Edição 401 | 03 Setembro 2012

Apátridas e refugiados. Os direitos humanos a partir da ética da alteridade

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart e Márcia Junges

Como podemos suportar que os direitos humanos estejam sustentados a partir da ideia de nacionalidade, questiona Gustavo Oliveira de Lima Pereira. Filosofia de Lévinas precisa de uma outra compreensão

 

“O apátrida e o refugiado não são bem vindos, pois abalam a zona de conforto da racionalidade solitária que tão somente interage com seus iguais. A ideia da recepção da alteridade se dá na possibilidade de transformar o trauma da diferença em encontro ético”. A reflexão é de Gustavo Pereira, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. E acrescenta: “A absoluta diferença cultural do apátrida ou refugiado, na sua condição de estrangeiro que pede acolhimento, é apreendida pelo olhar indiferente e violento da racionalidade totalizante”. Ele questiona se a ideia de “tolerância” seria “o ponto máximo de sustentação filosófica para dar conta da crise de sentido em que vivemos na ordem política contemporânea?”, e conclui que não. “A ideia de tolerância é insuportável para a ideia de hospitalidade - para a lei da hospitalidade – para a ética da alteridade”. E conclui: “Alteridade não é "colocar-se no lugar do outro" como muitas vezes é compreendido. É exatamente o oposto. A total impossibilidade de reduzir o outro ao poder conceituante do mesmo”. Os direitos humanos deveriam promover uma crítica de si mesmos, e a alerternativa estaria “no desenvolvimento de uma racionalidade apátrida, uma racionalidade para além da ideia de cidadania, para bem além da ideia de cidadão do mundo, pois essa ideia ainda está contaminada pela noção de soberania”.

Gustavo Oliveira de Lima Pereira estará no IHU nesta quinta-feira, 06-09-2012, falando sobre o tema desta entrevista, no IHU Ideias. A atividade inicia às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros e vai até as 19h. A entrada é franca. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, é mestre em Direito pela Unisinos com a dissertação Hospitalidade e reconhecimento da diferença na transnacionalização dos Direitos Humanos. A crise da Alteridade na questão dos apátridas e refugiados e doutorando na PUCRS com a tese Da Tolerância à Hospitalidade na Democracia por vir. Um ensaio a partir do pensamento de Jacques Derrida. Leciona na Fundação Meridional – IMED e é autor de A pátria dos sem pátria: direitos humanos & alteridade (Porto Alegre: Editora Uniritter, 2011).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como você define e caracteriza os apátridas e os refugiados? Quem são essas pessoas em nossa sociedade? Ou como a sociedade as percebe e as enxerga? 

Gustavo Pereira - No plano do direito internacional dos direitos humanos, há uma diferenciação entre a figura do apátrida e do refugiado. Apátridas são pessoas consideradas sem pátria. Essa circunstância existencial repercute de inúmeras formas na vida do ser humano desprovido de nacionalidade. Dificuldades de acesso à saúde pública, impossibilidades imigratórias e exclusão de determinados atos da vida civil. O fenômeno da apatridia ocorre ou em virtude da política interna de países que retiram a cidadania de determinados seres humanos por critérios discricionários (como foi o caso ocorrido na Segunda Guerra Mundial, onde o primeiro ato dos nazistas contra os judeus foi o de retirar a cidadania alemã destes) ou pelos critérios de distribuição da nacionalidade de cada país. Os critérios são ou do solo ou do sangue. Em países que só admitem cidadania de filhos de seus nacionais, a territorialidade não confere nacionalidade. Por exemplo: se um casal de brasileiros gerar filho na Suécia, a criança não contemplará nacionalidade sueca, em virtude do critério estabelecido neste país ser o critério do sangue. Quando um casal oriundo de país que adota o específico critério do solo para conferir nacionalidade a seus nacionais gera filho em país que adota o critério específico do sangue, surge a figura do apátrida, onde a criança não é contemplada por nenhum critério de nacionalidade. O Brasil adota ambos os sistemas de contemplação da nacionalidade. 

