Edição 399 | 20 Agosto 2012

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Márcia Junges

“Costuma-se atacar quem trabalha como nós, em defesa dos direitos humanos, como gente atrasada, ideologicamente desorientada, que atrapalha o progresso impulsionado pelo capital globalizante. Isso está acontecendo agora em Porto Alegre, com a defesa que estamos fazendo das multidões pobres afetadas pelos megaeventos da Copa do Mundo”. O desabafo é do advogado Jacques Távora Alfonsin, na entrevista que concedeu pessoalmente em seu escritório na ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, no centro de Porto Alegre. Numa manhã chuvosa, esse defensor dos direitos dos mais pobres recebeu a IHU On-Line para uma conversa informal, mas repleta de argumentação jurídica e fundamentação humana. Aluno do Ir. Antonio Cechin , no Colégio Rosário, passou a lutar pelos direitos daqueles que foram empobrecidos, alicerçado em uma inspiração evangélica que o acompanha até hoje. “Não se lida com o povo como se lida com um imóvel, ou um animal. Tem que se lidar com o povo considerando sua dignidade, sua cidadania”, destaca. Ele destaca que há uma diferença gigantesca “quando se interpreta uma lei em favor do capital, e quando se interpreta em favor das/os pobres”. Em seu ponto de vista, o bode expiatório no Brasil de hoje são os pobres. Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. É membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e publica periodicamente seus artigos nas Notícias do Dia da página do IHU. Foi nomeado membro da Comissão Estadual da Verdade Confira a entrevista.

Família – Sou casado há 48 anos com Ana Isabel. Nas pastorais sociais, comunidades eclesiais de base, creches de crianças pobres e no grupo de mulheres que compõe a chamada “mística feminina” ela é conhecida por Belinha. Sou pai de três filhas e um filho: a Verônica, psicopedagoga, dedicada à música e ao canto. Integra um coral que eu apelidei de “sol de si”, tal a luz e o som que envolve a gente quando o ouve. Deu-me um neto, Henrique; a Betânia, advogada e professora, dedicada ao estudo e à prática do Direito Urbanístico, muito conhecida no Brasil pelo que já escreveu a respeito. Deu-me uma neta, América; o Tiago, professor e amante da natureza, defensor do meio ambiente, pai do Rodrigo, meu terceiro neto; e a Raquel, atriz de teatro, muito atenta à saúde da sua mãe, a quem dedica parte dos seus dias.

Origens – Sou filho de Tapes, Rio Grande do Sul. Nasci há 73 anos, de mãe Nicolina, escrivã, e pai Severino, caixeiro viajante. Vivi minha infância à beira da Lagoa dos Patos. Como naquela época não havia escola de segundo grau onde eu pudesse estudar, vim para Porto Alegre como estudante interno do Colégio Rosário. Lá, entre outros bons professores, fui aluno do Irmão Antonio Cechin, a quem devo muito por ter-me inspirado defender os direitos humanos das/os pobres.

Procurador do Estado – Fiz vestibular para a faculdade de Direito e estudei de 1958 a 1963 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Formado, prestei concurso para a Procuradoria Geral do Estado, que na época se chamava Consultoria Geral do Estado. Nesse concurso eu podia optar por ser consultor ou assistente judiciário naqueles cargos públicos então conhecidos como advogados de ofício. Optei por ser advogado de ofício, profissional que, pago pelo Estado, trabalhava para as/os pobres. Hoje, funções como essa são desenvolvidas pela Defensoria Pública. Atuei nessa prestação de serviço de 1965 a 1975, quando passei à defesa do domínio público, dentro da mesma Procuradoria.

