Edição 399 | 20 Agosto 2012

Um filósofo, culturólogo e comunicólogo

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Thamiris Magalhães

Flusser se revela cada vez mais um pensador pioneiro dos novos e surpreendentes desenvolvimentos culturais e comunicacionais do século XXI, admite Norval Baitello Junior

“O pensamento de Flusser poderia ser visto a partir de três modos de olhar, ou em grandes rubricas, em minha opinião: o comunicológico, o culturológico e o filosófico”, afirma o professor Norval Baitello Junior, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, esta é sua principal riqueza para os estudos da comunicação, trazendo reflexão e fundamentação multidisciplinares para objetos tipicamente comunicacionais como o livro, a escrita, o gesto, a fotografia, a televisão, as imagens, as chamadas tecnoimagens etc.

Norval Baitello Junior concluiu o doutorado em Comunicação na Freie Universität Berlin em 1987. Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, atuando na pós-graduação em Comunicação e Semiótica. Foi diretor da Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP e professor-convidado das Universidades de Viena, Sevilha, São Petersburgo, Autónoma de Barcelona e Évora. Fundou e dirige o Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia – CISC desde 1992. Seus livros mais recentes são A serpente, a maçã e o holograma (Paulus, 2010), La Era de la iconofagia (Sevilha, 2008) e Flussers Völlerei (Köln, 2007). Desde 2007 é coordenador da área de Comunicação e Ciências da Informação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. 

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Em sua opinião, quais são os conceitos-chave para a compreensão do pensamento de Flusser?

Norval Baitello Junior – Como pensador complexo e pioneiro em suas reflexões sobre a nova ordenação midiática do mundo por meio da crescente e onipresente tecnologia, não é fácil resumi-lo em poucas palavras. Ele escreveu muito e em muitos formatos (desde os textos curtíssimos publicados em jornais até os livros, quase tratados, como A escrita, Historia do Diabo, Língua e realidade, Gestos, Filosofia da caixa preta, Vampyrotheutis infernalis, ou seus dois livros inacabados, apenas em alemão, Do sujeito ao projeto e hominização). Além disso, abordou múltiplos temas (desde a cidade, o design, a meditação, os moluscos, o corpo, a pele, o tempo, o espaço, os brasileiros, até a holografia, as imagens, o consumo, o feminino, a arqueologia, a casa, as religiões, os mitos antigos e os modernos e muitíssimos outros temas). 

Criatividade

O que sempre chama a atenção em seus textos é o ponto de vista sempre surpreendente, como quem prepara um bote aos seus leitores, um assalto relâmpago, oferecendo olhares imprevistos, mostrando a face surpreendente de objetos aparentemente banais. Em suma, é um pensador sempre preparado para dar um bote por meio de seus textos, mas um bote que enriquece os leitores com novas descobertas, novas associações, estimula o pensar criativo, liberto dos parâmetros rígidos da ciência compartimentada e disciplinar.

Assim, são muitas suas contribuições para o pensamento contemporâneo, sobretudo como um pioneiro de uma área que hoje se torna imperativa, uma teoria das mediações ou teoria dos meios (ou da mídia). Ou, quando estudado dentro de outras molduras disciplinares, mas com olhar transversal, como pioneiro da filosofia da mídia.

IHU On-Line – Poderia destacar sua importância para as ciências da comunicação?

Norval Baitello Junior – O pensamento de Flusser poderia ser visto a partir de três modos de olhar, ou em grandes rubricas, em minha opinião: o comunicológico, o culturológico e o filosófico. Está aí sua principal riqueza para os estudos da comunicação, trazendo reflexão e fundamentação multidisciplinares para objetos tipicamente comunicacionais como o livro, a escrita, o gesto, a fotografia, a televisão, as imagens, as chamadas tecnoimagens etc.

IHU On-Line – Quais são as três catástrofes às quais Flusser se refere e o que elas representam?

