Edição 397 | 06 Agosto 2012

A Ética como fundamento da filosofia spinozana

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Márcia Junges

A questão fundamental para Spinoza era a busca por uma vida moral plena, destaca Lia Levy. Descartes exerceu uma influência indiscutível, embora ambos tenham interesses filosóficos distintos

Não apenas uma parte de sua filosofia, mas toda ela. Essa é a relação da Ética no conjunto da obra de Baruch Spinoza, examina a professora Dra. Lia Levy na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. A pesquisadora assinala, também, que para esse autor a busca por uma vida moral plena é sua “questão filosófica por excelência”. Um de seus argumentos mais polêmicos é a recusa do livre arbítrio “como definindo a essência da liberdade”. Outro ponto que precisa ser destacado é que “a concepção spinozista do conhecimento é profundamente marcada por sua leitura da filosofia cartesiana, aliás como ocorreu com muitos de seus contemporâneos. Por muito tempo, contudo, essa influência foi vista como uma ausência de originalidade da parte de Spinoza”. Alguns apontavam o holandês como um “cartesiano menor ou um cartesiano radical”, mas sempre um “continuador de Descartes. Lia Levy destaca que Descartes exerceu inegável influência sobre Spinoza, mas há uma “diferença crucial” entre os interesses filosóficos entre os pensadores.

Graduada e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Lia Levy é doutora e pós-doutora em História da Filosofia Moderna pela Universidade de Paris IV, Sorbonne, na França, com a tese La conscience de soi selon l'Éthique de Spinoza. Também na Sorbonne cursou pós-doutorado. Leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e é autora de O autômato espiritual. A subjetividade moderna segundo A Ética de Espinosa (Porto Alegre, RS: L&PM Editores, 1998) e organizou Descartes – objecter et répondre (Paris, França: Presses Universitaires de France, 1994).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como podemos compreender a Ética de Spinoza dentro do contexto de seu pensamento?

Lia Levy – A Ética demonstrada segundo a ordem dos geômetras (Ethica ordine geometra demonstrata) é, sem dúvida alguma, a principal obra escrita por Baruch de Spinoza, à qual ele se referia como “minha filosofia” (Tratado da reforma do intelecto §3, nota). Embora ela tenha sido publicada somente após sua morte, em 1677, muitos de seus contemporâneos tomaram conhecimento de seu conteúdo, seja através de cópias que circularam, seja por intermédio dos muitos comentários que suscitou.

Autor de poucas obras se comparados a outros filósofos, Spinoza publicou apenas duas em vida: Renati Descartes principiorum philosophiae mori geometrico demonstrata (Princípios da filosofia de René Descartes demonstrados à maneira dos geômetras) e o Tractatus theologico-politicus (Tratado teológico-político), publicado anonimamente. As restantes, permaneceram inéditas até a publicação de sua Opera Posthuma em 1677: além da Ética, o Tractatus de intellectu emendatione (Tratado da reforma do intelecto), o Tractatus politicus (Tratado político), ambos inacabados; e descoberto apenas bem mais tarde, o Korte verhandeling van's menschen leven, gezondheid, ziekte dood (Breve tratado sobre a vida dos homens seu bem-estar, sua doença e sua morte).

Não creio que seja o caso descrever aqui, por pouco que seja, cada uma dessas obras, mas a simples leitura desses títulos, juntamente com a afirmação de que considerava a Ética como sua filosofia, parece-me suficiente para evidenciar o caráter essencialmente prático do pensamento de Spinoza. E com isso quero assinalar que a questão filosófica por excelência para esse autor é a busca de uma vida moral plena.

