Edição 402 | 10 Setembro 2012

Teólogos enclausurados na academia. Um desafio

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Graziela Wolfart, Thamiris Magalhães e Luis Carlos Dalla Rosa | Tradução de Moisés Sbardelotto

A teologia tem que ser profética, porque deve se realizar não como exposição de doutrinas e de disciplinas, mas sim como leitura dos sinais dos tempos, uma leitura que só pode ser feita a partir da encarnação solidária a partir dos debaixo, afirma o teólogo venezuelano Pedro Trigo.

“Não podemos ignorar como nos afeta o totalitarismo de mercado, hoje dominante, mas também não podemos nos restringir a maldizer o fetiche”, declara o teólogo Pedro Trigo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, temos que partir da atuação vitoriosa do Espírito do Crucificado Ressuscitado, “porque só tem sentido falar e propor a partir dessa liberdade libertada que se manifesta em um modo alternativo de viver e se traduz na responsabilidade concreta pelos outros, estando lado a lado com eles e priorizando os que estão embaixo”. E acrescenta: “A assunção dos bens civilizatórios da última revolução tecnológica pode potencializar essa atitude”.

Questionado sobre se a teologia vive hoje um processo de “enclausuramento” ou uma tendência academicista, o teólogo explica que o enraizamento da teologia nas universidades tem tido grandes vantagens, sobretudo a exigência de rigor metodológico, mas tem tido dois graves inconvenientes: “O mais óbvio, a tendência à formalização, aumentada pela orientação das universidades à excelência acadêmica, entendida neste caso como o cumprimento de padrões formais, já que os qualificadores, burocratas secularizados em geral, não são capazes de julgar conteúdos. Mas o mais grave é que os teólogos vão se enclausurando na academia, e se perde a referência básica ao povo de Deus e, principalmente, aos pobres com espírito, que são a principal fonte da práxis e da consciência cristãs”.

Jesuíta de origem espanhola e naturalizado venezuelano, Pedro Trigo é professor de Teologia na Faculdade de Teologia da Universidad Católica Andrés Bello, em Caracas, e pesquisador do Centro Gumilla para estudos sociopolíticos da Companhia de Jesus na Venezuela, onde foi diretor por várias vezes.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Como o senhor analisa a teologia latino-americana, tendo presente a complexidade da atual realidade do mundo?

Pedro Trigo – Acredito que a teologia não deve ser fundamentalmente ideológica, no sentido de discussão de ideias, mas sim concreta, isto é, deve se ater a problemas sólidos, sem se restringir à sua particularidade, porém chegando ao nível da realidade. Não podemos ignorar como nos afeta o totalitarismo de mercado, hoje dominante, mas também não podemos nos restringir a maldizer o fetiche. Temos que partir da atuação vitoriosa do Espírito do Crucificado Ressuscitado, porque só tem sentido falar e propor a partir dessa liberdade libertada que se manifesta em um modo alternativo de viver e se traduz na responsabilidade concreta pelos outros, estando lado a lado com eles e priorizando os que estão embaixo. A assunção dos bens civilizatórios da última revolução tecnológica pode potencializar essa atitude.

IHU On-Line – O que significa fazer teologia latino-americana no atual contexto da Igreja?

Pedro Trigo – Concebo a teologia latino-americana como uma função e missão da Igreja, mas entendendo a Igreja como povo de Deus articulado, com diversas vocações, que se realiza ao nos levarmos mutuamente na fé, no amor fraterno e na vida concreta a um nível anterior ao da diversificação de funções, e que, desse modo, se converte em sacramento da união da humanidade como família de povos, dinamismo que o Espírito impulsiona em todos os seres humanos. Ampliar os problemas da instituição eclesiástica é um modo de clericalismo. Como dizia o catecismo que estudei quando criança, somos cristãos pela graça de Deus. Animados ou não, aqueles que, como nós, se consideram cristãos têm que seguir o mesmo caminho compartilhado e solidário.

IHU On-Line – A partir da realidade latino-americana, qual o sentido de se pensar e fazer uma teologia profética e evangélica?