Já o refugiado, segundo a Convenção dos Refugiados de 1951, é o nacional de um país que precisa fugir de seu Estado-nação e buscar proteção internacional em outro território soberano em virtude de bem fundado temor de perseguição por motivos de cor, religião, nacionalidade, pertencimento a algum grupo social ou opinião política. Há diferenças entre as circunstâncias, mas sob o ponto de vista prático, segundo Hannah Arendt , em inúmeras situações o problema concreto vivenciado por apátridas e refugiados torna a diferenciação embaraçada e desnecessária. 

IHU On-Line - De que modo a crise de sentido que atravessa as relações humanas na modernidade recente aparece no problema dos apátridas e refugiados de guerra?

Gustavo Pereira - Penso que a crise de sentido que atravessa a racionalidade ocidental, amparado pelo pensamento do filósofo Emmanuel Levinas , é ancestral. A racionalidade ocidental, desde a sua gênese, é repercutida pela vontade violenta de exorcizar a realidade e retirar dela castelos conceituais bem organizados, como afirma o filósofo Ricardo Timm de Souza . 

Esta característica marcante da racionalidade ocidental deságua no âmbito das relações humanas. A sedução pela vontade conceituante sugere que o rosto de outrem seja também passível de uma conceituação tranquila daquele que o observa. Uma apreensão daquele que observa a partir de si. Com os seus anseios, as suas projeções, a sua cultura, sem levar em conta que a figura conceitual deste outro, realizada pelo intelecto do mesmo, é apenas uma representação deste outro, e não a sua expressão plena. 

A absoluta diferença cultural do apátrida ou refugiado, na sua condição de estrangeiro que pede acolhimento, é apreendida pelo olhar indiferente e violento da racionalidade totalizante. Um dos desafios do pensamento contemporâneo é o de abalar essa dimensão apropriativa no encontro com a diferença. 

IHU On-Line - Como as políticas públicas na área de direitos humanos contemplam os apátridas e os refugiados? 

Gustavo Pereira - O órgão da ONU responsável pela proteção internacional dos refugiados e apátridas é o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR. É um importante órgão que atua no âmbito da proteção internacional dos direitos humanos desde os anos 1950. A contemplação da proteção já passou por inúmeros aperfeiçoamentos, ampliando a proteção também para deslocados internos. As principais medidas humanitárias em defesa dos direitos dos apátridas e refugiados estão no plano da: 1) integração local; 2) repatriação voluntária; 3) reassentamento. 

A integração local diz respeito à tentativa de proporcionar mecanismos para que o refugiado se adapte a sociedade na qual requer o refúgio, contando com a atuação de institutos governamentais e não-governamentais para a sua concretização. A repatriação voluntária consiste no regresso do refugiado ao seu país de origem, após o término das circunstâncias que o obrigaram a requerer o refúgio. Já o reassentamento deve ser entendido como a situação na qual o refugiado não conseguiu ou não pôde permanecer no Estado que reconheceu seu status de refugiado, por não conseguir se adaptar aos costumes do país ou outras conjunturas que tornam arriscado sua permanência nele. 

O ACNUR é amparado com financiamento originário de doações de inúmeros países do mundo e ainda conta a ajuda humanitária das Cáritas Arquidiocesanas, que são organizações humanitárias desenvolvidas pela Igreja Católica para atender pessoas com problemas que envolvam direitos humanos.

Apesar de todo o esforço da ONU, existem atualmente cerca de 12 milhões de apátridas espalhados pelo mundo. O ACNUR presta assistência humanitária a 34 milhões de refugiados, apátridas e deslocados internos no mundo, mas o número de refugiados não contemplados pela proteção internacional é ainda extremamente elevado, segundo dados do próprio Alto Comissariado. Os números não são precisos exatamente pelos países muitas vezes não divulgarem dados sobre suas políticas de imigração, bem como pelo fato de que todo conflito internacional envolvendo violência gera um fluxo constante e ininterrupto de refugiados e deslocados internos. 

