Edição 402 | 10 Setembro 2012

Valério Brittos, missionário da ética e da solidariedade

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Dênis de Moraes

Outros colegas já escreveram sobre a significativa contribuição do saudoso Valério Cruz Brittos , símbolo da consciência ética e cidadã, aos estudos de economia política da comunicação. Junto-me a eles, sublinhando a irreparável lacuna aberta pela sua prematura passagem à dimensão dos justos, em 27 de julho último. Gostaria de dar um breve depoimento sobre outro Valério. O missionário que cumpriu na Terra o papel diferenciado de tentar fortalecer o humanismo, tanto através do trabalho intelectual persistente e agregador como da capacidade singular de dar afeto e solidariedade aos outros. Qualidades raras em um tempo de mercantilização da vida e das relações humanas.

 

Já no primeiro contato Valério demonstrou ser movido pela ideia da partilha. No começo da década de 2000, quando ainda cursava doutorado em Comunicação e Cultura na Universidade Federal da Bahia, ele me enviou e-mail dizendo, em síntese, que havia lido escritos meus e neles identificava pontos de identidade que desejava estreitar. Após obter o título de doutor e regressar ao Rio Grande do Sul, Valério me convidou para uma banca na pós-graduação da Unisinos. Levou-me para almoçar no bandejão do campus e depois para jantar em um restaurante de São Leopoldo. Falamos bastante de um dos temas que nos acompanharia ao longo dos anos: a necessidade de combater desvios na vida acadêmica, quando esta se fecha em seus muros e se aparta da realidade social, tornando-se prisioneira do espírito de gueto, de mecanismos de competição estúpida, de narcisismos e de improdutividade intelectual.

Aprofundamos o conhecimento durante o curso de especialização por ele coordenado na Universidade do Contestado, em Concórdia, Santa Catarina. Lá o testemunhei como cicerone inexcedível, disposto a não poupar providências para que fosse exitoso o módulo que ministrei sobre teoria crítica da mídia. Na noite inteira de conversações em uma cantina italiana, revelou-se o Valério de carne e osso, extremamente preocupado com os destinos individuais e coletivos, fiel à religiosidade e ecumênico, impregnado pela leveza dos sentimentos genuínos. Quase sem timidez, contou-me sua história de amor com Tati, iniciada pelas ondas do rádio. Ele, comentarista do programa de debates de uma emissora de Pelotas; ela, ouvinte e logo simpatizante de suas ideias. O cruzamento dos dois no corredor de refeitório da Universidade Católica de Pelotas, onde ele lecionava e ela, bem mais jovem, estudava ou tinha estudado. E depois o casamento.

Tudo se alterou a partir dali. Se nunca deixamos de dialogar sobre a exigência de se revitalizar o pensamento crítico frente à ofensiva ideológica despolitizadora do neoliberalismo, inclusive nas universidades; Concórdia representou o divisor de águas em termos de afinidades eletivas entre nós. As circunstâncias existenciais atravessariam os encontros presenciais e virtuais, a ressaltar a possibilidade de equilíbrio entre conhecimento e vida, de modo a não permitir que a aridez do primeiro sufoque a beleza incontrolável da segunda. Ele perguntava-me, frequentemente, sobre minhas relações afetivas e os planos para o futuro imediato. Ainda me recordo de um entardecer de final de verão, em que caminhamos pelo centro de Porto Alegre como se transitássemos pela terra da promissão à procura de sentidos para as nossas jornadas. O sentido da solidariedade social em uma quadra histórica caracterizada pela reificação e pelo egoísmo. Os sentidos para a atividade ético-política dos intelectuais progressistas, em meio à universalização da barbárie capitalista. Éramos absolutamente convergentes no inconformismo frente às desigualdades e injustiças numa sociedade em que pouquíssimos concentram renda, riqueza e poder, enquanto as imensas maiorias resistem, subalternizadas, sobrevivendo com muito menos do que o suportável.

Nos últimos meses, Valério me escrevia desolado com as amarguras que acumulava em instâncias acadêmicas e deprimido em função das esperanças diminuídas na recuperação do pai idoso e adoentado. Como fiz outras vezes, insisti para que ele deixasse as funções que dignamente exercia para além do magistério e da pesquisa a fim de cortar a proximidade com mesquinharias que o atormentavam. Ele dizia concordar comigo e falava de valores fundamentais a preservar. Como neste e-mail de 21 de maio de 2012: “Como sempre, você tem toda a razão. Isso tudo é um aprendizado. Creio que estou num momento de reflexão, pensando o que e como fazer. Vamos ver. Só tomo todo o cuidado para a mágoa não tomar conta e não fazer o jogo de nossos oponentes, permanecendo generosos e acreditando em valores como solidariedade e fraternidade, base da sociedade mais justa que todos queremos. Também tenho me aproximado muito do movimento social, dialogando e contribuindo, na medida do possível. Mas a ‘inserção capitalista’ do Brasil é sedutora e o mundo acaba sendo o que vemos”. 

Com a saúde debilitada e escavando forças para superar o esgotamento emocional, Valério não desistiu de seguir semeando. De Belém e Teresina a Lisboa e Madri, ele incansavelmente se dispunha a estimular a reflexão consequente no que definia como “périplo de viagens”, organizando ou participando de eventos que contribuíssem para a formação crítica e a democratização da comunicação. Mesmo na derradeira internação hospitalar, em estado grave, explicitava a vontade de continuar trabalhando pelo bem comum. Seu extraordinário exemplo de dedicação, honradez, combatividade, lealdade e lucidez estará sempre presente onde se faça mais urgente a luta dos homens pela emancipação.

 

* Dênis de Moraes é professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense; vem colaborando ativamente nas atividades do Grupo Cepos. E-mail: .

 

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