Edição 400 | 27 Agosto 2012

Cultura judaica e brasileira. Uma síntese?

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Thamiris Magalhães

Do ponto de vista demográfico, o Censo de 2010 revela um crescimento da população judaica no Brasil, ao contrário do que se observa hoje em países vizinhos da América do Sul, notadamente Uruguai e Argentina, avaliam Monica Grin e Michel Gherman

“O Censo de 2010 representa uma espécie de maturidade do judaísmo brasileiro, pois revela a sua capacidade de renovação religiosa”, assinalam Monica Grin e Michel Gherman, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para eles, desde uma perspectiva liberal, o aumento de pessoas que se autodefinem como praticantes da religião judaica pode estar na razão direta do aumento de casamentos mistos e da necessidade de tolerância ritual a fim de incorporar os que desejam a conversão. “Nesse campo, pode-se observar o fortalecimento de referências liberais e místicas do judaísmo. Saídos das sinagogas liberais mais consolidadas, avançam interessantes sínteses entre a cultura judaica e a brasileira, misturando tradições cabalistas com referências conservativas e reformistas”, analisam.

Monica Grin é professora-associada do Departamento de História e da Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ, é mestre em Ciência Política pelo IUPERJ, mestre em História pela Brown University e doutora em Ciência Política pela também pela IUPERJ. Realizou Pós-doutorado na Universidade de Coimbra. Coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ (NIEJ). É autora, entre outros, de “Raça”: Debate Público no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad Editora, 2010). É coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS/UFRJ).

Michel Gherman possui graduação em História com licenciatura em educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestre em Antropologia e Sociologia – Hebrew University Of Jerusalem. Cursa doutorado no Programa de História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que o censo de 2010 trouxe de novidade com relação ao judaísmo e às práticas judaicas no Brasil?

Monica Grin e Michel Gherman –
Na realidade, observa-se uma variação positiva no número de adeptos do judaísmo que contam 107 mil no último censo – vejam que os números auferidos pela própria comunidade judaica não ultrapassam 90 mil judeus, a maioria em São Paulo. Essa estimativa, ademais, não se restringe à definição religiosa da identidade judaica. Outras definições de natureza social, cultural, étnica e histórica são igualmente consideradas. O que se pode observar na última década, como tendência que se confirma, é a segmentação das práticas religiosas. Há uma diversificação de práticas religiosas dentro do núcleo central das linhas religiosas presentes no Brasil (judaísmo conservador, judaísmo ortodoxo e judaísmo reformista).


IHU On-Line – Quem são os praticantes do judaísmo no Brasil? Qual o perfil das pessoas que frequentam essa religião?

Monica Grin e Michel Gherman –
De uma perspectiva sociológica, mantêm-se no Censo 2010 as características observadas em décadas anteriores. Os judeus se concentram em grandes centros urbanos, possuem alta escolaridade, renda per capita acima da média e altíssimo Índice de Desenvolvimento Humano – IDH. De modo geral, são brancos, de origem europeia e com formação superior.


‘Praticantes do judaísmo’

Aqui há uma questão a ser considerada em relação à definição “praticantes do judaísmo”. O judaísmo não pode ser considerado exclusivamente pelas suas práticas religiosas. Nesse sentido, um dos mais importantes aspectos a ser ressaltado é que aqueles que se declaram judeus ou adeptos da religião judaica não necessariamente são “praticantes do judaísmo”. Eles podem ser desde praticantes fervorosos dos preceitos da religião até judeus fortemente seculares, cuja definição identitária encontra-se na cultura, na etnicidade ou na identificação com a história do povo judeu. Organizações de natureza cultural podem ser não religiosas, ao mesmo tempo em que são judaicas. Podemos, então, acrescentar mais um dado ao perfil dos judeus em nosso país: os judeus no Brasil são basicamente brancos, urbanos, com alto nível de escolaridade e, em grande medida, não estritamente religiosos, ou seja, frequentam a sinagoga poucas vezes por ano e em situações não raro específicas – festas judaicas, casamentos, enterros, brit milá (batizado) e barmitzvá e batmitzvá (ritual de passagem à maioridade de meninos e meninas).