Ocupação vitoriosa – Em 1979, o Ir. Cecchin estava dando assistência à conquista de uma área de terra em Canoas-RS, com extensão de 42 hectares, no antigo Prado. A pessoa jurídica que mantinha a exploração da corrida de cavalos ali tinha abandonado o imóvel. Um grupo formado por mais de cem famílias, que não tinha onde morar, ocupou então aquela área. Os proprietários entraram com uma ação de reintegração de posse. O Ir. Antonio me pediu para fazer a defesa daquela multidão. A sentença nos foi desfavorável. Entramos com um recurso, endereçado ao Tribunal de Alçada do Estado – que ainda existia na época – e conseguimos modificar a decisão judicial em favor das/os moradoras/es. Foi uma das maiores vitórias que, nesse tipo de ação judicial, as/os pobres alcançaram. Em 1983, o Tribunal de Alçada julgou que o povo poderia ficar lá. Essa área deve abrigar, hoje, milhares de famílias, agora contempladas com progressiva regularização fundiária, garantida pelo Estatuto da Cidade e promovida pelo município.


Função social da propriedade, especialmente a da terra

Esse princípio constitucional está longe de merecer toda a atenção que a importância dos seus efeitos exige. Tanto nas decisões tomadas pelo poder administrativo do Estado como naquelas tomadas pelo Judiciário, ele é um dos menos lembrados nos conflitos possessórios e reivindicatórios que são levados aos tribunais. Especialmente em matéria de terra, onde eu mais atuo, a simples presença de um papel tipo registro de um imóvel em nome de um latifundiário tem sido considerada suficiente para descartar qualquer cogitação da função social do espaço titulado (por sua própria natureza indispensável à vida de todas/os e não só das/os proprietárias/os). Além de uma grande injustiça, aí se dá uma flagrante violação da lei, pois, entre outros ordenamentos jurídicos, o Estatuto da Terra, o Estatuto da Cidade e o Código Florestal só admitem que a propriedade sobre terra cumpre sua função social medindo-se o uso que está sendo feito dela em prol do bem coletivo, não havendo como, então, considerar-se uma tal obrigação cumprida, com a simples exibição de um documento comprobatório de que alguém é dono de uma fração de terra. Nem a chamada “produtividade” da terra é suficiente para que tal função seja julgada como obedecida, pois entre produtividade (em prol do bem comum ou coletivo como dizem as leis) e produtivismo, medido apenas pelo sucesso econômico de um latifúndio, que não faz da terra mais do que uma mercadoria como outra qualquer, existe uma grande diferença. O desconhecimento dessa diferença crucial é suficiente para matar um agricultor sem terra, como aconteceu com Elton Brum da Silva  em São Gabriel-RS, no ano de 2009, durante a execução de uma ordem judicial de reintegração de posse.


Multidões pobres

Alguns exemplos, todavia, parece terem vencido esse mal do quanto é ineficiente o princípio da função social na maioria das decisões administrativas e judiciais. Em 1985, durante a ocupação da Fazenda Annoni, em Sarandi-RS, as/os sem terra ficaram sabendo da ação judicial de Canoas e buscaram socorro no meu trabalho profissional. Como resultado da sua forte mobilização, que contou inclusive com o apoio de igrejas, como a Católica, do Pe. Arnildo , hoje existe naquele latifúndio um dos mais exitosos assentamentos de reforma agrária do país. A partir daí, sempre que chamado, prestei meus serviços profissionais em defesa de sem teto e de sem terra. Eu e alguns/as companheiras/os reunidos sob a Renap – Rede Nacional de Advogadas/os Populares, passamos a atuar em conjunto apoiando os direitos humanos fundamentais sociais dessas multidões pobres.