IHU On-Line - Qual a importância do conceito de alteridade e do reconhecimento da diferença para se discutir a problemática dos os apátridas e refugiados?

Gustavo Pereira - A alteridade não é propriamente um conceito, não é uma teoria, não é um método, ou um novo imperativo. Em uma tentativa tímida de torná-la assimilável, tento expressá-la como a mera reconstrução de uma forma de olhar avessa ao poder sedutor das representações, como falava anteriormente. É o espaço da sensibilidade e a rendição a uma responsabilidade perante um rosto que interpela. A transformação da liberdade solitária em liberdade investida. É presenciar o trauma da diferença e quebrar o espelho da própria auto-reflexividade. “Alteridade” remete a ideia de “alter”: “outro”, ou seja, condição do outro em relação a mim. Não existe possibilidade de se determinar o que o outro é como tal, ou seja, não posso explicá-lo, e sim apenas relacionar-me com ele. Algo, de algum modo, tão fácil de se pensar, porém dificultoso de se por em prática.

Tentando expressar em outras palavras: eu apenas apreendo do outro a sua representação e não a sua plenitude, apesar dos anseios da racionalidade de determinar o indeterminável. Há uma absoluta separação entre eu e o Outro, e pensar esta exterioridade absoluta; - esta separação absoluta; é o que possibilita o encontro, por mais paradoxal que essa ideia possa parecer. Pois ao perceber-me como absolutamente diferente e infinitamente distante, reduzo esta distância infinita e permito a relativização de meu arcabouço de verdades pré-estabelecidas. Percebo-me como estranho e esquisito, algo que antes era tributado ao Outro. Sou capaz de me relacionar com uma cultura diferente, algo que antes soava-me ameaçador. 

No que toca a questão dos apátridas e refugiados, o reforço da identidade e do patriotismo desenvolvido pelo ideal de Estado-nação na modernidade, gera empecilhos para o contato entre diferentes culturas, para o acolhimento entre diferentes horizontes de sentido de realidade. Pois essa diferença originária foge da possibilidade da conceituação. É traumática, usando uma terminologia levinasiana. Assim, o apátrida e o refugiado não são bem vindos, pois abalam a zona de conforto da racionalidade solitária que tão somente interage com seus iguais. A ideia da recepção da alteridade se dá na possibilidade de transformar o trauma da diferença em encontro ético. 

IHU On-Line - Em que sentido o individualismo humano atual e a falta de tolerância entre as pessoas se torna um empecilho ao ideal de hospitalidade cosmopolita? 

Gustavo Pereira - Penso que, na modernidade recente, o problema se agrava muito também em virtude de estar a cultura ocidental, de uma maneira geral, mergulhada nos templos do hiperconsumo, onde os espaços para se repensar a ideia de liberdade e de responsabilidade pelo outro perdem espaço em nome do anseio pelo hiperdesempenho. Talvez esta seja uma das características mais marcantes do legado devastador do individualismo ocidental. Mas não gostaria de aprofundar aqui essa questão do individualismo. Pensar, ainda que brevemente, o contraste entre a ideia de tolerância e hospitalidade será mais produtivo nessas curtas linhas.