Ao abrir esse livro, porém, a maioria dos leitores provavelmente se sentirá confuso, pois, na Ética, Spinoza trata de muitos outros temas antes de se dedicar mais explicitamente ao que hoje entendementos por essa questão. Um leitor do século XVII, contudo, não se surpreenderia em ter que ler atentamente uma longa série de considerações sobre Deus e sua relação com o mundo (parte I), sobre a natureza da alma/mente humana e seus modos de conhecer (parte II), sobre a natureza a origem dos afetos humanos (parte III), bem como sobre a força desses afetos e por que eles são a origem da nossa servidão (parte IV), para somente então poder compreender, na quinta parte da Ética, como podemos alcançar a verdadeira liberdade e desfrutar, eo ipso, da beatitude própria aos homens sábios. O sentido das reflexões de natureza ética nesse período é pensado como subordinado à sua inserção em um quadro especulativo mais amplo, que envolve teses metafísicas acerca da realidade das coisas e de sua origem, bem como de todos os aspectos relevantes para a compreensão dos fundamentos mesmo da moralidade.

Intolerância religiosa e política

No caso particular da Ética de Spinoza, essa inserção ganha uma relevância ainda maior, pois esses conhecimentos não são o requisito formal para a construção de um instrumento ou de uma técnica para aplacar as paixões que nos tornam servos, mas a realização mesma da liberdade e da felicidade humanas. Assim, a Ética não é, para o pensamento de Spinoza, uma parte de sua filosofia, mas toda ela. Tampouco é uma reflexão racional que pretenda tão somente obter a ciência das condições da vida prática humana, das nossas virtudes e das nossas fraquezas, devidamente justificada no âmbito de uma teoria mais geral sobre o ser e o conhecer. Se nela, de fato, encontramos tal ciência, ela aí comparece como um percurso a ser percorrido e experimentado pelo leitor e, ao fim do qual, se tem o direito de esperar alcançar a liberdade e a felicidade buscadas.

Cabe ainda ressaltar, a esse respeito, a força e a importância da reflexão spinozista sobre a política. Inicialmente concebida como parte da reflexão sobre as condições que determinam nossa servidão e que, nessa medida, devem ser conhecidas para que delas nos liberemos, o tratamento da sociabilidade e dos fundamentos da vida civil são objeto de algumas poucas proposições da quarta parte da Ética. No entanto, Spinoza passa a dedicar-se mais diretamente a esse tema motivado pelos incidentes gerados pela intolerância religiosa e política, que levariam ao fim da República (então Países Baixos) e à restauração da monarquia na Holanda e dos quais chegou a ser vítima pessoalmente (ele sofre uma tentativa de assassinato). Engajado e preocupado com o rumo dos acontecimentos, Spinoza para a redação da Ética e escreve o Tratado teológico-político, um extraordinário libelo em favor da liberdade religiosa e de expressão, apoiado em uma interpretação da Bíblia marcada pelo recurso a um método exegético racionalmente justificado.

IHU On-Line – Como caracterizaria a ontologia spinozana?

Lia Levy – O que se chama habitualmente, entre os scholars, de “ontologia” de Spinoza é o conjunto de suas teses relativas à essência e à existência de todas as coisas e à relação que mantêm com sua causa única, ou seja, com Deus – ou ainda com a substância cuja essência é constituída de infinitos atributos infinitos. Essas teses definem sua compreensão do que constitui a realidade de todas as coisas reais, finitas ou infinitas, atualmente existentes no tempo ou não; e seu desenvolvimento constitui a primeira parte da Ética.

Essa ontologia é formulada em termos comuns às teorias do século XVII, recorrendo a termos como ‘Deus’, ‘substância’, ‘atributo’, ‘modo’, ‘causa imanente’, ‘causa transitiva’, ‘duração’, ‘eternidade’, ‘infinito’, ‘finito’, etc. No entanto, praticamente todos eles são articulados em uma longa trama argumentativa que faz com que passem a designar conceitos bastante peculiares, assumindo mesmo, muitas vezes, um sentido praticamente oposto ao que lhes deu origem na tradição filosófica à qual pertencem.