Gesto desesperado

Em 1998 houve uma ocupação de terras muito significativa em Bossoroca, RS, na Fazenda Primavera, onde as/os sem-terra obtiveram outra vitória emblemática, que deu chance a uma nova postura dos tribunais em relação a elas/eles e as/os sem teto. Isso porque, no julgamento do recurso judicial interposto pelas rés/réus da ação de reintegração de posse que tinha sido proposta contra elas/eles, o voto vencedor de uma das Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado chegou a dizer que, quando estivessem em conflito direitos patrimoniais e direitos humanos fundamentais, não havendo outra saída que não a do sacrifício de um deles, o sacrificado deveria ser o patrimonial. Isso criou uma polêmica muito grande no Rio Grande do Sul e no Brasil inteiro.
O certo é que, a partir de então, os seminários de divulgação de direitos, doutrinas, publicações de artigos, decisões judiciais passaram a lembrar esse precedente e a função social da propriedade e da posse começou a adquirir um novo apoio. Assim, ao lado de muitas derrotas, alcançamos vitórias importantes, algumas até de renovada discussão dos tribunais em relação a esse gesto desesperado que o povo faz em defesa de sua vida, dignidade e cidadania, quando ocupa latifúndios mal utilizados ou até abandonados no campo e na cidade. Sempre se via como crime qualquer gesto de ocupação de terra, urbana ou rural, por parte do povo pobre. E por incrível que possa parecer, a reforma que se pretende no novo Código Penal irá colocar esse gesto de desespero de gente faminta e sem teto, como ato de terrorismo. Se isso passar no Congresso, assistiremos um retrocesso extraordinário em matéria de tratamento dos conflitos sociais ligados a terra.
E agora está chegando também a modificação do Código Florestal. Por mais que a presidente Dilma Roussef tenha vetado uma série de dispositivos, a tendência do Congresso Nacional, sabidamente fiel à bancada ruralista, é de manter uma reforma que vai depredar nossa natureza, vai atacar nossos mananciais, tratando a terra como uma coisa de proprietário, somente, desconsiderando o fato de ser ela um bem garante de sustento e vida de todo o povo.


Trabalho com o povo

É claro que ainda estamos muito longe, seja por parte das/os juristas, seja das/os advogadas/os e juízas/es, de termos uma visão hierárquica dos direitos humanos exercendo preferência junto aos direitos patrimoniais. Por isso eu valorizo tanto aquele acórdão de uma Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no caso da Fazenda Primavera, em Bossoroca.
Conflitos sociais como aquele, que sempre terminam em juízo, levaram minha filha Betânia, em 1996, a sugerir a criação, aqui em Porto Alegre, da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, que se dedica, com a assessoria jurídica popular que presta às/aos pobres, à divulgação de seus direitos, por cartilhas e artigos em livros e redes sociais, de forma a fazer com que todo o fato ocorrido, seja na administração pública, no Legislativo ou no Judiciário, merecendo uma análise técnica, acadêmica ou com repercussão universitária, possa ser traduzido em linguagem acessível para esse mesmo povo. A Acesso não foi criada para trabalhar para o povo, mas sim com o povo. E isso tem clara inspiração na Teologia da Libertação . Nosso trabalho sempre teve uma grande inspiração evangélica. Estabelecemos um diálogo com pastorais sociais, outras ONGs, sindicatos, partidos políticos, movimentos populares de perfil assemelhado ao do MST.
 

Resistência popular

Costuma-se atacar quem trabalha como nós, em defesa dos direitos humanos, como gente atrasada, ideologicamente desorientada, que atrapalha o progresso impulsionado pelo capital globalizante. Isso está acontecendo agora em Porto Alegre, com a defesa que estamos fazendo das multidões pobres afetadas pelos megaeventos da Copa do Mundo. Estamos trabalhando em três áreas de Porto Alegre em que tais “investimentos” ameaçam seriamente o direito de moradia de milhares de famílias: no Morro Santa Teresa, na divisa Cristal e Tronco e na cabeceira do aeroporto, na chamada Vila Floresta. Sobre o que está acontecendo nesses locais, a mídia mostra que Porto Alegre irá viver uma verdadeira mudança para melhor em sua estrutura urbana. E pouco ou nada se fala a respeito do prejuízo que isso irá acarretar para as famílias que terão de ser transferidas do local onde residem, algumas há décadas.