A concepção de acordo, de “tolerância”; de tolerar o outro, de estabelecer um contrato de boa conivência com o outro, significa sem dúvida uma conquista da humanidade, pois compreende um novo aspecto de relação, a partir de uma ideia de reciprocidade. Mas este é o exato ponto que nos permite refletir. Será a ideia de "tolerância" o ponto máximo de sustentação filosófica para dar conta da crise de sentido em que vivemos na ordem política contemporânea? Penso que não. Como ponto de partida, compreendo que o desenvolvimento da ideia de “tolerância”, primordialmente construído nas disposições filosóficas que questionavam os antagonismos e inquietações religiosas da modernidade, deteve uma importante influência sobre as perspectivas de liberdade de credo e, posteriormente, foi e ainda vem sendo utilizada como ideia de ordem e a reposta principal para os entraves culturais que envolvem os conflitos políticos atuais. Com isso, podemos afirmar que, através do desenvolvimento da ideia de tolerância, os dias atuais recepcionam um certo patamar de liberdade de expressão, na maioria dos casos impensável por outros momentos da história ocidental. No entanto, por mais que a concepção de “tolerância” seja uma significativa conquista ocidental, isto não significa que ela se constitua em produto racional de tal forma acabado que não se ponha a desconstrução, pois ainda permanece o desejo por um fundamento para além do sonho relacional-contratual, originário do Iluminismo. 

Tolerância como panaceia

A construção filosófica iluminista da ideia de “tolerância” é atualmente o conceito-limite no plano da teoria política ocidental. A ideia de tolerância não pode ser vista como a panaceia ou o fundamento decisivo para o prisma de violência, luta e guerra, que ainda se insurge no mundo. Como nos alerta Ricardo Timm de Souza, só toleramos aquilo que, em sede inicial, não toleraríamos. Assim, quando tolero ainda tenho a última palavra e decido se sou clemente com a diferença que me traz desconforto. Sou um juiz no tribunal da relação. Ao tolerar o outro, assumo um patamar de hierarquia. Ainda sou senhor da razão e modelo o outro à minha orientação cognitiva. Impeço-o daquilo que primordialmente configura a possibilidade do Encontro: impeço-o de ser outro. Em outras palavras: a ideia de tolerância é insuportável para a ideia de hospitalidade - para a lei da hospitalidade – para a ética da alteridade.

Derrida traduz a lei da hospitalidade como uma lei incondicional e ilimitada, como o oferecimento do lar a quem chega de fora, ao estrangeiro da subjetividade. Mais que isso; a lei da hospitalidade oferece a si própria, o seu próprio si, sem pedir a ele nem seu nome, nem contrapartida, nem preencher qualquer condição. A lei da hospitalidade está em contraponto às leis da hospitalidade, que se dirigem a direitos e deveres sempre condicionados e condicionais, como tratam os Tratados e Convenções Internacionais. 

Cosmopolitismo reinventado 

Já a lei da hospitalidade se concentra em pensar o político para além do político, a partir de uma nova internacionalidade; a partir de um cosmopolitismo reinventado. Um cosmopolitismo para além do cosmopolitismo político pensado pelo ideário iluminista, pois este cosmopolitismo está condicionando pela soberania do Estado. Está estruturado pelos limites jurídico-políticos. E este cosmopolitismo jurídico, guiado pelas leis da hospitalidade condicional, revelou-se e revela-se incapaz de responder às inúmeras situações de violência pelas quais se submetem os apátridas e refugiados.  

Dito sem rodeios: é do ininterrupto e disseminador dizer da lei da hospitalidade incondicional, de sua prática imperfeita, de seu desejo sempre a desejar, de uma economia da violência – que germinará uma maior abrangência e sensibilidade às leis da hospitalidade. É pelo além do jurídico e para além do político que tateia a promessa da democracia por vir. O porvir da democracia por vir.

É no perpétuo e inacabável desenvolvimento de uma hospitalidade sem dogmas, sem lei, sem requisitar do outro nem ao menos seu nome, - uma relação desprocedimentalizada e desformalizada – é que será possível a ampliação dos níveis de reconhecimento da singularidade, no âmbito procedimental e formal. Em outras palavras: a ampliação do sentimento de cosmopolitismo é insuficiente pela via dos Tratados internacionais, das constituições, da tolerância entre os povos ou de espaços de fala consensuais. 