Assim, por exemplo, se Deus é o tema central da primeira parte da Ética, muito rapidamente (proposição 16) o leitor é levado a compreender que não se trata ali do mesmo conceito partilhado pela teologia judaico-cristã e mesmo por outros pensadores laicos do período (como Descartes e Leibniz ). Se Spinoza preserva em seu sistema a tese de que o princípio e a origem de toda a realidade está em um único ser, supremo, onipotente, eterno, causa absoluta e primeira de todas as coisas, e, ainda que apenas como um de seus infinitos efeitos, onisciente, ele, porém, recusa explícitamente outras características que tradicionalmente lhe são atribuídas, como personalidade e livre arbítrio. Além disso, ele defende que pertence à natureza de Deus outras propriedades, como ser extenso, que lhe afastam por completo da concepção de Deus característica da tradição judaico-critã. A importância dessa peculiaridade é central e pode ser razoavelmente apreciada no apêndice da primeira parte da Ética. Ela marca ainda uma imensa distância teórica entre Spinoza e os outros racionalistas do período, como Leibniz e explica por que, malgrado ter dedicado tanto de seu pensamento à esclarecer e explicar o conceito de Deus, tenham lhe acusado de ateísmo.

Monismo substancial

De par com essa inovação, há que se atentar para a reformulação que ele promove no conceito tradicional de substância, por ser responsável pelas teses mais características e heterodoxas de sua ontologia. Se é verdade que este é um conceito que não passará à modernidade sem sofrer muitas alterações, ainda assim o tratamento spinozista é diferenciado. Como já mostrou Alexandre Matheron  em seus cursos sobre a Ética, mas infelizmente até hoje inéditos, as 16 primeiras proposições da primeira parte constroem um tal conceito de substância que, aplicado à ideia que, alega Spinoza, todos nós temos de Deus como um ser absolutamente infinito, nos faz compreender que só há uma única substância na realidade (monismo substancial), que é causa imanente e necessária, e nesse sentido livre, de todas as coisas (o que permitiu que o romatismo alemão o visse como um panteísta). Destarte, todas as coisas particulares não podem ser mais consideradas substâncias, mas modos ou maneiras pelas quais a essência de Deus se expressa de forma determinada.

Das inúmeras teses que compõem a filosofia de Spinoza, creio que são essas as que compõem sua matriz, sendo pois em sua ontologia que residem suas decisões teóricas mais fundamentais e que dão sentido a seu pensamento. Naturalmente, a recusa do livre arbítrio como definindo a essência da liberdade é, podemos dizer, sua afirmação que causa mais polêmica e que, até hoje, mais chama a atenção para sua Ética. No entanto, essa recusa é uma decorrência dos argumentos relacionados às teses acima mencionadas, como o mostra, bastante claramente, o apêndice da primeira parte da Ética, da mesma forma que sua teoria do conhecimento.

A imagem geral que nasce da compreensão de sua ontologia e dos argumentos que a sustentam é a de um naturalismo não-materialista (apesar de alguns de seus intérpretes discordarem sobre essa última característica) combinado com um teísmo heterodoxo, sintetizada na expressão, por ele utilizada, Deus sive Natura.

IHU On-Line – Do que trata a noção de conhecimento na Ética desse pensador?

Lia Levy – A concepção spinozana do conhecimento é profundamente marcada por sua leitura da filosofia cartesiana, aliás como ocorreu com muitos de seus contemporâneos. Por muito tempo, contudo, essa influência foi vista como uma ausência de originalidade da parte de Spinoza. Entre os que o viam como um cartesiano menor ou um cartesiano radical, o diagnóstico seguia essencialmente o mesmo: um continuador de Descartes. Nesse sentido, muito de meu trabalho sobre esse tema foi marcado por uma tentativa de melhor demarcar a relação entre essas duas teorias. E a esse respeito, penso que há ao menos duas coisas que não se pode discutir: a influência que a filosofia de Descartes exerceu sobre Spinoza e a diferença crucial entre os interesses filosóficos de ambos os autores. Isso posto, creio que as teses spinozistas sobre o conhecimento podem ser consideradas como uma tomada de posição refletida quanto à concepção cartesiana, tanto no que se refere ao problema do método quanto à relação entre a metafísica e o ciência e que elas constituem uma doutrina original. Embora Spinoza de fato não estivesse primariamente concernido com os fundamentos da nova ciência física, ele estava perfeitamente a par dos debates da época a respeito e se revela preocupado em levar em conta, em sua filosofia, teses compatíveis com a nova visão de mundo e com o novo conceito de ciência em elaboração.

