Edição 400 | 27 Agosto 2012

“As redes de relacionamento podem constituir, elas próprias, os acontecimentos”

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Thamiris Magalhães

Hoje percebemos alguns deslocamentos com temas que emergem originalmente das redes de relacionamento. Mas a chancela do jornalismo convencional ainda concentra o estabelecimento das pautas públicas, avalia Ronaldo Henn

“O jornalismo, hoje, vive uma crise e quando uso essa palavra não estou dando a ela uma conotação necessariamente negativa”, pondera Ronaldo Henn, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para o professor, é um momento de transformação nesse redesenho de processos com coisas muito instigantes e outras completamente tolas. Ele afirma que “as redes de relacionamento produzem a possibilidade de uma conversação pública que tem um impacto imediato no jornalismo porque podem reverberar de forma instantânea e intensa os acontecimentos narrados e muitas vezes constituindo, elas próprias, os acontecimentos”. Segundo Henn, o jornalismo convencional precisa lidar com isso e o monitoramento de redes sociais vem se convertendo em atividade cada vez mais requisitada nas empresas. “Todo mundo se sente um pouco jornalista nessa onda”. Mas o jornalista, segundo o pesquisador, de fato não precisa ficar à deriva nesse momento tumultuado. “Entendo que o profissional deve ao mesmo tempo incorporar esses processos e refinar aquilo que é da sua competência fundamental: fazer a mediação social qualificada dos acontecimentos dentro de um horizonte possível de credibilidade, precisão e pluralidade”. E completa: “Gostaria de lembrar, porém, que as redes sociais não são homogêneas e não precisam ter compromissos como o jornalismo possui. E acontecem imensas tolices tanto nas redes sociais como no jornalismo”.

Ronaldo Henn é graduado em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo – pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutorado em Comunicação e Semiótica pela mesma instituição. É professor-adjunto da Unisinos e atua como pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação. Participa do GT Estudos do Jornalismo da Compós e do GP Semiótica da Comunicação da Intercom. É autor de Pauta e notícia, uma abordagem semiótica (Canoas: Ulbra, 1996) e Os fluxos da notícia (São Leopoldo: Unisinos, 2002).

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Quais as principais peculiaridades e características do jornalismo digital, que as diferenciam do tradicional? 

Ronaldo Henn – Inicialmente, é importante que se diga que o jornalismo digital ou ciberjornalismo não é uma coisa já fechada em termos de peculiaridades e características: trata-se de um processo ainda em constituição. Porém, desde o final dos anos 1990, com a popularização da internet e seus avanços, o jornalismo foi incorporando às potencialidade e ferramentas do meio, ganhando fisionomia própria com o hipertexto, a multimidialidade, a interatividade, personalização, instantaneidade e memória. Essa cena gera narrativas diferentes na medida em que há um convívio no mesmo ambiente entre textos verbais, audiovisuais, infográficos animados e interativos, jogos e uma série de situações semióticas ao mesmo tempo integradas e dispersas. E as mídias locativas com os smartfones e tablets intensificam esses processos transmidiáticos e de transnarrativas. Mas do ponto de vista do jornalismo, penso que há todo um universo de possibilidades ainda a ser explorado.

IHU On-Line – Que mudanças começam a acontecer no jornalismo e na profissão do jornalista devido ao fortalecimento das mídias digitais e das redes de relacionamento?

Ronaldo Henn – O jornalismo, hoje, vive uma crise e quando uso essa palavra não estou dando a ela uma conotação necessariamente negativa. É um momento de transformação nesse redesenho de processos com coisas muito instigantes e outras completamente tolas. As redes de relacionamento produzem a possibilidade de uma conversação pública que tem um impacto imediato no jornalismo porque podem reverberar de forma instantânea e intensa os acontecimentos narrados e muitas vezes constituindo, elas próprias, os acontecimentos. O jornalismo convencional precisa lidar com isso e o monitoramento de redes sociais vem se convertendo em atividade cada vez mais requisitada nas empresas. Todo mundo se sente um pouco jornalista nessa onda. Mas o jornalista de fato não precisa ficar à deriva nesse momento tumultuado. Entendo que o profissional deve ao mesmo tempo incorporar esses processos e refinar aquilo que é da sua competência fundamental: fazer a mediação social qualificada dos acontecimentos dentro de um horizonte possível de credibilidade, precisão e pluralidade. Gostaria de lembrar, porém, que as redes sociais não são homogêneas e não precisam ter compromissos como o jornalismo possui. E acontecem imensas tolices tanto nas redes sociais como no jornalismo.

IHU On-Line – Como podemos definir o conceito de semiose no jornalismo digital?

Ronaldo Henn – A semiose é um conceito do qual gosto muito, porque permite desenhar as produções de sentidos na sociedade. Como o jornalismo, em qualquer plataforma, é rapidamente absorvido pelas redes, os vários sentidos que dispara são materializados nessa conversação pública online. É a própria materialidade da semiose, que é uma ideia produzindo outra infinitamente, com zonas de tensões entre os nichos de sentido.

IHU On-Line – Como podemos definir a teoria do agendamento ou agenda setting? Acredita que está havendo uma mudança no jornalismo e no agendamento, proporcionada pela mídia digital e pelas redes de relacionamento? Em que aspectos?