O reconhecimento da lei sem lei poderá respingar nas leis. Para evitar mal-entendidos, deixo claro aqui que a democracia por vir, pensada por Derrida, não significa fazer terra arrasada com o modelo de democracia liberal em que vivemos. Mas significa sim ousar discordar, desconstruir e assombrar esse modelo. Tal assombração só é possível em um espaço mínimo de democracia. Só há desconstrução onde há democracia. Só há espaço para o questionamento incondicional e a reivindicação pelo por vir de uma "democracia real" na imperfeição das democracias de aqui e agora.

IHU On-Line - Em que medida a alteridade pode ser apontada como filosofia alternativa à crise de sentido que envolve a razão instrumental? Nesse sentido, qual o papel do direito, enquanto regulador social?

Gustavo Pereira - Atualmente, o tema da “alteridade” e do respeito ao outro vem sendo banalizado; tanto por uma leitura apreçada e adocicada do reconhecido “filósofo do outro” Emmanuel Levinas, quanto pelas simplificações que a ética da alteridade vem sofrendo já em anos, pela ausência de estudos que realmente aprofundem as investigações do autor (ao menos dentro do Direito). Estes estudos facilitadores tornaram o tema um tanto quanto fatigante, moralizador e mecânico. De antemão gostaria de aproveitar o momento para, em nome deste pensamento difícil, romper com a facilitação que se sugere deste estudo. Muitos compreendem o reconhecimento da alteridade como um “pensar no outro”, “colocar-se no lugar do outro”, ou seja, bordões que representam exatamente o que não é o pensamento proposto pelo autor. 

Alteridade não é "colocar-se no lugar do outro" como muitas vezes é compreendido. É exatamente o oposto. A total impossibilidade de reduzir o outro ao poder conceituante do mesmo. O que talvez seja preocupante, ao menos do ponto de vista acadêmico, é o uso da categoria da alteridade como um “bordão”, reproduzido como uma senha ou um emblema, sem levar às últimas consequências o que a radicalidade deste pensamento reivindica. A trivialização da inovação trazida pela recepção da alteridade, pensada na aventura do encontro, é algo que precisa ser sempre denunciada. Há um dever de vigília dos intelectuais sérios, pois é a categoria da alteridade inúmeras vezes confundida com a já espancada ideia principiológica da dignidade humana. Além disso, muitos juristas sugerem, equivocadamente, por ignorarem o peso arqueológico e o estatuir-se extraordinariamente complexo de qualquer categoria filosófica digna desse nome, que a Constituição Federal já traduz a percepção da alteridade em seu bojo legislativo, como se fosse possível reduzir essa categoria moral a uma categoria jurídica. Como se fosse possível reduzir a incalculabilidade da justiça à calculabilidade do direito, como afirma Derrida. 

A democracia como inimigo

Penso que o papel do direito deva ser radicalmente crítico. Abandonar de uma vez por todas a ideia de que aquilo que está formalizado está resolvido. Afirmo em meu livro que não há nada de crítico em reivindicar um "neoconstitucionalismo", pois qualquer ideia de constitucionalismo, por maior que seja sua boa vontade, ainda está contaminada pelos anseios tolerantes do modelo de democracia liberal em que estamos circunscritos. 

Ouso afirmar, ao lado de Slavoj Žižek , que o inimigo hoje não é mais o capitalismo, mas sim a democracia; - “a ilusão da democracia”, cuja principal perversidade está no fato de somente admitir soluções às suas crises a partir de sua própria dinâmica estruturante, sem permitir uma transformação radical na sua carcaça interna. A democracia liberal só admite respostas à sua crise de sentido a partir da aplicação dos já velhos e empoeirados mecanismos democráticos. Evoca sempre o recorrente procedimentalismo-constitucionalista, apostando todas as fichas na formalização da vida.   