A originalidade de sua doutrina torna-se mais visível, porém, não apenas na comparação com Descartes, mas sobretudo em sua relação com as teses ontológicas da Ética. Com efeito, muitas das posições cartesianas que são rejeitadas por Spinoza também foram alvo de críticas de outros filósofos do período, inclusive dos que se declararam publicamente partidários do cartesianismo, como Antoine Arnauld e Nicolas Malebranche . Todos eles, assim como Gottfried W. Leibniz e David Hume, mitigaram ou mesmo abandonaram por completo a importância da dúvida para a investigação filosófica, assim como o privilégio do eu penso como sendo, em certo sentido, princípio da filosofia. O mesmo ocorre quanto à combinação de teísmo e naturalismo mencionada acima. Se a proposta spinozista é especialmente heterodoxa, ela, contudo, não deixa de fazer parte um esforço mais geral da filosofia do XVII em redefinir as fronteiras entre a filosofia e a teologia de modo a conquistar um domínio autônomo para a razão, mas sem destituir essa última da posição de interlocutor legítimo do diálogo racional.

Concepção antípoda

Assim, se tomamos sua tese de que as coisas particulares não são substâncias, mas modos certos e determinados que exprimem a essência de Deus, percebemos facilmente assim me parece, que sua noção de conhecimento humano não pode deixar de ser afetada. Conhecer enquanto atividade humana não pode mais pensado como o resultado de uma ou mais faculdades de um sujeito. E, de fato, sua teoria do conhecimento humano não é uma teoria que distinga e caracterize faculdades como sensibilidade ou entendimento a partir de suas funções e objetos de conhecimento. Em lugar disso, temos uma teoria que distingue tipos de ideias e de modos de conhecer. É verdade que esses modos de conhecer são referidos à alma ou mente humana, mas essa é concebida como um composto dessas ideias, cujas diferentes relações possíveis definem os diferentes modos pelos quais conhecemos as coisas. Ora, parece evidente que essa concepção da alma como não-substancial e como não-simples é a antípoda da concepção cartesiana de sujeito pensante.

Por essa razão, aliás bastante boa, os intépretes de Spinoza concordam em afirmar que um dos aspectos característicos da sua teoria do conhecimento é a sua independência de um conceito cartesiano de sujeito pensante. E foi, nessa linha interpretativa que redigi minha dissertação de mestrado.

IHU On-Line – E o que é o conhecimento de si na Ética spinozana?

Lia Levy – Aceita essa interpretação, a explicação do conhecimento de si, ou seja, do conhecimento que cada um de nós tem de si mesmo passa também a divergir diametralmente da teoria cartesiana e, em certo sentido, convergir em direção a teorias pré-cartesianas. Se aceitamos Descartes como o marco da modernidade, isso significa que a teoria do conhecimento de si na Ética seria pré-moderna, bem como a concepção de sujeito aí defendida. Grosso modo, o que está em jogo é a questão de saber se o conhecimento de si tem ou não prioridade em relação ao conhecimento das outras coisas do mundo. 

Antes de prosseguir, contudo, é imprescindível lembrar que essa questão deve ser tratada aqui em termos pré-kantianos. Isso porque Kant contribuiu imensamente para que ela assumisse novos contornos, os quais definirão de modo decisivo os termos do debate dito “moderno” sobre a subjetividade, aí incluídos seus defensores e detratores. Esse foi o árduo trabalho de depuramento histórico e conceitual que foi preciso fazer para compreender adequadamente as teorias de Descartes e de Spinoza, e para o qual pude contar com as valiosíssimas contribuições de Jean-Marie Beyssade, meu orientador na Universidade de Paris IV-Sorbonne. Assim, por exemplo, a distinção entre conhecimento de si e consciência de si, fundamental em Kant, não foi levada em consideração, tendo sido tomadas essas expressões como significando o mesmo conceito.