Felizmente, o povo está obtendo algumas vitórias significativas nessa conjuntura jurídica. Por exemplo, uma área imóvel da Fase, situada no Morro Santa Tereza, na frente do estádio Beira-Rio, onde serão realizados alguns jogos da Copa, foi objeto de querela na administração do governo do estado que precedeu a atual, pois ela desejava vender ou trocar a mesma área. Para essa alienação de 75 hectares oferecia-se a justificava de obter recursos capazes de custear a descentralização da Fase. Nada contra descentralizar aquela unidade de prestação de serviço e humanizar a pena de crianças e adolescentes julgadas/os infratores. A Fase precisa disso, mas não à custa de moradia de pessoas que ali habitam. E o povo teve uma reação espetacular. Reuniu-se em assembleia no auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa e, na presença dos representantes do poder público de então, manifestou sua firme disposição de resistir. O governo viu-se compelido a abandonar a infeliz ideia. Esse exemplo está sendo seguido pela população das três áreas a que fiz referência, nas quais se acredita que nada ocorrerá sem sua audiência e respeito aos seus direitos como, aliás, determina expressamente o Estatuto da Cidade.


Tendência mercadológica

Quando há disposições legais que são favoráveis aos pobres, é preciso que elas sejam tão ou mais respeitadas do que quando defendem o direito patrimonial. Porque não é possível que  esse mesmo Estatuto da Cidade, que prevê em seu artigo 2º, inciso XIII, a obrigatoriedade de a população residente em área urbana afetada por intervenção pública, ser ouvida, prossiga sendo desrespeitado. Não se lida com o povo como se lida com um imóvel, ou um animal. Tem que se lidar com o povo considerando sua dignidade, sua cidadania. E há, ainda, muitas outras disposições, como a Lei Orgânica do Município, a Constituição do Estado, a Constituição Federal, a Medida Provisória 2220 reconhecendo direitos a essas multidões pobres. Todas essas leis são simplesmente ignoradas sempre que o poder público pensa lidar com o destino do povo como se esse nada tivesse a dizer. O maior desafio que o Direito enfrenta é o de garantir o exercício dos direitos humanos fundamentais sociais, previstos no Art. 6º da Constituição Federal. Alimentação, moradia, saúde, educação, transporte, segurança, lazer, trabalho, previdência social, são direitos que dependem da ação, e não da omissão do poder público. Entretanto, muito frequentemente são apagados e escondidos como inexistentes, quando entram em conflito com essa tendência mercadológica do tipo transformação da terra em pura mercadoria, como se um bem dessa espécie não constituísse fonte de vida para todas/os.


Efeitos dos golpes de estado sobre o povo e sua dignidade

O episódio de deposição do presidente Lugo repete, no Paraguai, o que já aconteceu no Brasil. Qualquer representante do poder público que se atreve a mexer no problema da terra, como ocorreu com Brizola e Jango, é confrontado pelos “terra-tenentes” que, com o poder extraordinário que têm nas mãos, imediatamente, sem respeito ao direito de defesa, tomam o poder. Lugo foi julgado em menos de 48 horas, sem condição de defesa de qualquer tipo. E isso tudo sob uma capa de constitucionalidade. Aí se passa a impressão de que a soberania do povo paraguaio foi respeitada porque o Parlamento votou esse golpe. Há uma clara diferença quando se interpreta uma lei em favor do capital, e quando se interpreta em favor das/os pobres. O assim chamado “devido processo legal” sofre de uma discriminação histórica quando tramita tendo o pobre como investigado. Quase como regra ele é julgado como tendo desrespeitado esse tipo de processo. Quando é a representação do capital, todavia, que é posta sob suspeita, ultrapassa-se qualquer formalidade, como aconteceu no Paraguai. A reforma agrária lá pretendida por Lugo colocava essa representação no banco dos réus. Deu no que deu.
Nossa Constituição Federal em seu artigo primeiro afirma que o povo é soberano, como afirmava também a que estava em vigor quando Jango foi deposto. Ao que se saiba, o mesmo preveem as constituições dos demais países, inclusive os da América Latina. Um golpe de Estado, portanto, é uma clara violação desse princípio-direito, mas todas as ditaduras latino-americanas de fins do século passado condenaram-no, pela força, a letra morta e votaram constituições autoproclamadas como democráticas.