O papel, a meu ver, dos direitos humanos é de desconstrução da visão tradicional de direitos humanos, ainda envolta em uma padronização universalizante que não compreende o problema em sua concretude. Os Tratados Internacionais de proteção dos direitos humanos para apátridas e refugiados são de extrema importância, porém o problema não se dá tão somente em nível de concretização dos direitos humanos. Ouso afirmar que um dos graves problemas dos direitos humanos está no abandono de investigar o fundamento dos direitos humanos. Há a tese hegemônica de que onde falta direito, basta levá-lo até lá. Meu pressuposto é outro. Onde falta direito; - no cerne da vida concreta de todos aqueles que Walter Benjamin chamou de "restos da história", há uma construção teórica muito sofisticada por trás (e muito antiga) que legitima esta falta, dando aparência de que todos estão contemplados pelo sistema. Em outras palavras, se há uma Norma Constitucional ou um Tratado Internacional que garante direitos ou proteção internacional a um determinado grupo de pessoas e esta norma não é aplicada, significa que há uma outra norma, mais forte que a norma instituída, que tem vigência. Esta norma que sustenta a suspensão do direito é a regra para estes restos da história. 

De forma muito simplificada, esta é a ideia de estado de exceção permanente, proposto por Walter Benjamim e reproblematizado por Giorgio Agamben . Talvez ambos tenham razão, quando afirmam que para a tradição dos oprimidos a exceção é a regra, o Estado possa determinar qual vida é digna de ser vivida e qual vida é absolutamente matável, tornando as normas constitucionais e internacionais, em muitos casos, mera "vigência sem significado".  

Racionalidade apátrida

Os direitos humanos, a meu ver, precisam da crítica de si. Da crítica de seus pressupostos. Muitos intelectuais dos direitos humanos em geral buscam respostas concretas para os problemas dos direitos humanos e entendem que o problema do seu fundamento é secundário. Eu parto do princípio de que a fragilidade da eficácia dos direitos humanos está no total abandono da sua reflexão sobre suas bases de fundamento. Abandono de sua crítica radical. O renascimento dos direitos humanos parte de sua robusta desconstrução, por óbvio, levando em conta o mérito da ordem institucional em pró da proteção internacional.  

Para mim, a pesquisa em torno da questão dos apátridas e refugiados não está tão somente nas possibilidades jurídicas de se pensar mecanismos de proteção internacional para este grupo de pessoas. Está em pensar ou identificar como opera a violência da racionalidade ocidental que torna possível suportar a ideia de existir um ser humano estar absolutamente a margem da proteção jurídica por não ter uma nacionalidade, aquilo que chamo em meu livro de "a ficção da nacionalidade". 

Como é possível os direitos humanos estarem absolutamente sustentados a partir da ideia de nacionalidade? Como é possível suportarmos isso? O artigo XV da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos os seres humanos tem direito a nacionalidade. A meu ver, isso reforça a fixação pela ficção da nacionalidade, que gera uma vinculação com o Estado-nação que levadas as últimas consequências leva a pensamentos nazi-facistas, regimes políticos xenofóbicos e o preconceito com culturas diversas. 

Em meu livro concluo uma posição radicalmente oposta. Uma alternativa estaria no desenvolvimento de uma racionalidade apátrida, uma racionalidade para além da ideia de cidadania, para bem além da ideia de cidadão do mundo, pois essa ideia ainda está contaminada pela noção de soberania. Uma racionalidade onde o outro seja reconhecido pela concretude de sua singularidade, e não pela ideia de cidadania, pois no momento em que inventamos a ideia de "cidadão" imediatamente inventamos também a figura do "não-cidadão". Pensando dessa forma podemos ver que o conceito de cidadania é excludente. Desconstruir a ideia de nacionalidade significa, em larga medida, desconstruir a ideia de cidadania. 

IHU On-Line - Pode-se perceber atualmente a fragilidade do argumento da dignidade humana no reconhecimento da diferença em escala mundial? O que isso sinaliza sobre nossa sociedade? 

