Edição 397 | 06 Agosto 2012

O naturalismo radical de Spinoza

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Márcia Junges

Bernardo Ribeiro, filósofo, analisa a crítica de Hume a Spinoza e as influências que Maquiavel exerceu sobre a obra do pensador holandês

De acordo com o filósofo Bernardo Bianchi Barata Ribeiro, “uma boa leitura do Tratado da natureza humana nos permite perceber que Hume caracteriza o pensamento de Spinoza tanto mais negativamente quanto mais lhe interessa desqualificar, por via indireta, a doutrina teológica da imaterialidade da alma, que ele equipara ao spinozismo”. O pesquisador acentuou que Hume argumenta “que as nossas ideias não são acidentes de uma substância material nem – como supõe a hipótese idealista – de uma substância imaterial”. E completa: “Certamente não poderíamos considerar Spinoza um cético, o que quer dizer que não é pela via do ceticismo que podemos apreender os pontos de convergência entre ele e Hume. Mas, sim, pela via de um naturalismo radical”. As declarações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Bernardo é mestre em Ciência Política pelo IUPERJ e doutorando em Ciência Política pelo IESP-UERJ com a tese Táticas de liberdade: por uma teoria imanente das transformações sociais. No momento, está estudando na Universidade Paris-1 Sorbonne.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Por que Hume  se refere à “hipótese hedionda” de Spinoza? Que hipótese seria essa?

Bernardo Bianchi Barata Ribeiro – É bem verdade que as referências feitas por Hume a Spinoza no seu Tratado da natureza humana (TNH) não são nada elogiosas. Afinal, ele o chama de “famoso ateu”, “universalmente abominável”, e trata seu sistema filosófico como sendo um “verdadeiro ateísmo” e “uma hipótese hedionda” , como bem lembrou a pergunta. É também verdade – e isso fica evidente pelo andamento do TNH – que Hume está a jogar com o senso comum, mobilizando os preconceitos da época em torno de Spinoza para descontruir a posição que lhe cabe efetivamente combater. Segundo Richard Popkin , na seção 5 da Parte IV do Primeiro Livro do Tratado da natureza humana, que trata da imaterialidade da alma e em que se concentram as referências a Spinoza, fica evidente que a estratégia argumentativa de Hume consiste em atacar a perspectiva teológica, então em voga, demonstrando o quanto ela se aproximava, malgrado seu, da perspectiva de Spinoza, universalmente considerada herética e absurda. 

Conforme afirma Hume, o “ateísmo” de Spinoza, a “hipótese hedionda”, consiste na doutrina da simplicidade do universo e na consequente unidade da substância, da qual derivam, segundo Spinoza, a um só tempo, o pensamento e a matéria. Uma vez que se trata de algo perfeitamente simples e indivisível, a substância existe em toda parte, sem que jamais exista em um local determinado. Toda sensação e toda reflexão não são, pois, senão modificações daquela mesma e única substância . A partir dessa breve exposição da doutrina de Spinoza – feita, como o admite Hume, com base na leitura do verbete “Spinoza”, que integra o Dicionário histórico e crítico, de Pierre Bayle –, o filósofo escocês pretende demonstrar a proximidade dessa posição, tão mal afamada, com relação à prestigiosa posição dos teólogos, que sustentavam a imaterialidade da alma. Se Hume tem razão, então a pia concepção teológica nada mais é do que pura heresia, tão absurda quanto as infames opiniões de Spinoza. Em suma, uma boa leitura do TNH nos permite perceber que Hume caracteriza o pensamento de Spinoza tanto mais negativamente quanto mais lhe interessa desqualificar, por via indireta, a doutrina teológica da imaterialidade da alma, que ele equipara ao spinozismo. 

