Edição 399 | 20 Agosto 2012

Um teórico barroco?

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Thamiris Magalhães

Existiu em Flusser uma vontade de unificar aquilo que foi separado pela modernidade, como arte, ciência, religião; de quebrar as barreiras dos campos que foram fraturados pelo pensamento moderno, assinala Erick Felinto de Oliveira

 

“Flusser era um pensador realmente transdisciplinar”, frisa o professor Erick Felinto de Oliveira, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. O autor não tinha fronteiras no pensamento, segundo o docente, e ele passeava por várias referências e por diversos campos de força intelectuais. “Obviamente, a sua reflexão sobre comunicação é muito forte. O pensamento dele tinha um foco importante sobre a questão da tecnologia e dos meios, principalmente esse começo que ele viveu com o início ainda da revolução digital. Esse aspecto da obra dele é bastante relevante. Mas Flusser era um pesquisador que, de fato, foi muito aproveitado no campo das artes, das artes tecnológicas. Ele era muito respeitado, principalmente na Alemanha, nesse horizonte da arte–mídia. O que comprova isso é o fato de a universidade onde está sediado o Arquivo Flusser hoje ser uma Universidade de Artes”, diz. Erick aponta que o pesquisador intuiu várias forças culturais e energias espirituais que vieram depois nos caracterizar como problemas contemporâneos. “Um dos temas, por exemplo, o autor antecipa (...) é a questão do pós-humanismo.” 

Erick Felinto de Oliveira é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ/UCLA e tem pós-doutorado em Comunicação pela Universität der Künste, Berlim. É pesquisador do CNPq e professor adjunto na UERJ, instituição em que realiza pesquisas sobre cinema e cibercultura. É autor dos livros A religião das máquinas: ensaios sobre o imaginário da cibercultura (Porto Alegre: Sulina, 2005); Avatar: o futuro do cinema e a ecologia das imagens digitais (com Ivana Bentes. Porto Alegre: Sulina, 2010); e A imagem espectral: cinema e fantasmagoria tecnológica (São Paulo, Ateliê Editorial, 2008). Ainda este ano lançará pela editora Paulus, em parceria com a professora Lucia Santaella, o livro Explorador de abismos – Vilém Flusser e o pós-humanismo

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Você realizou seu pós-doutorado na Alemanha, na Universidade das Artes – instituição na qual também se encontra o Arquivo Flusser. O que mais lhe chamou a atenção na visita ao Arquivo?

Erick Felinto de Oliveira – A quantidade de material inédito que existe. Têm desde textos que nunca foram publicados até cartas pessoais; existem documentos pessoais de Flusser e há uma parte da biblioteca pessoal dele também. Estima-se que, pelo menos, 80% do que ali se encontra ainda não tenha sido publicado. 

Obra fragmentária

Flusser tem uma trajetória bastante curiosa. Ele demorou muito tempo para ser reconhecido e não é muito lido fora da Alemanha e do Brasil. Agora que os Estados Unidos da América começa a citar seus textos com mais frequência. Então, a sua fama veio tarde. E, de fato, aconteceu de maneira mais decisiva na Alemanha. O pesquisador, além disso, escrevia muito para jornais e revistas. Muito do que ele publicou em vida foram nesses dois meios de comunicação e vários de seus livros publicados são, na verdade, textos que foram compilados e isso dificulta muito o trabalho, inclusive para definir o que é obra do Flusser, porque é uma obra fragmentária. Existem aqueles livros orgânicos, que ele escreveu do começo ao fim, como A história do diabo (Martins Editora, 1965), por exemplo, mas têm também vários casos de livros que foram compilações de textos seus. A bibliografia flusseriana é muito complicada, porque podemos encontrar o mesmo ensaio publicado em dois volumes diferentes. E como ele morreu em acidente de carro em 1991, depois disso algumas editoras desejaram realizar uma edição mais ou menos “completa”. Uma delas, porém, faliu no meio do processo e isso ficou incompleto. Teve ainda a questão dos direitos autorais. Até hoje existem vários imbróglios na Alemanha em relação a isso devido à dificuldade de se tentar republicar um texto. Então, é um verdadeiro labirinto. A obra de Vilém Flusser é muito complexa. E o Arquivo Flusser tem recursos muito limitados. 

IHU On-Line – O que mais lhe interessa e chama atenção nos trabalhos de Flusser?

Erick Felinto de Oliveira – Flusser era um pensador realmente transdisciplinar. Não tinha fronteiras no pensamento e ele passeava por várias referências e por diversos campos de força intelectuais. Obviamente, a sua reflexão sobre comunicação é muito forte. Seu pensamento tinha um foco importante sobre a questão da tecnologia e dos meios, principalmente esse começo que ele viveu com o início ainda da revolução digital. Esse aspecto de obra sua é bastante relevante. Mas Flusser era um pesquisador que foi muito aproveitado no campo das artes tecnológicas. Ele era muito respeitado, principalmente na Alemanha, nesse horizonte da arte–mídia. O que comprova isso é o fato de a universidade onde está sediado o Arquivo Flusser hoje ser uma Universidade de Artes. 

IHU On-Line – Poderíamos reler Flusser na contemporaneidade com o surgimento e fortalecimento das mídias digitais? Ele nos ofereceu pistas nesse sentido em seus trabalhos? De que maneira?

Erick Felinto de Oliveira – Sem dúvida. Qualquer pesquisador, não importa em que momento tenha escrito, pode oferecer pistas sobre o presente. Walter Benjamin , que viveu bem antes de Flusser, também traz pistas interessantes para pensarmos as tecnologias digitais e a cultura contemporânea. Em relação a Flusser, ele não chegou a viver plenamente a onda de transformações tecnológicas que aconteceu. Aliás, nós ainda estamos vivendo isso. Mas intuiu. A minha perspectiva, pelo que leio de Flusser, é que ele intuiu várias forças culturais e energias espirituais que vieram depois nos caracterizar como problemas contemporâneos. Um dos temas, por exemplo, que, creio, o autor antecipa, porque quando ele morreu isso ainda era muito incipiente, é a questão do pós-humanismo . Esse, inclusive, é o tema do livro Explorador de abismos – Vilém Flusser e o pós-humanismo (São Paulo: Paulus, 2012), publicado em parceria com a professora Lucia Santaella .

IHU On-Line – Já que o senhor citou Walter Benjamin, houve alguma influência do filósofo nos estudos de Flusser? 

Erick Felinto de Oliveira – Existiu, como de vários outros autores. Ele nem sempre citava, aliás, raramente o fazia, mas Benjamin era um dos poucos que Flusser mencionava literalmente. Por exemplo, o texto clássico A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica (Porto Alegre: Zouk, 2012). Então, Benjamin, McLuhan , Heidegger  e Husserl  eram algumas referências que Flusser utilizava de forma mais explícita. Mas o autor costumava incorporar as ideias sem mencionar as fontes. 

IHU On-Line – De que maneira a Escola de Toronto foi referência importante nas obras de Flusser? 

Erick Felinto de Oliveira – A Escola de Toronto se enquadra na linha da relação entre tecnologias da comunicação e cultura. Ademais, a questão das materialidades das tecnologias e os impactos materiais destas eram pontos que apareciam com bastante força no pensamento de Flusser. Ele era um pensador que fazia parte dessa tradição materialista, que avaliava de que forma as configurações tecnológicas e as estruturas materiais dos meios produziam formas de cognição. Nesse aspecto, ele convergiu bastante com a Escola de Toronto. 

IHU On-Line – De que maneira Flusser definiu o conceito de comunicologia?

Erick Felinto de Oliveira – Comunicologia era a proposta de uma ciência que, curiosamente, não seria parte das ciências humanas, mas seria mais ampla do que esta. Tratava-se de uma visão de que a comunicação é a essência da experiência humana. Sendo assim, ela estaria em toda a parte. A comunicologia seria, portanto, uma espécie de disciplina transdisciplinar. Sem fronteiras muito rígidas, que abarcasse todo um campo de questões da vida humana, da sociedade, da cultura, a partir de um prisma que tem bastante a ver com a cibernética, porque esta também tinha como proposta criar uma grande disciplina que fosse capaz de explicar praticamente tudo, com base em determinados princípios, como a centralidade da noção de informação, nos processos culturais, sociais, humanos e da vida. E a noção de informação estaria no centro disso tudo bem como a transmissão, a armazenagem e o processamento de informação. Então, a comunicologia seria uma espécie de ciência que estaria tomando como base esses princípios e, com isso, oferecendo instrumentos para analisar diferentes fenômenos e aspectos da vida. 

IHU On-Line – Qual a peculiaridade de Flusser já que, muitas vezes, ele conseguiu reunir conceitos muitos dos quais distintos, como a semiótica, a fenomenologia e a cibernética, em seus estudos? Ele teve êxito nisso?