Em primeiro lugar, devemos considerar a questão da origem. Os judeus brasileiros, de modo geral, possuem duas origens distintas. Eles vieram basicamente do Leste europeu (ou da Alemanha, no caso dos que chegaram às vésperas da II Guerra), os chamados judeus ashkenazitas, e do Oriente médio e do norte da África, das regiões do Magrebe e do Levante, os chamados judeus sefaraditas.


Judeus sefaraditas

Os judeus sefaraditas podem ser divididos ainda em dois grupos. O primeiro deles é originário de uma imigração minoritária, decorrente de regiões afetadas pelos resultados da primeira guerra mundial, que chegam ao Brasil nos anos de 1920. Formaram instituições comunitárias nesse período, como no caso das comunidades de Manaus e de Belém. A segunda onda de imigração sefaradita, majoritária, ocorre em finais dos anos 1940 e início dos 1950. São judeus que imigram desde países como Líbano, Egito e Síria, por questões políticas também decorrentes da criação do Estado de Israel. Importante notar que estes judeus sefaraditas, de maneira geral, têm formação mais tradicional no que diz respeito à religião judaica. Os ritos religiosos e as formas tradicionais de judaísmo têm muito peso nas suas identidades judaicas, que são constituídas por elementos típicos de suas origens étnicas.


Judeus “ashkenazitas”

No que se refere à segunda origem dos judeus brasileiros, a de judeus “ashkenazitas”, temos uma imigração contínua desde os anos 1920, onde já há a formação de uma vida comunitária judaica ashkenazita. Judeus de origem polonesa, húngara e da bessarábia, enfim, das mais diversas origens europeias, desenvolvem uma vida comunitária que busca reproduzir, de maneira adaptativa, a vida judaica tal como era em seus lugares de origem. Importante notar que as identidades judaicas e suas respectivas atividades (principalmente no caso de judeus ashkenazitas), não são necessariamente religiosas, sendo algumas delas abertamente seculares. Sendo assim, ao lado de sinagogas ortodoxas ashkenazitas, que remontam a práticas originais na Europa, há também instituições judaicas de ordem não religiosa, mas culturais e políticas, que, vale dizer, também reproduzem a cultura judaica europeia. Por outro lado, os judeus alemães chegam a partir dos anos 30 e fundam instituições religiosas não ortodoxas. Os judeus alemães renovam, portanto, as instituições e rituais judaicos no Brasil, alargando o leque de possibilidades das práticas religiosas no âmbito da religiosidade judaica.

Hoje, ainda se mantém na vida comunitária judaica certa definição “étnico-cultural”. A divisão entre ashkenazitas e sefaraditas é cada vez menos destacada e observam-se hoje atividades seculares e religiosas que concentram judeus de várias origens. Do ponto de vista religioso, isso pode ser visto entre os judeus ultraortodoxos do Beit Lubaviche, que, apesar de serem claramente ashknazitas, concentram em suas atividades judeus de todas as origens em programações geralmente de ordem litúrgica e religiosa. O mesmo pode ser visto em sinagogas de origem Alemã, conservativas ou reformistas, que atraem pessoas das mais variadas origens judaicas. Há também comunidades mais renovadoras, fortemente influenciadas por práticas religiosas típicas do movimento new age, onde há um diálogo religioso entre culturas judaicas e referências religiosas típicas de tradições místicas não judaicas, a exemplo do movimento da Cabala , que ganha cada vez mais adeptos no Brasil.


Casamentos mistos

Outro importante aspecto a ser considerado é o aumento dos casamentos mistos à medida que as novas gerações se tornam cada vez mais integradas à sociedade brasileira. Em algumas comunidades, eles chegam a ultrapassar 50% de todos os casamentos comunitários e apontam para fenômenos interessantes: a flexibilidade nos casos de conversão (principalmente no que se refere às comunidades não ortodoxas) e as intensas trocas culturais que permitem e consolidam a experiência judaica no Brasil, resultando em baixa incidência de antissemitismo, no caso brasileiro.


IHU On-Line – Os dados do censo revelam um judaísmo em transformação no Brasil? No que consiste essa mudança?