Ora, o texto da Ética parece ratificar a referida divergência entre Descartes e Spinoza e não deixar nenhuma margem para dúvidas. Com efeito, na proposição 23 da segunda parte da Ética, ele afirma com todas as letras que só conhecemos a nós mesmos na medida em que temos as ideias de afecções, ou seja, ideias dos modos pelos quais somos afetados pelas coisas no mundo, seja elas pensantes ou corpóreas. Portanto, o conhecimento de si é dependente do conhecimento que temos das coisas do mundo e, nesse sentido, não pode, como quer Descartes, ser dito primeiro ou prioritário. End of game.

Et pourtant... Sem retomar as longas e penosas considerações que tomam todos os três capítulos da primeira parte do meu livro, gostaria ao menos de dizer uma coisa que, espero, possa me conseguir ao menos o benefício da dúvida por parte dos leitores. Não apenas problemas exegéticos sugeriam uma resposta diferente, mas o seguinte problema: a quem se dirige a Ética? Quem é esse ou essa que aspira à felicidade e que, alega Spinoza, a pode conseguir alcançando o conhecimento de que é parte, como todas as outras coisas no mundo, da unidade fundamental de toda a natureza?

A primeira resposta que se oferece a essas perguntas, sem abrir mão da posição anterior, consiste simplesmente em, retomando inclusive trechos da Ética, afirmar que, justamente, o percurso proposto envolve o reconhecimento do caráter ilusório da ideia que temos de nós mesmos como sujeitos. E que somente no âmbito dessa ilusão termos como ‘eu’, ‘outrem’, ‘quem’ têm sentido. Ao que, me pareceu – e ainda parece –, cabe perguntar: certo, mas quem está iludido? Como se forma essa ilusão? Sob que condições se torna possível para uma alma que é um mero conjunto de ideias referir-se, mesmo que erroneamente, a ela mesma como a um sujeito?

Essas foram basicamente as perguntas que me levaram a defender, em desacordo com o que havia defendido no mestrado, que a teoria do conhecimento de Spinoza envolve um conceito de sujeito pensante, mesmo que ele não seja inteiramente conforme ao cânone cartesiano. Essa diferença eu pretendi ilustrar com a associação entre as expressões, aparentemente dissonantes, de ‘sujeito moderno’ e ‘autômato espiritual’ (Tratado da reforma do entendimento, §85).

IHU On-Line – Em que sentido sua ética influencia na formulação do conceito moderno de sujeito? Nessa linha, como podemos compreender o “autômato espiritual” ao qual a senhora se refere em uma de suas obras?

Lia Levy – Antes de tudo, é preciso deixar claro que afirmar que a expressão “autômato espiritual” é usada por Spinoza para designar uma certa concepção do sujeito pensante é uma hipótese interpretativa para a qual pretendo ter fornecido boas evidências, mas que está ainda longe de ser conclusiva. Talvez mesmo se possa dizer que essa hipótese jamais deixará de ser, na melhor das hipóteses, uma chave de leitura que chama a atenção para problemas exegéticos relevantes e aponta para modelos de solução interessantes e intrigantes. Esse é um limite cuja probabilidade muito cedo me deparei em minha pesquisa e prontamente aceitei como parte de uma concepção mais ampla sobre meu interesse em história da filosofia.

O que traça esse limite é ausência significativa de textos nos quais Spinoza tratasse explicitamente do conceito de sujeito pensante e do modo como ele se ajustaria à sua filosofia. Tudo que espero ter conseguido mostrar foi que seus argumentos pressupõem a aceitação de um conceito de sujeito pensante que seja imediatamente consciente de si mesmo, isto é, que seja capaz de se referir imediatamente a si mesmo como sujeito, e que sua ontologia e teoria do conhecimento fornecem subsídios suficientes para reconstruir o que poderia ser ou ter sido sua versão para esse conceito tão fundamental para a modernidade como o de sujeito.