Gustavo Pereira - Esta talvez seja a questão mais difícil de percorrer aqui em poucas palavras. Dediquei longas páginas do meu livro à desconstrução do argumento principiológico da dignidade da pessoa humana. Tentarei sintetizar. 

Em primeiro lugar, vejo o consagrado amuleto do principiologismo como (tal qual o constitucionalismo contemporâneo), uma pretensa proposta de grande ruptura ao modelo dogmático de se pensar o direito, o mundo e a vida, mas que em verdade legitima a manutenção deste mesmo modelo formal, sem adentrar as situações concretas das relações mundanas. Em outras palavras, todo principiologismo representa um esquematismo que, a meu ver, hoje é insuficiente para se repensar o papel crítico dos direitos humanos. 

É como se eu, na tranquilidade de meu existir, imerso em meu mundo, dirigindo meu carro pela estrada em direção a minha casa, após um leve fim de semana no litoral, ao perceber uma motocicleta no meio da pista e uma pessoa imóvel, caída nas suas proximidades, parasse o carro e prestasse socorro a ela por força do “princípio da dignidade da pessoa humana”, fazendo valer os preceitos do ordenamento jurídico ou para escapar de uma possível acusação criminal, envolvendo omissão de socorro. 

É como se nesse instante de decisão, minha atitude se deva a uma ordem normativa formalizada por um princípio norteador ou ao medo das consequências legais e não em virtude de se assumir uma loucura em nome da justiça, expressada por quem não sou, mas que nesse momento precisa de mim. Por quem toma-me a liberdade. 

O horizonte jurídico médio sugere que as principais situações envolvendo dimensões éticas, em seu instante de decisão, se dão pelo cumprimento ou descumprimento dos princípios pré-determinados pelas normas jurídicas. O principiologismo, em toda sua capacidade esquematizante, representa talvez a principal bengala que sustenta as teorias constitucionais e boa parte das teorias do direito da atualidade.

Abstração comum

No mesmo sentido, no que tange ao argumento da dignidade da pessoa humana, o fôlego é perdido exatamente também em virtude de sua protuberante abstração. Como afirmou Hannah Arendt, ninguém viu nada de sagrado quando o apátrida, perambulante pela Europa, se viu envolto tão somente por sua humanidade. Um apátrida na Europa, em tempos de Segunda Guerra, não tinha sua dignidade negada, porém isso nada repercutiu concretamente para sua sobrevivência. Precisava ele cometer pequenos crimes para, quando preso, ter direito a alimentação, direito a um advogado e direito a uma cama para dormir. Precisava ser um fora da lei para estar na lei. Sua mera dignidade não foi suficiente para contemplar-lhe direitos. Neste sentido, argumentar em pró da dignidade humana pode sugerir o maior de todos os quietismos, se permanecermos pensando-a em abstrato. 

Não estou aqui querendo neutralizar as fundamentações que se baseiam na ideia de dignidade humana nem questionar a sua imensa contribuição na construção da cultura ocidental, mas sim demonstrar a sua infertilidade e até a sua indecência no panorama de rediscussão da fundamentação dos direitos humanos que entendo ser de suma importância. Pois, na maioria dos casos, como afirmou Agamben, é indecente falar em “dignidade” e “decência” aos protagonistas que formam os “restos da história". 

Deve-se reestruturar este fundamento para que se possa voltar a falar em dignidade de forma consistente, ou seja, uma dignidade humana ancorada na ideia de paz, que adentre de fato na crise de sentido que a humanidade atravessa, pois só adentrando na crise é que se pode sair dela e transformá-la em crítica, remontando as palavras de Ricardo Timm de Souza. Uma dignidade que comporte o não-ser, o nada, o impuro, o sem pátria... o diferente -  e um pensamento dos direitos humanos que tenha como ponto de partida a concretude da alteridade; antes mesmo da abstração comum atribuída a ideia de dignidade humana.

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição