Edição 399 | 20 Agosto 2012

No além das máquinas

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Vilém Flusser

Publicamos nesta edição dois textos inéditos de Vilém Flusser, enviados pelo professor Siegfried Zielinski, a quem agradecemos. Os artigos originais, bem como seus direitos autorais, são do Arquivo Flusser, localizado na Universidade de Arte, em Berlin. O primeiro texto, intitulado “No além das máquinas”, segue abaixo. O segundo, “Modelos do corpo humano”, segue ao final deste tema de capa, logo após a entrevista de Rodrigo Duarte.

No além das máquinas

(Para o engenheiro Milton Vargas)

Vilém Flusser e Milton Vargas se correspondiam regularmente e Flusser escrevia ensaios especialmente para o amigo, mesmo sem a intenção de publicá-los. 

 

Para poder-se trabalhar, é preciso supor que o mundo não é como deve ser, e que é possível muda-lo. Tais pressupostos são problemas. Do problema como o mundo é trata a ontologia, do problema como dever trata a deontologia, e do problema como pode ser mudado trata a técnica. Os problemas se engrenam. Não tem sentido dizer que o mundo é como dever, se não se sabe como ele é: nenhuma deontologia sem ontologia. Nem dizê-lo se não se sabe como o mundo deve ser: nenhuma ontologia sem deontologia. Negar que o mundo é como deve ser não tem sentido sem saber que pode ser mudado: sem técnica nem ontologia nem deontologia. Tampouco tem sentido considerar a modificabilidade do mundo se não se sabe que o mundo não é como deve ser: nenhuma técnica sem ontologia e deontologia.

“Originalmente” (isto é, desde que há gente que trabalho), não se distinguia entre os três aspectos do trabalho. O lado ontológico, deontológico e técnico da magia pode ser visto por nós, mas não pelo mágico. Mas uma vez vislumbrada a distinção tripartite, surge um problema de segunda ordem: o da relação entre os três aspectos. A história de tal problema secundário (que é a história da humanidade) é esta: na primeira fase da distinção o interesse se concentra sobre o alvo do trabalho, o “dever-ser” do mundo. Isto é, trabalha-se eticamente, moralmente, religiosamente, politicamente, de “boa fé”, em suma: praticamente. Na segunda fase alguns homens se concentram sobre o ser do mundo que se revela sob trabalho. Assim surge o trabalho epistemológico, científico, experimental, “sem fé”, em suma: trabalha-se, também, teoricamente. Na terceira fase o interesse se concentra sempre mais sobre o método do trabalho, e o trabalho tende a ser seu próprio propósito. Surge o trabalho funcional, técnico, programado, crono e organigrafado, de “má fé”, em suma: tende-se a trabalhar eficientemente. Na primeira fase predominam questões finais, “para quê?”; na segunda questões causais, “por quê?”; na terceira questões formais, “como?”. Há, pois, três modelos históricos do trabalho: o do revolucionário engajado, o do cientista pesquisador, e o do funcionário tecnocrata.

A maioria da humanidade não trabalha. Serve de instrumento para o trabalho de outrem. Em tal alienação não está interessada nem em epistemologia, nem em ética, nem em metodologia. Não quer saber nem como o mudo é, nem como deve ser, e a ideia de querer mudar o mundo não lhe ocorre. A maioria da humanidade participa da história passivamente: sofre. E a minoria que trabalha é simultaneamente revolucionária, científica e tecnocrática, porque todo tipo de trabalho envolve todos os demais. Os três modelos não são jamais realizados em sua pureza. A divisão proposta da história não passa de esquema. Mas de esquema útil. Permite lançar luz específica sobre a dita “crise dos valores”.

Porque permite lançar a seguinte tese: na pré-história, durante a dominação do trabalho mágico, os valores não podiam ser questionados. Durante o trabalho engajado a questão dos valores predomina. Durante o trabalho-pesquisa a questão dos valores é suspensa. E durante o trabalho funcional a questão dos valores não tem sentido. Tal tese merece atenção, mas exige consideração prealável: “valor” é medida do dever-ser, e há várias escalas de valores, por exemplo, os de “uso”, de “troca”, os “simbólicos” etc. Isto é, “valor” é conceito codificado. Uma tendência biologizante do século passado sustentava que os homens trabalhavam para “satisfazer suas necessidades”, tal tese passou a ser o “senso comum” da atualidade. (“Senso comum” é raciocínio em base de preconceitos relativamente recentes.) A tese biologizante é insustentável. As “necessidades” humanas são definíveis apenas em nível biológico, e animais não trabalham. A renda per capita no Tchad é $ 80.– por ano, o que satisfaz as necessidades, já que os chadianos vivem. A renda per capita na Suíça é de $ 8.780.– por ano, o que não satisfaz as necessidades, já que os suíços procuram aumentá-la. Em suma, a meta do trabalho não é satisfazer uma necessidade biológica, mas realizar um valor codificado, um “dever-ser” inserido em determinada escala. Porque trabalho é movimento natural, mas gesto codificado (cultura).