Pedro Trigo – A teologia tem que ser profética, porque deve se realizar não como exposição de doutrinas e de disciplinas, mas sim como leitura dos sinais dos tempos, uma leitura que só pode ser feita a partir da encarnação solidária a partir dos debaixo. A encarnação no mundo em que nos cabe viver expressa o pathos (a entrega apaixonada) e o ethos (a exigência) do Concílio . A solidariedade a partir de dentro exclui a adaptação ao estabelecido, porque configura uma situação de pecado e exige um constante discernimento. Como a nossa época é diferente da de Medellín , é imprescindível realizar um discernimento equivalente ao que foi realizado pela Igreja latino-americana neste local. Mas, assim como naquela época, não basta a denúncia. Não temos autoridade cristã se carecemos de propostas positivas, nas quais se possa caminhar com plenitude humana, verdadeiras alternativas, principalmente no plano antropológico concreto.

IHU On-Line – A teologia vive hoje um processo de “enclausuramento” ou uma tendência academicista? Por quê?

Pedro Trigo – O enraizamento da teologia nas universidades tem tido grandes vantagens, sobretudo a exigência de rigor metodológico, mas tem tido dois graves inconvenientes: o mais óbvio, a tendência à formalização, aumentada pela orientação das universidades à excelência acadêmica, entendida neste caso como o cumprimento de padrões formais, já que os qualificadores, burocratas secularizados em geral, não são capazes de julgar conteúdos. Mas o mais grave é que os teólogos vão se enclausurando na academia, e se perde a referência básica ao povo de Deus e, principalmente, aos pobres com espírito, que são a principal fonte da práxis e da consciência cristãs. Não estou dizendo que não existe contato, mas talvez mais como trabalho de extensão ou “para contentar a sua alma devota” do que como alimento fontal da experiência cristã, como ato primeiro do qual a teologia é ato segundo. Por isso a repercussão muito escassa que ela tem na marcha do nosso cristianismo.

IHU On-Line – Por que teologias fundamentalistas e doutrinárias estão em auge ou ganhando espaço particularmente no continente latino-americano?

Pedro Trigo – Porque boa parte da instituição eclesiástica aposta nessas pastorais, que são, obviamente, mais baratas, já que se enclaustram em uma parcela da realidade, como se o cristianismo pudesse se confinar nela e não tivesse que ser exercido em todos os níveis da vida histórica. Por essa mesma razão, muitos se dispõem a aceitá-las. A proposta de se encarnar na realidade a partir de baixo para nos salvar nela, ajudando a que ela se humanize a partir do paradigma de Jesus de Nazaré, envolve toda a pessoa e todos os âmbitos da realidade. Como se diz na Venezuela: “quem se mete a redentor sai crucificado”. É custoso seguir a Jesus de Nazaré, mesmo que se faça com toda a discrição e prudência. Em segundo lugar, também seria preciso reconhecer que uma parte considerável da pastoral iluminada, seja do iluminismo liberal ou do socialista, se centrou muito na promoção ou na conscientização e organização popular, em detrimento dos aspectos religiosos, e cultivou quase que exclusivamente o pensar e o agir corretamente, deixando de lado todo o simbólico, desconhecendo que o ser humano é um animal simbólico. 

IHU On-Line – O senhor defende a ideia de que é preciso discernir entre a religião neolítica e o cristianismo. Pode explicitar essa ideia? Em que sentido nossa época seria a superação do modelo neolítico?

Pedro Trigo – A religião neolítica, também a dos maias, astecas e incas na Ameríndia, se caracteriza por templos, sacerdotes e sacrifícios, e é uma religião política, no sentido mais amplo dessa palavra. Como é evidente, nos Evangelhos, Jesus desconhece o templo e, consequentemente, o sacrifício em sua proposta do Reino, e o seu messianismo não é político. Por isso o quarto evangelho pode colocar na boca de Jesus que chegou a hora em que não se adorará a Deus em nenhum templo. Por isso, Mateus coloca na boca de Jesus, por duas vezes, para explicar o seu proceder, a expressão de Oseias: “Eu quero misericórdia, e não sacrifícios”. Consequentemente, no Novo Testamento, os sacerdotes são os pagãos ou os judeus; não há sacerdotes nas comunidades, mas sim apóstolos, evangelistas, doutores, epíscopos, presbíteros, diáconos... No entanto, no longo prazo, a pressão da religião neolítica é tão forte que a Ceia do Senhor passa a fazer, às vezes, do ato do culto que garante a presença protetora de Deus ao império e, posteriormente, às nações europeias. A mudança atual de época é precisamente o fim do neolítico. O cristianismo não tem nada a perder, porque, no seu núcleo constituinte, ele é heterogêneo a esse esquema. Nesse sentido, o fim da religião que se proclama é unicamente o da religião neolítica. Seria catastrófico que, por falta de discernimento, a instituição eclesiástica se identificasse com esse revestimento e se afundasse com ele.

