberta a porta ao Mistério. Essa constatação pode parecer óbvia, mas não é. Se não há uma consciência (ou, se se prefere uma linguagem mais bíblico-simbólica, um “coração”) que crê no Mistério e faz parte – para dizê-lo com Dante  – daqueles que estão desiderosi d’ascoltare (desejosos de escutar: Paraíso, II, 2), não poderá exprimir senão interesses econômicos, propaganda ideológica ou, no melhor dos casos, sua confusão interior. A pobreza de indícios do Mistério que, em minha opinião, afeta o cinema contemporâneo é o resultado da luta ferrenha contra o próprio Mistério que se desenrola desde há um par de séculos por parte de agentes aparentemente disparatados, mas com o mesmíssimo objetivo: a destruição da herança judaico-cristã em nosso mundo ocidental e a consequente transformação do Mistério, que desafia a história fazendo-se ele mesmo história, num inócuo esteticismo sincrético, genérico e aguado, bom para todos os paladares.

Portanto, o cinema pode ser lugar de expressão do Mistério só se quem faz cinema é alguém que busca o Mistério, honestamente e cheio de desejo, se o Mistério o inquieta, se arde dentro dele sem deixá-lo em paz. Um fogo tão ardente que consegue até penetrar as mais pesadas prisões ideológicas, como, por exemplo, é, para mim, o caso de Píer Paolo Pasolini  (1922-1975) ou a esplêndida trajetória existencial, no campo da poesia, daquele gigante que foi Bruno Tolentino  (1940-2007), onde o fogo da busca da verdade alimentou, por toda sua vida, a luta contra seus “demônios interiores” dostoievskianos, purificando-o como um cristal para a entrada no Mistério.

IHU On-Line – De que maneira a linguagem do cinema expressa os dilemas espirituais e teológicos do ser humano?

Massimo Pampaloni – O cinema o faz, é claro, com sua linguagem própria que deve ser apreendida para que se possa compreender a expressão. Assim como não bastam os ouvidos para compreender o japonês, assim não bastam os olhos para compreender um filme. Este é, em minha opinião, um dos “mitos cognitivos” mais perigosos e difundidos neste assunto. A não ser que o sujeito não se limite a comentar, de todo um discurso em japonês que ouviu, quanto lhe agradou o som daquela língua, quanta emoção lhe provocou o mover-se rítmico dos lábios do orador, quanto aqueles sons lhe fizeram recordar alguns movimentos da Komposition de Schönberg  e todas as relações antropológicas daqueles sons com o teatro Nō. Mas o que o orador disse? E que importa? Cada um deve ouvir aquilo que crê, no fundo não existe a verdade, etc. Se prestamos bem atenção, hoje a maioria das resenhas de filmes é exatamente deste teor. Fala-se da fotografia, da trilha sonora, das emoções das paisagens, de tudo que veio à mente de quem faz a resenha; mas sobre o que o autor queria comunicar, nem uma linha.

Este problema teve consequências também trágicas por ocasião de filmes que não foram compreendidos em sua verdade. O exemplo, em minha opinião, mais gritante que conheço de fonte de primeira mão, é a obra prima de Fellini , La dolce vita (1960). O filme, nas palavras do próprio Fellini, queria ser um hino à Graça, entendida em profundíssimo sentido católico. O filme vinha coroar um caminho de aproximação ao Mistério iniciado com I vitelloni (1953) e com La strada (1954). O filme não foi compreendido: não foi compreendido pela crítica em geral, que o guindou ao nível da representação da Itália do boom econômico e das noites “na Via Veneto” em Roma, lugar “quente” daqueles anos (com as costumeiras imagens agora consumadas da “bomba sensual” de Anita Eckberg  e seu banho na Fontana di Trevi etc.); não foi compreendido nem pelas altas hierarquias eclesiásticas que, sob a pressão de bem determinados ambientes, condenaram o filme. Meu pranteado mestre Nazareno Taddei, amigo de Fellini, mas sobretudo competente conhecedor da linguagem cinematográfica, escreveu uma resenha entusiástica para a revista cultural dos jesuítas italianos Letture. O preço que teve que pagar foi um exílio de dez anos (literalmente exílio: teve que deixar a Itália) e a proibição de assinar artigos sobre cinema durante esse tempo. Taddei contava sempre das lágrimas de Fellini (e indicava até a poltrona no seu escritório onde Fellini estivera sentado) pela incompreensão que a Igreja tinha tido em relação a seu filme, que queria ser um filme católico! 