Essa reconstrução, de caráter essencialmente especulativo e não-exegético, faz surgir três teorias a meu ver extremamente interessantes e originais para o período (e mesmo para hoje): uma teoria lógico-ontológica acerca de unidades que são substrato de modificações sem serem substâncias, uma concepção metafísica da naturalização da consciência e da consciência de si e uma teoria do sujeito ético como autor/narrador de sua própria identidade. Sobre as duas primeiras, deixarei para me referir mais adiante. Sobre a terceira, o significado dessa noção peculiar de sujeito para a reflexão ética parece-me evidente.

Embora não a tenha desenvolvido em meu trabalho, nem no livro, tampouco em artigos posteriores, esse sempre foi um dos desdobramentos que mais apreciei nessa pesquisa. Basicamente, o que procurei mostrar foi a plausibilidade de se pensar, em acordo com o espírito da filosofia de Spinoza, o conhecimento de si como o processo pelo qual o ser humano constitui-se como sujeito referindo a si as ideias que de fato lhe constituem e que variam ao longo de sua vida conforme sua interação com as coisas e os outros seres humanos.

IHU On-Line – Dentro dessa problemática, como podemos compreender a questão da predicação? Há alguma relação desse tema com a querela dos universais? 

Lia Levy – Como disse, a reconstrução que propus envolveu o desenvolvimento de uma teoria acerca de substratos de modificações que não tivessem uma unidade substancial. Em um primeiro momento, a investigação sobre as eventuais consequências lógicas dessa teoria não se impunham. O fundamental consistia em mostrar que a separação dos conceitos, classicamente relacionados, de indivíduo e substância não implicavam, como muitos pretenderam, a recusa de toda e qualquer realidade às coisas particulares. Embora pareça técnico, o problema é simples: o monismo substancial, ou seja, a tese de que há somente uma única substância na realidade obriga-nos pensar como ilusória a unidade das coisas no mundo, nós inclusive? Estaria Spinoza defendendo uma versão da posição parmenídea de que a multiplicidade é mera aparência e que, na realidade, tudo é um? Ora, é praticamente consenso entre os estudiosos de Spinoza que as respostas a essas perguntas devem ser negativas. O que me propus então a fazer foi investigar as teses que Spinoza deveria aceitar para que as respostas pudessem ser de fato negativas. Essa investigação mostrou que Spinoza teria que estar adotando teses muito diferentes daquelas que estavam na base da concepção tradicional de substância e que se expressam na compreensão aristotélica da estrutura lógica do enunciado apofântico, a partir da qual surge a querela dos universais no medievo.

Essa diferença me pareceu uma pista interessante para prosseguir com a fundamentação da teoria que propus e adotei uma estratégia metodológica diferente da habitual: em vez de supor que os conceitos próprios das ontologias dos innovatori foram forjados de modo totalmente independente da reflexão lógica, por oposição à tradição aristotélica, visto que eles explicitamente rejeitavam a relevância filosófica dessa reflexão, resolvi me perguntar qual poderia ser a contrapartida para a análise da predicação da tese segundo a qual substâncias não são indivíduos e indivíduos não são substância, à qual subscreve Spinoza. Uma das consequências importantes que essa tese parece ter para a compreensão da predicação consiste na necessidade de reformular o conceito de sujeito de atribuição e a relação que esse mantém com os predicados que lhe são atribuídos de modo a que se conformem a uma relação todo/parte. Ora, a determinação dos aspectos lógicos próprios a essa relação, a mereologia, faz parte da agenda da filosofia desde pelo menos Platão  e atravessa o curso de sua história, embora tenha recebido um tratamento técnico e formal apenas em 1916 com a obra do polonês Stanisław Leśniewski  (Fundamentos de uma teoria geral das totalidades, publicado em polonês). Minha investigação sobre esse tema, porém, ainda está em curso, pois devido à rejeição da lógica poucos são os textos que podem servir de base a uma reconstrução mais fiel do ponto de vista histórico. Nesse sentido, o estudo das “lógicas cartesianas”, ou seja, das lógicas influenciadas diretamente pela filosofia de Descartes, se faz necessário.