A necessidade de se reagir contra tal hipocrisia tem muito a ver com o nível de conscientização de todo o povo da América Latina, a “pátria grande”, como a denomina de forma certeira Dom Pedro Casaldáliga . E muito a ver com democracias como a nossa, quando esse regime se satisfaz apenas com as aparências do que sejam garantias de um direito efetivamente emancipatório. A Igreja, especialmente a partir das Conferências de Medellín e Puebla, fez toda uma autoanálise do seu trabalho e, pelo menos nos documentos relativos às suas conclusões, tomou posição em favor das/os pobres sempre que esse fingimento se exibe como legítimo. É preciso que se atente muito para esse fato, valorizando as relações que o direito mantém com a moral, sem respeito das quais a corrupção política se torna endêmica, fiel a quem tem poder econômico para mandar sem aparecer. A dignidade humana não é uma coisa a ser atribuída pelos outros a cada pessoa. É algo a ser reconhecido, é intrínseco, inerente a cada ser humano. O paradigma do respeito devido a sua presença na lei, então, não pode nem deve ser o mesmo que trata dos direitos patrimoniais.


Dilma e a reforma agrária

Confesso minha admiração pelas medidas do governo na área social, com a criação de políticas compensatórias como foi a do Fome Zero, como é a do o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida. Penso constituírem-se em políticas públicas emergenciais e necessárias, diante da pobreza e da miséria de milhões de brasileiras/os. Em matéria de reforma agrária, porém, o atraso na sua execução é inaceitável. Há um esvaziamento notável do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, para o qual faltam mínimas condições de cumprir a missão que lhe foi confiada. Como todo o povo sem terra do país, estou muito decepcionado com o poder Executivo da União. O Incra está completamente sucateado. A procuradoria jurídica desse órgão, no Rio Grande do Sul, por exemplo, está muito desfalcada. Gente que trabalhava com as desapropriações de imóveis rurais foi deslocada para a Advocacia Geral da União – AGU, e “gente histórica”, diga-se de passagem, que estava aí há anos. A impressão que se retira disso, pelo menos à vista do que acontece no Rio Grande do Sul, é que os direitos humanos fundamentais dos sem-terra não são considerados prioridade pelo governo Dilma.


A economia solidária criminalizada por ser diferente da capitalista

Desde que o Fórum Social Mundial ocupou Porto Alegre pela primeira vez, o empenho por “um outro mundo possível” passou a defender uma economia solidária bem diferente da capitalista. Proposta defendida por movimentos sociais da mais variada espécie, lutando em favor de uma justiça social efetivamente distributiva, tem atraído para eles condenação irada, deboche e violência repressiva. O pior é que, em nome de uma certa governabilidade, mantém-se um grau de intervenção pública na terra que não fira a conveniência e a suscetibilidade dos “terra-tenentes”, como os latifundiários são chamados na América Latina, Daí a uma criminalização generalizada dos movimentos sociais vai um passo apenas, pois o avanço de transnacionais sobre o território do país não tem como prioridade saciar a fome do povo, respeitar a biodiversidade e o meio ambiente defendidos por aquelas organizações populares. Assim que elas tomam pé, toda a reação contrária é vista como crime. MST, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Movimento dos Pequenos Proprietários – MPA, Movimento das Mulheres Camponesas – MMC, Comissão Pastoral da Terra – CPT e outras organizações do povo veem seus integrantes comparecendo aos tribunais para responder por qualquer atitude que tenham tomado contra essa – aí sim – invasão estrangeira. Assim como os indígenas e os quilombolas, aquela gente toda ainda sofre um patrulhamento e uma crítica severa de grande parte da mídia financiada por esse tipo de capital.