Ronaldo Henn – Originalmente, a agenda setting  falava dos temas públicos que o jornalismo impunha à sociedade com seus critérios e enquadramentos. Tratava-se de um processo unilateral, apesar da teoria já pressupor que a maneira como esses temas eram incorporados e apropriados pelos diversos segmentos sociais possuía certa autonomia. Hoje percebemos alguns deslocamentos com temas que emergem originalmente das redes de relacionamento. Mas a chancela do jornalismo convencional ainda concentra o estabelecimento das pautas públicas.

IHU On-Line – O senhor acredita que os “consumidores de notícias” também podem se tornar agentes do agendamento? Por quê?

Ronaldo Henn – Acredito que sim e isso efetivamente vem acontecendo. Recentemente, por exemplo, o escritor Marcelo Rubens Paiva , que é cadeirante, foi “esquecido” no desembarque de um voo e postou, da própria aeronave, um pedido de socorro no Twitter. Isso virou notícia e acabou gerando uma pauta sobre os desleixos das companhias aéreas com os portadores de necessidades especiais. No ano passado, uma série de agressões a homossexuais em São Paulo foi intensamente repercutida nas redes sociais gerando pautas nos jornais sobre o problema da homofobia. Mas esse fenômeno dependerá do nível de repercussão atingido e hoje já existe gente especializando-se na produção de determinados assuntos. Então, não é simplesmente postar uma coisa e acreditar que o post evoluirá para uma pauta pública. Há uma série de contingências, algumas inesperadas.

IHU On-Line – Em seu ponto de vista, o acontecimento jornalístico, em tempos de transformações tecnológicas, está sofrendo metamorfoses e concentrando em si novos problemas? Em que sentido? 

Ronaldo Henn – Minha pesquisa atualmente trabalha com esse pressuposto. O acontecimento, ao mesmo tempo em que nos tira de uma continuidade, nos afeta em algum nível. Muito dessa experiência do acontecimento é narrada inicialmente nas redes, o que lhe confere um grau de pertinência importante. Também as mídias locativas permitem uma aproximação mais orgânica com os acontecimentos que podem ser desvendados em tons diferenciados, com outras possibilidades de fontes. O principal problema está na credibilidade, fundamental no jornalismo. O risco de boatos infundados tornarem-se notícias é muito grande e volta e meia isso acontece. O afã do instantâneo pode produzir muitas barrigas, que são notícias fakes.

IHU On-Line – Já é possível pensar em um acontecimento jornalístico que contenha a textura da rede digital? 

Ronaldo Henn – Venho defendendo essa ideia e chamo isso de ciberacontecimento. Isso pode ser pensando tanto para pautas sérias, como é o caso da homofobia a que me referi acima, como também a coisas supérfluas, tais como os virais. No começo do ano, o bordão “Menos Luiza, que está no Canadá”, que é uma bobagem, ganhou destaque em todas as plataformas jornalísticas, inclusive as de referência. São acontecimentos que só se transformam em jornalísticos por conta do nível de repercussão que conquistam na rede.

IHU On-Line – Como podemos definir o conceito de “memória midiatizada” e de que maneira ela está relacionada aos produtos midiáticos que consumimos e à prática jornalística? 

Ronaldo Henn – Os meios de comunicação também são constitutivos da nossa memória, tanto pessoal como coletiva. O jornalismo tem um protagonismo nisso na medida em que se torna fonte para a historiografia. Os enquadramentos com que o jornalismo trabalha acabam, nesse sentido, replicando no tempo. Os setores silenciados da sociedade, enquadrados via de regra de forma enviesada, têm, nesse sentido, uma construção de memória coletiva problemática. As potencialidades das mídias contemporâneas, que podem produzir formas alternativas e afirmativas para esses segmentos, talvez consigam reverter um pouco esse problema histórico.

IHU On-Line – Como avalia a afirmação de Waisbord , quando diz que uma grande porcentagem do que se fala hoje no Facebook é do que se fala nos meios e que “os meios tradicionais também definem a agenda das redes sociais”?

Ronaldo Henn – Como falei acima sobre a agenda, a chancela dos meios tradicionais ainda tem papel preponderante na definição dos temas. Mas isso não é uma coisa isolada. Esse processo convive com outro, de produção de acontecimentos a partir da rede. O que me instiga nesses movimentos são as construções de narrativas que emergem deles. Uma partida de futebol ou uma novela tradicional de TV já não são mais a mesma coisa: a gente assiste a esses programas e vai produzindo infindáveis comentários que podem ser muito ricos do ponto de vista da sua constituição. E isso é uma forma de gerar agendas. As mídias convencionais não vão desaparecer assim como os problemas decorrentes da hegemonia e da concentração empresarial dos meios de comunicação. Recomendo a leitura de um livro de Manuel Castells , Comunicação e poder, que é movido por uma pergunta fundamental: em uma sociedade em rede, onde se localiza o poder? Ele não se dissolve, mas se reconfigura. Entretanto, temos ferramentas inéditas de contrapoder ou resistência e o desafio que se coloca é como utilizá-las, tanto do ponto de vista do cidadão como do jornalista. O acesso que temos hoje às bases de dados públicas, e mesmo privadas, formam um dos aspectos importantes para o desenvolvimento de novas competências cidadãs. 

Leia mais...

Ronaldo Henn já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira: 

A violência em São Leopoldo. BR-116 é rota para operações criminosas. Edição 252 da revista IHU On-Line, de 31-03-2008; 

Perfil. Edição 368 da revista IHU On-Line, de 04-07-2011. 

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