De qualquer modo, sobre a querela dos universais pode-se dizer que ela não foi propriamente resolvida, mas praticamente “cortada pela raiz” e posta de lado em bloco juntamente com uma série de outros conceitos da tradição escolástica. Naturalmente, o problema que deu origem a essa querela e, mais ainda, ao conceito de universal, este permaneceu vigente. Mas foi remodelado em novos termos, de modo que o novo debate que se instala sobre noções comuns (Spinoza), termos gerais (Locke ) e outras tantas outras alternativas dificilmente pode ser compreendido como uma solução em sentido próprio à famosa querela dos universais.

IHU On-Line – Que semelhanças e diferenças apontaria entre Spinoza e Morin ? 

Lia Levy – Bem, essa é uma aproximação que fiz há muito tempo com o primeiro volume do livro La méthode e que hoje me parece muito forçada. De qualquer modo, a ideia geral era simplesmente chamar a atenção para o fato de que a mudança epistemológica apontada por Edgar Morin no que se refere à ciência do século XX, em particular à física quântica, envolve um modelo epistêmico semelhante àquele desenvolvido por Spinoza na segunda parte da Ética, em particular na chamada “pequena física” após a proposição 13. Evidentemente, e nunca é demais insistir, não se trata de uma antecipação de resultados ou mesmo de teses ou problemas, mas antes de uma concepção ou modelo de ciência.

Meu interesse com essa aproximação, devo confessar, não era advogar em defesa da contemporaneirade ou atualidade do pensamento de Spinoza por oposição ao caráter ultrapassado do pensamento cartesiano, como fez Antonio Damásio em seus livros de divulgação científica. Antes, meu intuito consistia em sugerir que talvez a pós-modernidade não fosse tão pós-moderna afinal...

IHU On-Line – Quais são as maiores contribuições desse filósofo para a filosofia de nosso tempo?

Lia Levy – De um modo geral, tenho pouco interesse pelas eventuais contribuições que filósofos do passado possam ter para a filosofia de nosso tempo. Como nós, também eles foram, em sua época, bastante atentos aos eventos à sua volta e igualmente sensíveis ao novo e à tradição, com as devidas variações de grau segundo suas respectivas “personalidades teóricas” por assim dizer. Nesse sentido são, como seremos, datados e ultrapassados. Por outro lado, acredito que sua sobrevida para além de suas épocas e de suas histórias não se deixe reduzir apenas aos inúmeros e casuais pequenos acidentes e eventos de diversas ordens, particularmente institucionais. Ela depende ainda de algo como a genialidade, o que quer isso signifique. Ao menos a tomo como uma propriedade das obras primas em serem a um só tempo enraizadas em seu momento histórico e extemporâneas. E enquanto tais terão sempre a contribuir para a reflexão filosófica: na medida em que são interlocutores perenes para as gerações vindouras.

No caso de Spinoza, penso que há pelo menos duas questões sobre as quais temos a aprender com seus textos e argumentos: o problema da natureza da liberdade e de sua relação com o necessitarismo próprio ao discurso científico e o problema da possibilidade de um tratamento científico, no sentido em que hoje compreendemos esse adjetivo, da mente humana que não seja necessariamente reducionista, ao menos no que se refere ao modelo explicativo. Em outras palavras, penso que suas teorias da liberdade e da consciência de si como fenômeno natural podem fornecer modelos de soluções adaptáveis aos nossos problemas.

Em todo caso, gostaria de enfatizar que existe uma contribuição fundamental que é aportada por todos os filósofos da tradição: o estudo cuidadoso de seus textos e argumentos nos deslocam da estreiteza de nossas crenças e teorias, permitindo uma reflexão mais ampla e fértil. Mesmo que não seja suficiente, essa é sem dúvida uma condição da extemporaneidade e da genialidade.

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