Há um autor português que nos visita regularmente e a quem admiro muito, Boaventura de Sousa Santos , que afirma criar-se em relação a esse povo a “sociologia das ausências”, uma espécie de cortina capaz de separá-lo a ponto de ser considerado inexistente. Daí a dificuldade de se aceitar tal conjuntura, ainda mais sabendo-se ser esse mesmo povo pobre que nos alimenta, retirando nosso pão da pequena propriedade familiar. Às vezes, não consegue cobrir nem o custo da sua produção. Essa realidade não tem passado despercebida pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado, nem quanto o governo do estado que o tem ouvido, a respeito – isso é necessário reconhecer – quer valorizar a economia solidária e a as pequenas propriedades rurais. Os seminários que estão sendo realizados no interior do Estado, para audiência direta de seus proprietários e discussão das soluções possíveis para os seus problemas, a atenção às cooperativas, especialmente as pequenas, inclusive as que fornecem energia, as medidas do RS mais igual e do RS mais renda, o apoio às obras e serviços indispensáveis à melhoria das condições de vida das famílias assentadas pela reforma agrária testemunham esse esforço.


A necessidade de se criar um bode expiatório

O bode expiatório de hoje, no Brasil, é a/o pobre. René Girard , examinando vários episódios historiados na Bíblia, mostra como a violência presente no comportamento de alguém precisa de um bode expiatório no qual possa descarregar todo o peso da má consciência que tenha sobre sua própria responsabilidade nas relações sociais que estabelece. Então, tudo aquilo que não queremos enfrentar, como é o caso da eficácia dos direitos humanos em favor das/os pobres, precisa encontrar uma motivação que crie um juízo de valor negativo contra elas/eles. Aí, ele é marcado socialmente como mau, viciado, bêbado, vagabundo e preguiçoso. É evidente que existem pessoas aproveitadoras no meio dos mais pobres – mas isso existe em todas as classes sociais. Paulo Freire , como se sabe, ensina que o opressor mora dentro do oprimido, o que nos ajuda a compreender a atitude de muita gente, não só a das pessoas carentes. Daí a se esconder o quanto a estrutura de opressão é geradora de pobreza prova em que extensão a realidade social pode ser manipulada, a ponto de se admitir pobreza e miséria como coisa “normal”. Entretanto – nem há novidade nisso – com raras exceções, o pobre não é pobre, ele é empobrecido por força de todo o modo de produção capitalista que temos, indiferente ao respeito devido às pessoas e à natureza.

Constitui álibi oportunista contra essa constatação sociológica o argumento segundo o qual a economia socialista é pior. Será? Se o bode está aqui ou lá, o que parece indispensável é afastar-se uma saída escapista que pode estar na base dessa discussão e partir-se para um modelo de economia solidária como aquele proposto pelo Fórum Social Mundial.