Norval Baitello Junior – Esta curiosa periodização da história humana, em três grandes catástrofes, foi apresentada por Vilém Flusser pela primeira vez em um dos simpósios da série denominada Kornhaus-Seminare (Seminários do Celeiro) na aldeia alemã de Weiler, a convite do comunicólogo e jornalista alemão Harry Pross  (este também um pioneiro na proposição de uma teoria da mídia, já na década de 1970), com a presença de Abraham Moles  , Vicente Romano, Lev Koppelev , entre outros. O tema do simpósio, naquele ano do final da década de 1980, era o “Euronomadismo”. Foi depois publicado em um livro seu, denominado Medienkultur (Cultura dos meios), que ele infelizmente não teve tempo de traduzir para o português, como fazia com suas outras obras. 

As catástrofes

Flusser afirmava que a espécie humana foi gerada por três grandes catástrofes. A primeira, chamada hominização, foi provocada pela descida do primata arborícola às savanas, onde ele adquiriu o andar ereto e bípede e se tornou um incansável nômade. A segunda catástrofe, a civilização, foi trazida pelo assentamento em moradias fixas que possibilitou a criação e a posse de animais e terras. A terceira catástrofe começa a ocorrer e não tem ainda nome. Caracteriza-se pelas moradias que se tornam inabitáveis, pois estão perfuradas e são invadidas pelo furacão da mídia.

A primeira catástrofe foi pautada pelo verbo fahren (deslocar-se, em alemão) e trouxe ao homem o desenvolvimento do erfahren (ficar sabendo, experienciar, em alemão).

A segunda foi pautada pelo sitzen (estar sentado) e trouxe consigo o besitzen (possuir). A terceira, ainda inominada, está apenas começando, mas já prenuncia um retorno a algum tipo de nomadismo, pois este é constitutivo do humano, mas possivelmente por meios virtuais.

IHU On-Line – Qual é a peculiaridade da arqueologia realizada por Flusser?

Norval Baitello Junior – Um dos mais instigantes movimentos de seu pensamento é o diagnóstico da emergência das ciências arqueológicas, aquelas que escavam as camadas soterradas do pensamento humano. Dentre elas, inclui-se a própria arqueologia, a história, a psicanálise, a etimologia, a ecologia. São ciências preservacionistas. Por assim dizer, buscam o sentido prospectivo no sentido retrospectivo.

IHU On-Line – No momento, como se desenvolve a pesquisa sobre Flusser no Brasil?

Norval Baitello Junior – Um número crescente de pesquisadores começa a estudar Flusser em sua complexidade, ou seja, não mais apenas focados em sua obra mais conhecida e traduzida pelo mundo afora, A filosofia da caixa preta, que na versão alemã se chama Por uma filosofia da fotografia. Há um imenso campo ainda por ser descoberto e estudado. Por exemplo, seus cursos dados nos anos 1960 em São Paulo (às vezes cursos ministrados em seu terraço, apenas para os jovens colegas de seus filhos) foram todos sistematicamente escritos e estão preservados na íntegra e ainda não publicados. Estimamos que uma parcela equivalente a 90% da obra de Flusser não está ainda publicada. Este material se encontra hoje em Berlim, no Arquivo Flusser, na Universidade das Artes. 

Novidade

Nosso Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia – CISC, com o apoio do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, fechou um acordo com a Universidade das Artes de Berlim e estará instalando no Campus Ipiranga da referida universidade brasileira um arquivo-espelho, uma réplica de todos os documentos do arquivo berlinense, algo como trinta mil páginas datilografadas com todos os seus escritos, textos, aulas, correspondências, conferências, publicados e não publicados. Será um facilitador para todos os pesquisadores brasileiros e latino-americanos que queiram pesquisar Vilém Flusser. E será uma forma de iniciarmos o movimento de resgate do pensamento flusseriano no Brasil, como um tributo a um dos mais conhecidos pensadores brasileiros no mundo, uma vez que ele próprio se apresentava, em seu exílio europeu, como um brasileiro. Um filósofo, culturólogo e comunicólogo que se revela cada vez mais um pensador pioneiro dos novos e surpreendentes desenvolvimentos culturais e comunicacionais do século XXI. 

Leia mais...

>> Norval Baitello Junior já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

* “Estudar a história dos tempos profundos da imagem significa também buscar raízes da própria escrita”. Entrevista publicada na IHU On-Line, número 375, de 03-10-2011.

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