IHU On-Line – O senhor coloca como um dos principais desafios da atualidade, para o teólogo latino-americano, o discernimento da terceira época. O que seria essa “terceira época” e o que tem a ver com a teologia?

Pedro Trigo – A primeira época da nossa região é, obviamente, a ameríndia; a segunda, a dos ibéricos, peninsulares e americanos, que se tornaram com o tempo, por causa das migrações, em ocidentais americanos. No primeiro período, os daqui e os de lá compartilharam o poder. No segundo, os americanos se emanciparam dos peninsulares. No terceiro, os ocidentais americanos admitiram no poder os das demais etnias, mas com a condição de que deixassem as suas culturas e passassem à ocidental: é o processo da modernização. Esse processo se estancou quando os ocidentais no poder preferiram acabar com a democracia ou esvaziá-la antes de permitir que mudasse a correlação de forças. Agora, muitos de etnia não ocidental se esforçam para adquirir os bens civilizatórios do Ocidente mundializado, mas não para deixar as suas culturas, mas sim para mantê-las com excelência. O discernimento mais elementar dos sinais dos tempos nos faz ver que, nesse movimento dos nossos povos, está presente o impulso do Espírito do Crucificado Ressuscitado. Portanto, resistir a ele é resistir a Deus.

O problema para o nosso cristianismo é que a instituição eclesiástica é ocidental americana e, por isso, não vive na transcendência e vê como uma ameaça a ela o que na realidade (no plano de Deus) é a sua salvação. A plêiade de bispos em torno de Medellín e de Puebla  se aliou, sim, com os povos como pura vivência evangélica, e os povos captaram isso com alegria e esperança. Hoje, isso não aparece tão claro ou, dependendo das regiões, aparece o contrário. Por isso a dificuldade de tirar a consequência cristã dessa época, que não é outra que a de inculturar o cristianismo em cada uma das culturas populares, de modo que desses cristãos excelentes saiam padres e bispos de cada cultura: indígena, camponesa, afro-latino-americana e suburbana. Um indício de que estamos nos negando a ouvir esses sinais dos tempos é a quantidade de pessoas que estão passando para outras confissões cristãs.

IHU On-Line – A partir dos atuais desafios que concernem a teologia, que sinais de esperança afloram desde a realidade latino-americana?

Pedro Trigo – Essa é a pergunta mais importante, já que ver só o mau e não ter olhos para ver onde o Espírito atua vitoriosamente é não ver com olhos de fé. Onde vejo mais inequivocamente o Espírito atuar vitoriosamente é nos que vivem quando não há elementos para se viver, quando a vida não tem mais objetivo do que viver, porque não se pode dar a vida por óbvia. Quando essas pessoas (as que eu conheço são, acima de tudo, as dos bairros, das favelas, como vocês dizem), que passam fome, doenças de pobres, que não têm trabalho estável qualificado, que vivem desprotegidas e desprezadas, que não se deixam morrer nem se degradam para satisfazer seus instintos mais elementares, nem se convertem em feras que arrebatam à força até atropelar os que estão na frente; quando essas pessoas, no meio de tudo isso, vivem e se esforçam para viver humanamente e até dão da sua pobreza e celebram festas, é que elas vivem obedecendo ao impulso do Espírito, Senhor e doador da vida, como diz o Credo. Enquanto houver esses irmãos nossos, haverá esperança. Mas eles não aparecem nos mass media. Só é possível receber a sua influência aproximando-se deles. Poder ser amigos deles e até formar comunidade com eles é o maior presente que Deus pode dar a alguém. Também há esperança naqueles que se solidarizam até o ponto de que a sua solidariedade os configura. Pode-se começar pelo voluntariado, que pode ser apenas um estágio; mas que também pode abrir caminho na vida de alguém até configurá-la. Essas pessoas têm alegria porque descobriram um tesouro. É claro que tudo isso tem um preço. Mas já se sabe: a alegria cristã é pascal.

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