Na pré-história mágica a questão dos valores não pode ser posta, porque, para poder medir, é preciso estar-se do lado de fora do objeto a ser medido. Mas o dever-ser a ser medido pervade, durante a época mágica, tanto o mundo trabalhado quanto o homem que o trabalha. Homem e mundo estão plenos do dever-ser, de “deuses”, e mundo e homem são governados pelas regras da ética, as “leis” da recriminação, do tabu, do “pecado”. A questão que domina em tal situação não pode ser “que devo fazer?” (questão do valor), mas “que acontece se não faço o que devo fazer?” (questão da punição). Os valores não podem ser duvidados, não há distância para tanto. Não estão por cima, ou dentro, ou diante do homem, mas o homem está neles. Toda a dúvida se concentra sobre a infração dos valores indubitáveis.

A questão “que devo fazer?” surge qual espada flamejante no caminho da humanidade quando os homens caem fora dos valores. Jaspers pensa que isto se deu graças ao emergir de novo nível de consciência no século VIII a.C., na Jônia, na Palestina, na Índia e na China. E tal pergunta impõe a outra: “para quê faço?”. O valor se torna problema, barra o caminho. Isto é a origem da existência histórica, que é existência problemática: obrigada a questionar o dever-ser do mundo. Obrigada a formular códigos, leis, imperativos. Obrigada a viver religiosamente, politicamente. Obrigada a trabalhar praticamente, engajadamente. Isto é, para o “bem”.

Mas a questão do valor implica a do ser, a medição do dever-ser implica a medição do ser-assim, e a práxis implica a teoria. A afirmação que a teoria nasceu com os gregos antigos é duvidosa. Elementos teóricos são inseparáveis em todo trabalho prático (na Babilônia, no Egito, na Palestina). E teoria em sentido exato, teoria eliminadora de valores, não surgem senão na Itália do século XIV. É somente quando a epistemologia se “libera” da ética, quando a questão do “bem” é posta entre aspas, que surge a teoria científica, isto é, o trabalho de pesquisa. E isto leva ao divórcio entre o ser-assim e o dever-ser que caracteriza o Ocidente moderno. O mundo passa a ter duas regiões: a dos valores (a sociedade), na qual é preciso perguntar “por quê?”, e a dos dados (a natureza), na qual é preciso perguntar “por quê?”. E a cultura passa a dividir-se em científica e humanista. À questão “que devo fazer?” (guerras religiosas, lutas políticas) acrescenta-se a outra: “por que faço o que faço?” (problema da relação entre ciência e política, entre juízo lógico e juízo imperativo). A questão do valor não se põe apenas enquanto “qual valor?”, mas também enquanto “que é valor?”. A existência moderna é obrigada não apenas a trabalhar praticamente, engajadamente, mas também teoricamente, cientificamente. Não apenas para o “bem”, mas também para a “verdade”.

Ciência e política, epistemologia e ética, se divorciaram. Isto leva a comparar as duas formas de trabalho, a fim de reunificá-las, já que não pode haver ontologia sem deontologia e vice-versa. E tal comparação formal leva, por sua vez, à tecnicalização do trabalho. As perguntas finais e causais (“para quê” e “por quê”) são reduzidas, em tam comparação a perguntas formais (“como”). As consequências disso continuam imprevisíveis. Já produziram a Revolução Industrial e o Aparelho. Já produziram o trabalho pelo trabalho (l’art pour l’art), na forma da moral de trabalho burguesa, na forma da glorificação fascista do “ato”, e na forma da filosofia do trabalho marxista enquanto laborterapia salvadora. E estão produzindo atualmente à análise estrutural, à tecnocracia, à cibernética, em suma: ao trabalho funcional como propósito de si mesmo. Ciência e política se reunificam sob o signo da técnica, já que questões finais e causais passam, ambas, a serem “metafísicas” em sentido pejorativo: tanto a questão do “valor” quanto a da “coisa em si” são questões mal colocadas, porque não há método que possa levar a respostas. A existência pós-industrial está condenada a não mais poder trabalhar nem prática, nem teoricamente, mas a funcionar formalmente. Nem para o “bem”, nem para a “verdade”, mas em função da função que desempenha. Isto é a crise dos valores.o trabalho se tornou, a rigor, impossível. Com isso não acaba apenas a história, mas também a forma humana de existir (homo faber). Se não posso perguntar “que devo fazer?”, não mais trabalho. Mas a consciência disso ainda não se repandiu. Embora a subconsciência já o registre. Trabalha-se sempre menos, e sempre com menos empenho, porque “máquinas podem fazê-lo”. É preciso, pois, considerar as máquinas, se quisermos captar a essência (eidós) da impossibilidade para o trabalho. É preciso ir além da máquina para poder ver a existência sem trabalho.

