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Nancy Cardoso Pereira
Questionada pela IHU On-Line sobre a percepção feminina do Concílio Vaticano II e sobre o papel e lugar da mulher em seus documentos e decisões que ecoam até hoje na Igreja, a teóloga e filósofa Nancy Cardoso Pereira escreveu o artigo a seguir especialmente para a presente edição da revista. A seu ver, “para alguns o Vaticano II era um ponto final no processo de concessões e abertura da Igreja com o mundo moderno, para outros e, em especial, para muitas, era o ponto de partida para uma caminhada de reposicionamento da fé. Este conflito estava presente no Concílio e se manteve (e se mantém) atual”. Ela explica que foi justamente no corpo e na vida das irmãs, suas companheiras de luta, que viu o melhor do Concílio Vaticano II, mas também o “pior da manutenção dos esquemas de centralização e clericalização”. E explica: “o que movia minhas irmãs companheiras não era o Concílio como ‘coisa’ na história da Igreja, mas o espaço de conflito que o evento representou na vida de uma cristandade que se queria una & santa & inquestionável”.
Teóloga e filósofa, Nancy Cardoso Pereira é mestre e doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, e pós-doutora em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Ela é pastora da Igreja Metodista. É membro do Palestine Israel Ecumenical Forum – PIEF/World Council of Churches – WCC e secretária de Publicações do Centro de Estudos Bíblicos – Cebi, além de assessora de Formação da Comissão Pastoral da Terra – CPT. Nancy Cardoso Pereira foi escolhida em agosto como reitora da Universidade Bíblica Latino-Americana – UBL. A sua gestão vai de 2013 a 2017.
Confira o artigo.
Não são as ideias que movem a história e não são as ideias que circularam no Concílio Vaticano II e nos documentos que fizeram história. A força que empurra a história é a história mesma. Assim seria possível fazer uma história das ideias do Vaticano II, mas então nos manteríamos no nível de idealização teológica e histórica que nos aprisionaria aos cenários pré-conciliares. É porque este momento da história teve importância nos processos de disputa de poder dentro do cristianismo que criou as condições objetivas e subjetivas da minha caminhada de fé pastoral popular e feminista no Brasil e na América Latina. Entretanto, estamos sempre ameaçadas, de modo muito concreto, de que o ponto de vista dos vencedores domine e suplante, de novo, a história das mulheres, dos subalternos e de suas lutas de libertação.
A Igreja pré-conciliar se caracterizava por:
1. centralização de toda a instituição católica;
2. a clericalização que perpassava essa organização eclesiástica;
3. o fortalecimento da Igreja Católica Romana, apresentada como uma instituição paralela aos estados modernos (Azzi) .
Estas dinâmicas tinham uma interferência muito direta na vida das mulheres, não só nas fiéis católico-romanas, mas também na manutenção do status de minoridade das mulheres na cultura cristã-ocidental. Os ares de abertura do Vaticano II expressam novas relações de poder dentro da Igreja Romana, mas também na sociedade de um modo geral. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II não era um ponto de partida, mas um ponto de articulação e interação entre forças pastorais e políticas que ressoavam dentro da Igreja Romana.
De acordo com Dussel , as guerras mundiais na Europa e suas resoluções por dentro do capitalismo levaram à consolidação de novas hegemonias políticas que criaram as condições para que os cristãos, ou parte deles, assumissem decididamente o projeto burguês – e da pequena burguesia como efeito de afirmação da democracia liberal na Europa e na América.
Do mesmo modo, o impacto e a recepção do Concílio Vaticano II foi diferenciada não só pelos contextos geográficos, mas também e principalmente por conta das oscilações e disputas em torno desta nova hegemonia.
Assim, para alguns o Vaticano II era um ponto final no processo de concessões e abertura da Igreja com o mundo moderno, para outros e, em especial, para muitas, era o ponto de partida para uma caminhada de reposicionamento da fé. Este conflito estava presente no Concílio e se manteve (e se mantém) atual.
Posicionamento do movimento feminista
Um dos pontos de questionamento a partir da década de 1950 e, em especial, na década de 1960 era o de posicionamento do movimento feminista. Tanto na dimensão teórica como nas práticas de luta por direitos, as mulheres já tinham acúmulo significativo que interferiam nestes novos arranjos de poder. Assim, o desejo de diálogo do Vaticano II repercutiu de modo diferenciado em segmentos diferenciados de mulheres. A ausência efetiva das mulheres no processo conciliar já é problemático e compromete muito das resoluções e encaminhamentos, porque não se colocam fora do esquema de centralização, clericalização e não superam a visão estatal do Vaticano.