Analfabetismo cinematográfico

O problema, portanto, se muitas vezes está na parte de quem faz o filme (porque não presta atenção suficiente à estrutura, porque não enquadra bem a linguagem, porque não tem nada para dizer...), a maior parte das vezes o problema está no espectador e em seu analfabetismo cinematográfico, mesmo que tivesse vinte doutorados em comunicação e cinema e pudesse citar de memória todas as sequências dos filmes de Ėjzenštejn .

Pressuposta a importância do conhecimento da linguagem específica do cinema, eu diria que, baseando-se na linguagem da imagem, o cinema tem a possibilidade de aproximar-se do poder da poesia. Esta é capaz de fazer emergir porções do real que de outro modo não seriam acessíveis à consciência não diferenciada ou diferenciada somente no âmbito da teoria, a miserável condição de quem pensa que a ciência é “objetiva” e o real é aquilo que podemos ver “já-fora-ali-mesmo”, para usar a expressão lonerganiana que caracteriza o realista ingênuo. É o âmbito do significado da arte, a objetivação de uma “configuração dinâmica” particular da consciência (pattern of consciousness, diz Lonergan) que está “em estado puro”, ou seja, não mediado ainda pela instrumentalidade da consciência mesma. Esta percepção é uma percepção da realidade. Se compreendo a arte, compreendo a vida no seu irromper concreto. O filme permite essa compreensão. A ideia é compreendida pela reflexão, interpretação e juízo subsequentes ao dado apreendido. O exemplo que me vem é o dos filmes de Tarkovski , como os mais eficazes na comunicação da apreensão da presença do Mistério. Suas imagens, além de serem um evidente legado de sua idiossincrasia russa, têm a força de fazer irromper a beleza também lá onde aparentemente não a buscaríamos, como no filme Lo Specchio (1975); sobre este filme, citando Barthelemy Amengual, foi escrito: “Em Lo Specchio as grandes súbitas rajadas de vento, ‘breves como sinais’, o vidro da lâmpada que rodopia, o halo deixado por uma taça de chá que logo se evapora, a roupa estendida que enfuna, a lâmpada que se extingue nos limites, as mãos translúcidas, fosforescentes porque carregam uma luz, a brasa que parece dotada de vida: em tal grau transparece sensível seu respirar uníssono com o hálito do mundo” .

Como então o cinema pode comunicar as realidades que se referem ao Mistério? Indicando, suscitando, mostrando o caminho. Para mim, nada mais eficaz para expressá-lo do que um texto de Romano Guardini  (1895-1968): “Quereria ajudar os outros a verem com olhos novos. Portanto não demonstrar, senão ajudar a ver de maneira nova. Procurai pensar que num quarto escuro haja um quadro. Só com estudos químicos se pode mostrar o refinamento das cores, ou com documentações históricas se pode provar que ele é obra de um extraordinário mestre da cor. Mas se pode também abrir uma janela na parede do fundo e eis que entra a luz e as cores resplendem. Então já não serve de nada nenhuma demonstração. Vê-se” .

IHU On-Line – Tendo presente o contexto da cultura contemporânea, em que medida a linguagem do cinema revela uma nova forma de pensar a dimensão religiosa?

Massimo Pampaloni – Hei de parecer-lhe pessimista, mas a linguagem do cinema revela o que é atualmente a dimensão religiosa: um deserto total. Em minha opinião, não há mais nem sequer as inquietações sobre os grandes temas que desde sempre moveram o homem na direção das fronteiras do Mistério: penso, por exemplo, na “mãe de todas as inquietações”, a morte. Para fazer uma obra prima como O sétimo selo de Bergman é preciso que a morte seja sentida com o peso e a angústia que só uma alma disposta à busca que isso comporta pode perceber e mostrar. Quando a essas solicitações a cultura contemporânea responde com anestésicos formados por uma mistura de orientalismo barato, esteticismo narcotizante e uso constante de tranquilizações “científicas”, não posso esperar grandes “releituras” da experiência religiosa. O individualismo e a privatização da dimensão religiosa, perdendo a dimensão comunitária de um sentimento partilhado, teve como resultado uma dimensão religiosa agonizante que se expressa em produtos de uma banalidade espantosa e de contemplações narcisistas do próprio umbigo. Não creio que seja necessário explicitar os filmes recentes a que me refiro.

IHU On-Line – O senhor poderia, como exemplo, destacar alguns filmes em que a dimensão do Mistério está implicada?