Erick Felinto de Oliveira – É difícil falar em uma obra original. O que os grandes pensadores e teóricos fazem hoje é oferecer uma perspectiva, um olhar diferente, em cima do estudo que já foi dito. Umberto Eco  costumava dizer que: “todas as histórias já foram contadas”. Deve-se, portanto, encontrar uma maneira diferente de repeti-las. Então, o que Flusser fazia, como muitos outros autores contemporâneos, era oferecer um olhar singular sobre essa massa crítica, que já existe, e trazia a sua contribuição singular, pessoal. Quando ele falava, tentava combinar uma coisa muito complexa, que é a cibernética, que foi uma das grandes fontes de influência de seu pensamento, com a fenomenologia, o que é uma combinação bastante complicada, mas que traz uma perspectiva interessante de como pensar esses dois polos, o que representa, em certo sentido, um aspecto mais matemático, ligado à racionalidade, do que ao que seria a criatividade, a poesia e a arte. Existiu em Flusser certo impulso barroco; uma vontade de unificar aquilo que foi separado pela modernidade, como arte, ciência, religião; de quebrar as barreiras dos campos que foram fraturados pelo pensamento moderno. 

IHU On-Line – Como você avalia a divulgação de Flusser nos cursos de pós-graduação em Ciências da Comunicação nas universidades brasileiras? 

Erick Felinto de Oliveira – Muito pequena e fraca. Flusser ainda não é uma referência realmente forte, inclusive no Brasil. Na Alemanha é muito mais do que aqui. Lá, atualmente, qualquer manual de Teoria da Mídia coloca Flusser como pensador fundamental. Ele foi inclusive comparado ao McLuhan, como se fosse o McLuhan da Alemanha. Aqui no Brasil a divulgação é muito fraca. Apenas pequenos grupos e poucos autores têm feito um trabalho de estudar sua obra. Em São Paulo, tem um núcleo mais forte de flusserianos. Mas ainda é incipiente. 

São várias as razões que fazem Flusser ser ainda pouco conhecido e trabalhado. Uma delas se dá pelo fato de o autor não ter sido tradicional, academicamente falando. Seu discurso não era um que a academia aceitasse com facilidade, porque ele dava saltos entre diversas formas de conhecimento; não era um pensamento sempre lógica e rigorosamente estruturado. É evidente que podemos criticar esse seu estilo; creio que não precisamos ter uma atitude dogmática de que o pensador é uma divindade, e não pode ser questionado – até porque isso é totalmente antiflusseriano. Ele era um tipo de pensador que também gera isto: fãs, discípulos. O que é perigoso, com uma obra tão diversa e até contraditória como a dele. É preciso ainda entender que existem certas formas de pensamento em que a contradição é um elemento interessante. 

Academia brasileira conservadora 

Outra razão é o fato de a academia brasileira ser muito conservadora. Daí um pensamento desta natureza, como de Flusser, ter muita dificuldade em se estabelecer em nosso país como algo reconhecido dentro de nosso sistema acadêmico. Creio que estamos formando uma geração de pensadores, nos cursos e nas pós-graduações do Brasil que não conseguem pensar fora da caixa. Os americanos têm essa expressão. Isso é um problema. São especialistas que, na verdade, não conseguem fazer ponte. Não conseguem produzir um pensamento original porque não se permitem sair da fronteira na qual foram limitados. Flusser era o oposto disso. Ele era um autor multidisciplinar. 

E a última razão é a de que se trata de uma obra difícil, vasta, que trata de diversos temas, sendo escrita em quatro línguas. Então, para fazer um estudo sério da obra de Flusser, deve-se dominar as quatro línguas e isso já é um desafio, considerando que, talvez, a maior parte do que ele tenha escrito esteja em alemão. Em segundo lugar, o português, depois francês e inglês. 

IHU On-Line – Como avalia a divulgação de Flusser para os próximos anos?

Erick Felinto de Oliveira – Tenho um feeling de que realmente Flusser irá começar a aparecer nos próximos anos. Começam a surgir eventos aqui no Brasil nesse sentido. Em Fortaleza, tem um grupo interessante de estudos sobre Flusser. Além disso, terá um evento em dezembro em Natal sobre o autor; vários de seus livros estão sendo lançados nos Estados Unidos. Têm coisas sendo traduzidas para o inglês. Então, está começando, talvez, uma onda internacional de revalorização dos pensamentos de Flusser. Penso que ele deve continuar crescendo nos próximos anos. Creio que isso é bastante interessante porque precisamos de pesquisadores como ele que transgridam os paradigmas tradicionais, as fronteiras que tentamos estabelecer entre conhecimentos e disciplinas. 

 

Leia mais...

>> Veja o que mais a IHU On-Line já publicou de Erick Felinto:

* A era da memória total e do esquecimento contínuo. Entrevista publicada na Revista IHU On-Line número 368, de 04-07-2011; 

* Inovação, não saudosismo: o desafio dos estudos sobre comunicação e mídia. Artigo publicado nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 16-06-2011; 

* Um futuro complexo, híbrido, incerto e heterogêneo. Entrevista publicada na Revista IHU On-Line número 375, de 03-10-2011.

 

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