Juiz, um servidor público

Quando insisto em relembrar o conflito histórico que se repete entre direitos humanos fundamentais e direitos patrimoniais, falo sobre a dificuldade que os primeiros têm, novamente em questões relacionadas com a terra, em se valer do Judiciário. Em geral, a/o pobre conhece a/o delegada/o de polícia, mas não conhece o/a juiz/a, pois este/a, exceções à parte, muitas vezes entende o exercício do poder próprio da autoridade como aquele que deve manter distância do povo. Não faltam reações contra esse tipo de atitude. Militantes de defesa dos direitos humanos, movimentos organizados sob ideários emancipatórios do tipo “direito alternativo”, e “direito achado na rua”, entre outros, com críticas fundamentadas, especialmente endereçadas ao positivismo jurídico, mesmo desconsiderados por juristas de nomeada, empenham-se em mudar esse tipo de postura. Graças a eles, entretanto, boa parte de juízas/es começa a se dar conta de que alguns paradigmas de interpretação dos fatos, das leis e do direito estão viciados por uma cultura jurídica de opressão e preservação de injustiça social, que pode ser vencida. O direito achado na rua , por exemplo, a partir da Universidade de Brasília, graças ao apoio que recebe do seu reitor José Geraldo de Souza Jr. , conta com divulgação e capilaridade capaz de ouvir e defender vítimas de injustiças históricas, aprofundar estudos sobre assessoria jurídica popular, estabelecer um diálogo crítico com toda a sociedade, identificar causas de desigualdade social disfarçadas em leis interpretadas como justas, mas de aplicação injusta. Sempre que o/a juiz/a não toma consciência de que o argumento de autoridade não pode substituir a autoridade do argumento, acaba por trair a própria razão de ser do serviço que deve ao povo.

Friedrich Miller escreveu um livro a que deu o título de Quem é o povo, no qual ele mostra que grande parte das decisões judiciais se inspira em posições hermenêuticas que obedecem não aos códigos, mas a um “metacódigo”, algo que está acima deles, uma cultura dominante, ideologicamente acomodada para “não se envolver”, frequentemente preconceituosa. Não há dúvida de que a/o pobre é uma vítima costumeira desse tipo de decisões.


Acerto de contas com o passado

Em função da delimitação dada à Comissão da Verdade, pela lei que a criou, ela pode pouco. Por isso estão sendo criadas em cada estado comissões semelhantes, como já aconteceu aqui no Rio Grande do Sul, visando empoderar a capacidade de investigação e de responsabilização das pessoas que patrocinaram as atrocidades praticadas durante a ditadura. As próprias vítimas daquele regime estão se organizando para isso, mas passados tantos anos desde a prática daqueles crimes, esperava-se mais. A Comissão de Anistia com as indenizações que já determinou pagar tem dado às famílias dos desaparecidos e mortos pelo regime militar ao menos algum sinal de que o país lhes deve desculpas pelos males que praticou. Os países vizinhos ao Brasil já acertaram as contas com seu passado. Nós ainda não. Manter nomes de ditadores em logradouros públicos e outras homenagens desse tipo, por exemplo, só contribui para acentuar essa vergonha. É difícil se encontrar algum monumento que valorize quem reagiu contra a opressão. A história vai mantendo, assim, um perfil oficialista de apoio à violência praticada no passado.


Monocultivo do eucalipto

A pretexto de se estimular a silvicultura, o bioma Pampa  está sendo invadido pelo eucalipto e o papel da árvore substituído pela árvore capaz de se transformar em papel. Biólogos e agrônomos advertem ser esse bioma único no mundo. Isso tem sido desconsiderado por grupos econômicos transnacionais, empenhados em montar empresas gigantescas, de fachada, passando por ser brasileiras e assim burlando as leis que defendem nossas áreas de fronteira. Tramitam projetos de lei no Congresso nacional visando até diminuir o tamanho da faixa de fronteira, para que empreendimentos desse tipo possam eliminar toda a biodiversidade ali presente. Isso mostra o quanto a soberania do povo é obrigada a ceder diante do interesse mercantil dessas transnacionais como a Aracruz, a Stora Enzo e a Votorantim.