Máquinas são objetos feitos para vencer a resistência que o mundo põe ao trabalho. São “boas” para isso. A flecha paleolítica é boa para matar renas, o arado neolítico é bom para a agricultura, e o moinho clássico é bom para transformar trigo em farinha. Isso porque animais devem ser mortos, campos devem dar trigo, e trigo deve ser farinha. Máquinas não são, pois, problemas, mas métodos para resolver problemas. São objetos práticos, políticos, religiosos (como já eram objetos rituais na época da magia). Máquina são objetos pré-históricos absorvidos pela história; em todo caso são objetos pré-modernos: exigem a pergunta “para quê” isso serve?”. Servem ao engajamento.

Na época moderna máquinhas se problematizam, e é por isso que ocupam um dos centros do interesse. (O helenismo, essa modernidade frustrada, apenas prefigura tal problematicidade.) Quando a pergunta “para quê” à do “por quê”, a visão da máquina muda em dois sentidos. De um lado surgem máquinas que servem à descoberta, e não à modificação, do mundo, os ditos “aparelhos”. Pode-se dizer que o telescópio é bom para ver as montanhas da Lua, tanto quanto o moinho é bom para fazer farinha, mas não se pode fazer que as montanhas da Lua devem ser outra coisa como o trigo deve ser farinha. Os aparelhos são bons, mas não são bons para algo. Do outro lado máquinas não são vistas apenas enquanto meios, mas também enquanto sistemas. Tal visão causal da máquina produz a cosmovisão mecanicista (máquinas enquanto modelos de mundo), para a qual a questão final perde sentido (o mundo pode ser bom ou não, mas não é bom para algo). E produz também a visão teórica da máquina, a qual permite fazer novas máquinas, isto é, a Revolução Industrial explode. Na época moderna, a máquina passa a ser problema, porque coloca a questão do valor, em vez de meramente servir à realização de valores.

Uma das consequências da Revolução Industrial é o acúmulo de máquinas em conjuntos chamados “aparelhos”. Telescópios complexos. Que o aparelho administrativo de um país ou o aparelho industrial de um continente são máquinas do tipo “telescópio” não é imediatamente óbvio, mas dá-se claro quando considerado. O aparelho administrativo, anto quanto o telescópio, serve para apresentar o mundo, não para modifica-lo. A questão “para quê serve a França?” não pode ser respondida com “a fim de modificar o mundo”, mas com “a França é boa ou não, mas não é boa para algo”. A França, tanto quanto o telescópio, apresenta “um mundo”, é aparelho, isto é, conjunto de máquinas para o qual a pergunta “para que serve isso?” levanta problemas.

Aparelhos, tanto quanto máquinas tout court, modificam o mundo, mas o fazem acidentalmente (princípio de Heisenberg). Aparelhos do tipo telescópio e França provocam pontos de vista, ideologias deformadoras do mundo. São problemas não apenas para a ética, mas também para a epistemologia. Mas sobretudo problematizam o conceito do trabalho.

O aparelho, e sobretudo o aparelho pós-industrial, inverte a relação pré-industrial entre a máquina e o homem. Antes da Revolução Industrial a máquina está entre o mundo a ser trabalhado e o homem quem o trabalha: é a prolongação do homem, “pertence” ao homem. Daí o problema fundamental da existência histórica: quais os homens aos quais máquinas “devem” pertencer? Depois da Revolução Industrial o homem passa a funcionar em função das máquinas dentro de um ou vários aparelhos. O mundo a ser trabalhado passa para o além do horizonte, passa a ser “metafísico”, isto é, coisa em si. Em outros termos, antes da Revolução o homem é a constante, e a máquina a variável da relação máquina/homem, e depois da Revolução o aparelho passa a ser a constante. Antes da Revolução seria impensável dizer-se que o moleiro e o trigo servem para alimentar o moinho. Depois da Revolução não apenas a mão de obra serve à indústria, mas isso até é sacralizado: os franceses servem à França. Tal situação kafkiana provoca, no século XIX, reação curiosa.