Massimo Pampaloni – Sou consciente de que cada um tem sua classificação pessoal. Limito-me a alguns exemplos, em minha opinião, magníficos. Sobre a Dolce vita já falei. É uma reflexão de como a Graça de Deus continuamente busca o homem que se debate no oceano do sem-sentido no qual se meteu; e como as respostas que encontra não são jamais plenamente suficientes para satisfazer seu desejo profundo de plenitude. Outro filme onde o Mistério não assume o rosto explícito de Deus é aquela obra prima de K. Kieślowski , A dupla vida de Verônica (1991). Sempre pelo analfabetismo de que eu falava antes, pouquíssimos compreenderam o dado fundamental deste filme (e, no entanto, completamente explícito no título!): é a história de uma só Verônica, não são duas! Porém todo o mundo se põe a escrever sobre o “tema do dublê”, da misteriosa sintonia de duas mulheres etc. Significa fixar-se na “coisa representada” e não compreender a “representação da coisa” como teria dito Taddei. É óbvia a dimensão universalizante do enredo representado. O filme é, em realidade, uma estupenda representação da morte aparente da dimensão espiritual do homem (Weronica). O homem contemporâneo (Véronique), concreto, mas puramente unidimensional, está desorientado. Mas o Mistério o busca, manda-lhe sinais. Se os segue, chegará a reencontrar-se com esta sua dimensão, alcançando a plenitude da compreensão de sua vida. Aqui temos um Mistério que é descrito só como transcendência, sem uma determinação concreta ou confessional. Mas permanece um fortíssimo chamado a não vivermos amputados da dimensão invisível, a reconciliar-nos com aquela nossa parte espiritual que de fato não está morta. 

Outro filme que me conduz ao Mistério é obviamente Andrej Rublëv, do já mais vezes citado A. Tarkovskij, de 1966. Nesse filme, o protagonista chega ao olhar espiritual (o único que pode ver o Mistério que se revela) através da superação da tentação da beleza sensível perfeita (representada por Teófanes , o Grego), da integração do escândalo da brutalidade e da violência do mundo do homem até compreender o chamado da graça (o sino e a dama branca) e da compaixão na aceitação da força transformadora do sofrimento, que lhe abre finalmente a possibilidade de pintar seus esplêndidos ícones, formas talvez imperfeitas, mas capazes de comunicar o mistério contemplado. E como chega ao espectador a comunicação de que o olhar de Andrej se abriu do Mistério? Até aquele momento o filme é em preto e branco. Andrej abraça o rapaz que fez o sino, a câmera segue as pernas das calças do rapaz, rotas e pobres, e se detém sobre tições enegrecidos de brasas apagadas. De repente aquelas brasas se tornam coloridas e a última sequência, de pungente beleza, nos mostra os ícones de Rublev, na plenitude de suas cores. Só um filme teria podido comunicar, só com imagens, esta emoção e, a partir dela, seu significado profundo.

IHU On-Line – Como esses filmes podem ser ocasião de reflexão teológica, contemplação e oração?

Massimo Pampaloni – As três coisas são diferentes, mas creio que se possa responder fazendo um paralelo com a arte. Um filme, como um quadro ou a Divina Comédia pode ser uma excelente ocasião de reflexão teológica, quando quem o fez, como dissemos, está aberto à busca do Mistério. Um artista pode ter excelentes insights sobre o Mistério que podem servir ao teólogo (que por sua vez não seja um entomólogo do espírito!) para expressar em outras categorias aquele ato de compreensão que teve o diretor do filme. Lendo Dante, isso acontece a todo momento! Às vezes a arte provoca a arte, penso no Tríptico Romano, a última obra poética de Karol Wojtyla  (1920-2005), nascida da contemplação solitária e silenciosa dos afrescos de Michelangelo na Capela Sistina. Às vezes a mística que tem alguns aspectos semelhantes à comunicação simbólica do cinema provoca a reflexão teológica: penso na imensa obra de H. U. von Balthasar  (1905-1988), que é a dicção teológica das intuições místicas de Adrienne von Speyr (1902-1967). As grandes catedrais do século XII inspiraram as Summae teológicas do século XIII (e não ao contrário como frequentemente se acreditou). Assim igualmente, como a arte inspirou a teologia, esta ajuda a contemplação. Baste pensar no Beato Angélico  (1395?-1455) que pintou suas melhores obras nas celas de seus confrades no convento florentino de São Marcos: não eram destinadas à admiração, nem à decoração, mas deviam ajudar os outros frades a orar e contemplar o mistério. A oração irrompe depois naturalmente de um coração transbordante de beleza que oxalá um filme tenha ajudado a evidenciar-se. Confesso que não consigo assistir ao filme Ostrov (A ilha) de Pavel Lungin (2006) sem sentir-me invadido pela força daquilo que os monges orientais chamam o penthos, aquele sentimento gozoso de reconhecer o abismo do próprio pecado coberto pelo manto da misericórdia de Deus.

Leia mais...

Massimo Pampaloni já concedeu outra entrevista à IHU On-Line:

* Divina Comédia. A relação entre poesia e Deus. Edição 301, de 20-07-2009, disponível em http://bit.ly/LHKaXb 

 

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