Decepção

Não se pode negar que há um progressivo descrédito da sociedade civil na política e nos políticos. Por mais que os programas dos partidos se digam fiéis à democracia, às ações em defesa da cidadania e da dignidade humana, na prática a disputa do poder pelo poder faz esquecer esse ideário. Em época de eleição, essa distorção se acentua de maneira inaceitável. Em nome da vitória, assiste-se a uma promiscuidade de alianças as mais inconcebíveis entre partidos de programas diferentes e até contrários entre si. Quando um partido político vive em função somente da eleição, em vez de ajudar, ele só atrapalha o eleitorado. Divide e separa o povo não em função dos seus direitos e dos seus interesses, mas sim de conveniências casuísticas e temporárias que, amanhã, vão mudar de novo. Nisso desfaz instâncias históricas construídas por outras organizações populares. Aliás, o apetite que demonstra para “faturar” alguma conquista popular assemelha-se a uma verdadeira apropriação indébita. Não por acaso, a demora em se dar andamento, no Congresso Nacional, às leis indispensáveis para uma reforma política comprova a resistência mantida por tais vícios. Felizmente, existem valiosas exceções a tal tipo de comportamento, como aquela de a/o eleita/o tratar o seu mandato como imperativo, prestando contas periodicamente ao seu eleitorado quanto àquilo que está fazendo ou deixando de fazer em seu favor.


Autores favoritos

Devo muito a autores que, direta ou indiretamente, me ajudam a prestar os meus serviços profissionais. Do ponto de vista estritamente jurídico, me inspiram de modo particular as/os advogadas/os e juristas que sofreram na época do regime militar e que não cederam um centímetro na defesa dos direitos humanos, desde Raymundo Faoro, Fábio Konder Comparato, Hélio Bicudo, Dalmo Dallari. Aprendo muito com gente aqui do Estado. Ernildo Stein, Lenio Streck (a quem devo a orientação na minha dissertação de mestrado), Eugenio Facchini Neto, Ingo Wolfgang Sarlet, Rui Portanova, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, José Carlos Moreira da Silva Filho, Tarso Genro, Ruy Rosado de Aguiar Junior, Betânia de Moraes Alfonsin, entre outras/os, publicaram livros e artigos que servem de sólido apoio para o meu trabalho. Dos que já faleceram, não posso deixar de lembrar Ruy Cirne Lima, Ovidio Araujo Baptista da Silva e Ernani Maria Fiori.

Leio e aprendo muito também com autores de outros estados dedicados não só ao direito como à filosofia, à sociologia e à ética. Lembro João Baptista Herkenhoff, José Geraldo de Sousa Junior, Carlos Frederico Marés, Luiz Edson Fachin, José Eduardo Faria, José Reinaldo de Lima Lopes, Paulo Bonavides. Dos estrangeiros, dou muita atenção à obra de Boaventura de Sousa Santos, José Joaquim Gomes Canotilho, Peter Haberle, Antonio Castanheira Neves, Norberto Bobbio, Stefano Rodota, Luigi Ferrajoli, Pietro Barcelona, Pietro Perlingieri, Maria José Añon Roig, Agnes Heller, Hannah Arendt, Juan Ramon Capella. Leituras que dão valiosa sustentação aos direitos humanos são as dos teólogos da chamada teologia da libertação, como, entre outros, os irmãos Boff, Frei Betto, Gustavo Gutiérrez, Oscar Romero, Pedro Casaldaliga, Tomás Balduino, Inacio Ellacuría, Jon Sobrino, Luiz Carlos Susin, José Comblin, Enrique Dussel, José Antonio Pagola, Carlos Mesters e Jung Mo Sung.
 


Leia mais

Confira outras entrevistas concedidas por Jacques Távora Alfonsin à IHU On-Line:

* Código Penal e a justiça social. Entrevista com Jacques Távora Alfonsin. Notícias do Dia 07-08-2012

* Plano de Sustentabilidade Financeira. A proposta de Tarso Genro. Entrevista especial com Jacques Alfonsín. Notícias do Dia 07-06-2011

* Da sociedade para o governo: os caminhos do Conselhão do Tarso. Entrevista especial com Jacques Alfonsin. Notícias do Dia 04-02-2011

* Reforma agrária e limitação da propriedade: requisitos para justiça no campo. Entrevista especial com Jacques Alfonsin. Notícias do Dia 16-08-2010

* Violência contra os movimentos sociais. Entrevista especial com Jacques Alfonsin. Notícias do Dia 20-02-2009

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