Surge a esperança que as máquinas sincronizadas em aparelhos podem “libertar” o homem para trabalhos criativos. Máquinas podem substituir os escravos. A humanidade pode, toda ela, desalienar-se. A história enquanto processo durante o qual a humanidade transforma o mundo naquilo que deve ser pode passar a ser história da humanidade toda. Tal esperança é responsável pelo clima otimista, progressista do século XIX, e foi articulada mais adequadamente pelo marxismo. Tal esperança ainda não está totalmente morta, embora esteja atualmente óbvio que peça por incompreensão do aparelho. A morte de tal esperança progressista é lenta, porque se trata da última fé que nos resta.

O aparelho não pode libertar o homem para trabalhos criativos. Não o pode, porque exige, em seus estágios iniciais, que o homem sirva ao aparelho. E porque, nos seus estágios mais avançados, pode, em tese, realizar não importa que trabalho, inclusive o mais “criativo”, melhor que qualquer homem. Mas sobretudo o aparelho não pode libertar o homem para trabalhos criativos, porque trabalhar criativamente, depois do aparelho instalado, não tem sentido. Não apenas o homem não pode escrever sinfonias no primeiro estágio industrial, porque precisa funcionar em de seguros, e no segundo estágio porque computadores fazem sinfonias mais perfeitas mais rapidamente. Não pode escrever sinfonias porque sinfonias não tem sentido em situação de funcionamento. Se posso mostrar sob análise formal não apenas o que a sinfonia é (carga informativa etc.), mas também como programar emissor e receptor de sinfonias, se portanto a questão do valor perdeu sentido, fazer sinfonias perdeu sentido. Não há nada para o qual a máquina possa libertar, e a colocação mesma do problema (para quê libertar?) pode ser mostrada sem sentido.

Mas isso não é tudo. Não apenas a máquina não pode libertar o homem, mas o homem não pode libertar-se do aparelho. Não apenas no sentido já arcaico que o aparelho exige que o homem o sirva (“England expects everybody to do his duty”), porque a cibernética permite vislumbrar aparelhos autônomos do homem (uma Inglaterra sem ingleses). Mas o homem não pode libertar-se do aparelho porque existe nele. Sem aparelhos, ciberneticamente sincronizados ou não, a humanidade morreria. Não porque os aparelhos satisfazem as “necessidades” de uma humanidade em explosão demográfica (tal argumento do senso comum já foi refutado), mas porque os aparelhos são atualmente o mundo dentro do qual, para o qual e do qual a humanidade vive. Uma Inglaterra sem ingleses é imaginável, mas não um inglês sem Inglaterra. O aparelho é constante, o homem é variável.

Diante desse fato (inconscientemente já sorvível, embora ainda não totalmente conscientizado), várias novas atitudes estão se formulando. Uma é a de considerar toda tentativa de querer transcender o aparelho tentativa “mística”, e, por certo, “traidora” da fidelidade ao aparelho (única fidelidade que resta depois da morte dos valores). É a atitude dos funcionários em carreira e dos tecnocratas (dos que creem ideologicamente terem superado todas as ideologias). Outra atitude é a do desespero: não se escapa mais ao aparelho, e todos estão condenados a funcionarem em vez de viverem. É a atividade kafkiana, mas seu clima não é mais do absurdo vivenciado, mas do absurdo amortecido pelo consumo. Uma terceira atitude é a tentativa de demolir os aparelhos aos poucos, diminuir progressivamente o dito “standard” de vida (o que implicaria no aumento da dita “qualidade de vida”), e passar destarte imperceptivelmente para fora do aparelho. É a atitude dos hippies, dos ecólogos, em suma: da dita “nova esquerda”. Uma quarta atitude é a tentativa de perturbar o aparelho por dentro a fim de criar buracos de “mau funcionamento”, dentro dos quais a humanidade estaria livre. É a atitude da contestação anárquica, dos ditos “terroristas”. Mas todas tais atitudes (e outras não mencionadas) não podem contornar o fato que além das máquinas não é possível imaginarmos existências que trabalham, isto é, mudam o mundo a fim de que o dever ser seja.

Máquinas pós-industriais são resultados da concentração do interesse sobre o aspecto metodológico, do “como”, do processo do trabalho. Não estão sendo abusadas, nem nos abusam: funcionam corretamente. A técnica, que não é possível sem ontologia nem deontologia, não obstante devorou tanto ontologia quanto deontologia. Nenhuma espécie de saudosismo pode reinstaurar o Ser e os Valores. A função, a relação, o “campo”, o “Sachverhalt”, o “ecos”, devorou Ser e Valor ao encerrá-los na caixa preta do “nonsense”. Por isso a vida no além das máquinas é estritamente imaginável. Embora em certo sentido já estejamos nela.

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