Monica Grin e Michel Gherman –
O censo de 2010 representa uma espécie de maturidade do judaísmo brasileiro, pois revela a sua capacidade de renovação religiosa. Desde uma perspectiva liberal, o aumento de pessoas que se autodefinem como praticantes da religião judaica pode estar na razão direta do aumento de casamentos mistos e da necessidade de tolerância ritual a fim de incorporar os que desejam a conversão. Nesse campo, pode-se observar o fortalecimento de referências liberais e místicas do judaísmo. Saídos das sinagogas liberais mais consolidadas, no caso a CIP em São Paulo e a ARI no Rio, a Shalom e a CJB (embora essa se manifeste de forma mais restrita à conversão), avançam interessantes sínteses entre a cultura judaica e a brasileira, misturando tradições cabalistas com referências conservativas e reformistas. O rabino Nilton Bonder, no Rio de Janeiro, é um exemplo sugestivo de leituras rituais que trazem a cultura carioca, e mesmo a brasileira, para dentro da tradição judaica.


Crescimento do judaísmo ortodoxo

Entretanto, há hoje a consolidação de uma tendência, observada sobretudo desde os anos de 1980, nos grandes centros urbanos, notadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo, de crescimento do judaísmo ortodoxo. Ao longo desse período, o número de instituições ortodoxas cresce sob influência de processos de fortalecimento de dimensões religiosas conservadoras em curso tanto nos Estados Unidos como em Israel. O processo da “tshuvá” (retorno às práticas religiosas), de judeus afastados da vida religiosa judaica, vem ensejando o aumento, no Brasil, dos chamados judeus ortodoxos ou charedim, em hebraico.
Nesse processo, sinagogas ashkenazitas e sefaraditas, que mantinham práticas religiosas conservadoras e tradicionalistas, passam, de maneira gradual, a incorporar elementos do judaísmo ortodoxo em seus rituais. É o que acontece em São Paulo, onde sinagogas tradicionais iniciam uma aproximação com os movimentos ortodoxos, principalmente aqueles ligados ao grupo americano Beit Lubavitcher, que seguem os ensinamentos de uma corte hassidica (movimento místico do judaísmo), liderada pelo rabino de Lubavitche (cidade da Rússia Branca). Desde os anos de 1930, o rabino e o movimento se estabeleceram em Nova Iorque. Nos anos de 1980, a influência desse grupo começa a ser sentida na comunidade judaica de São Paulo e depois no Rio de Janeiro.

Na segunda metade dos anos de 1990, há ainda o fortalecimento de outro grupo ortodoxo entre os sefaraditas, judeus de origem oriental, em resposta ao processo de ortodoxização dos judeus ashkenazitas. Nesse caso, a influência vem do modelo do rabino Ovadia Yossef, de Israel, cuja proposta é de um judaísmo ortodoxo etnicizado, que articula o contexto da tradição sefaradita com uma liturgia estritamente ortodoxa.


Aumento da população judaica no Brasil


Do ponto de vista demográfico, o censo de 2010 revela um crescimento da população judaica no Brasil, ao contrário do que se observa hoje em países vizinhos da América do Sul, notadamente Uruguai e Argentina. O demógrafo Sérgio De La Pergola identifica na estabilização econômica e política do Brasil a razão do aumento populacional dos judeus no país.


IHU On-Line – Qual a classe social, o grau de instrução e a renda dos que frequentam o judaísmo em nosso país?

Monica Grin e Michel Gherman –
Mais uma característica entre os judeus brasileiros que pode ser verificada em outros grupos de imigrantes no país é o investimento constante na educação, nos seus diferentes níveis. Ao contrário do que qualquer análise mais essencialista pode indicar, os judeus brasileiros adotam práticas típicas das elites urbanizadas. Sendo assim, as estratégias de busca de capital cultural que encontramos entre os judeus garantem como resultado ascensão econômica e formação educacional significativas.


IHU On-Line – O judaísmo é uma religião de segmento? Por quê?

Monica Grin e Michel Gherman –
Está claro que há que se problematizar a categoria de religião quando tratamos de judeus no Brasil. Por serem parte de um grupo que contém desde indivíduos religiosos que praticam de maneira constante cultos e práticas da tradição judaica até indivíduos pouco vinculados a quaisquer elementos da tradição judaica, com perspectivas secularizadas e pouco vinculado à religiosidade, mas que se consideram judeus, passando por pessoas que têm práticas religiosas não judaicas e se consideram judias, percebemos que tal “problematização” pode responder também a questões sobre a segmentação do judaísmo.

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