Sem dúvida alguma, as novas perspectivas teológicas do Concílio, de participação do laicato no culto e na ação social da Igreja, o reforço à inspiração bíblica na reflexão teológica e a abertura ao diálogo ecumênico criaram possibilidades de ação e participação mais significativas das mulheres, também no contexto latino-americano. Entretanto, somente as estruturas dentro do catolicismo romano que abriram mão do poder centralizado, clerical e estatal é que puderam radicalizar as possibilidades de encarnação: as experiências de igreja popular, as teologias da libertação, os novos modos de ser igreja, as reinvenções litúrgicas e ministeriais. Estas respostas (dimensionadas e projetadas na América Latina em Medellín e Puebla) criaram as condições de sobrevivência das teologias feministas e de práticas eclesiais inclusivas.
O movimento feminista mudou muito nos últimos 50 anos e recolocou suas questões e suas práticas. E estas oscilações interpretativas e pastorais continuam perpassando as teologias feministas, que passaram da reivindicação de igualdade entre homens e mulheres para uma reivindicação da diferença entre elas e eles, e daí para a de uma política das identidades, com o acréscimo dos deslocamentos: “do marco macrossociológico, de cunho modernista, para os estudos locais; das análises transculturais do patriarcado à complexa e histórica interação de sexo, raça e classe; de noções de uma identidade feminina ou de interesses das mulheres à instabilidade da identidade feminina, com as ativas criações e recriações das mulheres a partir de reais necessidades” (Cecília Domezi).
As três dimensões (centralização, clericalização e interferência como Estado) continuam operando de modo hegemônico na Igreja Romana em particular e nas igrejas cristãs em geral dificultando novas conversas em torno da agenda sempre atualizada das feministas. Assim, a questão dos modelos interpretativos é fundamental nos processos de revisão da história.
Eu me considero uma teóloga que – mesmo protestante – recebeu um impacto importante do Concílio Vaticano II. Minha formação teológica nos anos 1980 participou tanto dos novos modos de ser esquerda como dos novos modos do feminismo e de ser Igreja. Minha prática profundamente ecumênica – de formação e ação – me colocou em contato com religiosas e leigas católicas impactadas pelo Vaticano II, mas principalmente impactadas pela realidade comum, pelas alternativas de transformação dos modos de poder em todos os níveis e relações. Com as irmãs inseridas e com as teólogas leigas e religiosas fiz minha caminhada e foi justamente no corpo e na vida dessas irmãs companheiras que vi o melhor do Concílio Vaticano II, mas também o pior da manutenção dos esquemas de centralização e clericalização.
Mas o que movia minhas irmãs companheiras não era o Concílio como “coisa” na história da Igreja, mas o espaço de conflito que o evento representou na vida de uma cristandade que se queria una & santa & inquestionável.
O que movia e move as irmãs companheiras feministas é esta visualização do caráter provisório e histórico que o Vaticano II deixou ver na formatação pesada do catolicismo e do cristianismo ocidental. Esta “abertura” não foi concedida do alto, nem forjada pelo poder mesmo, mas revelou as pressões do mundo e suas gentes, dos pobres e das mulheres para cima de todas as estruturas de poder das elites e seus clubes exclusivos de empresários, banqueiros, bispos, maridos e patrões.
Nas palavras de Cecília Domezi, as mulheres comeram embaixo da mesa do Vaticano II, assim com na história de Jesus e da sírio-fenícia (Marcos 7). As mulheres, nestes 50 anos, tomaram estas migalhas e convidaram Jesus para debaixo da mesa, invertendo a lógica de manutenção do poder clerical de alguns homens poderosos. É essa leitura que cria as condições para “virar a mesa” na afirmação da experiência do Deus dos pobres – mulheres e homens.
Estas práticas libertadoras de viver a fé continuam insistindo na colegialidade, na opção pelos pobres (mulheres e homens) e na superação no modelo de cristandade na afirmação do Estado laico.
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>> Nancy Cardoso já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:
• Palestina e Israel: caminhos para uma paz justa. Entrevista publicada na edição número 400, de 27-08-2012.