Wim Klever, que escreveu dois excelentes artigos sobre a relação entre Hume e Spinoza , tem uma opinião mais ousada a respeito das motivações que levaram o filósofo escocês a refutar seu colega holandês. Segundo ele, Hume, que era considerado um autor subversivo, procurou se distanciar de Spinoza para se proteger contra a acusação de ateísmo. Até aqui, todavia, tratamos apenas das estratégias argumentativas de Hume. É importante dirigirmos nossa atenção, também, ao próprio texto, para analisarmos do que, afinal, Hume está a falar. Pois bem; Hume nos diz:

“Apresentam-se dois sistemas diferentes de seres, aos quais estou supondo ser necessário atribuir uma substância ou base de inerência. Observo primeiro o universo dos objetos ou corpos: o Sol, a Lua e as estrelas; a Terra, os mares, plantas animais, homens, navios, casas, e outras produções da arte ou da natureza. Aqui aparece Spinoza, dizendo-me que todas estas coisas são apenas modificações, cujo sujeito de inerência é simples, sem composição e indivisível. Em seguida, considero o outro sistema de seres, o universo do pensamento, ou seja, minhas impressões e ideias. Ali observo um outro Sol, uma outra Lua, outras estrelas; outra Terra e outros mares, cobertos e habitados por plantas e animais, cidades, casas, montanhas, rios; e, em suma, todas as coisas que posso descobrir ou conceber no primeiro sistema. Quando pergunto sobre essas coisas, os teólogos se apresentam e me dizem que elas também são modificações, e modificações de uma substância única, simples, sem composição e indivisível. E imediatamente sou ensurdecido por centenas de vozes que tratam a primeira hipóteses com execração e desprezo, e a segunda com aplauso e veneração. Dirijo minha atenção para essas hipóteses para descobrir qual a razão de tamanha parcialidade; e vejo que ambas têm o mesmo defeito: são ininteligíveis; e até onde podemos compreendê-las, são tão semelhantes que é impossível descobrir em uma qualquer absurdo que não se aplique também à outra” .

Substância material ou imaterial

Para Hume, tanto é falsa uma suposta opinião realista ou materialista, que deriva nossas percepções de uma substância material, quanto uma opinião idealista, segundo a qual nossas percepções seriam inerentes a uma substância imaterial – hipótese da imaterialidade da alma. Hume argumenta, portanto, que as nossas ideias não são acidentes de uma substância material nem – como supõe a hipótese idealista – de uma substância imaterial. Uma vez que não podemos, quer realizando uma investigação acerca da origem das ideias, quer partindo de uma definição filosófica, alcançar uma concepção satisfatória de substância, toda a questão relativa à materialidade ou imaterialidade da alma deve ser abandonada. Hume rejeita, pois, a questão se as percepções são inerentes a uma substância material ou imaterial. As percepções, segundo ele, existem por si mesmas; nada é necessário para sustentar-lhes a existência.

Ora, essa concepção está plenamente de acordo com Spinoza – não, é claro, com o Spinoza caricatamente retratado na passagem acima. Muito embora a natureza seja, segundo Spinoza, una, ou seja, ainda que não haja senão uma única substância, isso não quer dizer que a realidade seja simples, como afirma Hume. Da substância infinita decorrem, segundo Spinoza, infinitos atributos, dos quais conhecemos dois: pensamento e extensão. Há, entre os atributos, uma autonomia absoluta; tratam-se – no caso dos dois atributos em questão – de duas dimensões reciprocamente irredutíveis. Assim é que não há, entre os atributos, nem relação causal – o que significa que um corpo não dá origem a uma ideia nem o inverso – nem relação conceitual – o que quer dizer que um corpo não pode ser concebido por uma ideia nem o contrário. Enquanto modos expressivos do atributo pensamento, as ideias somente podem ser explicadas pela potência da natureza qua cogitans res – enquanto coisa pensante. Ou seja, o pensamento é irredutível à matéria.

As ideias não são, por conseguinte, modificações de uma substância corpórea indivisa – e isso quer na forma de uma totalidade material quer na forma de um corpo individual – que lhes seja preexistente. Mas isso não é tudo. Spinoza rejeita, mesmo, qualquer relação de anterioridade existencial ou antecedência conceitual entre as ideias e a mente. Afinal, a mente não é, para Spinoza, uma substância altaneira às ideias, que se fixariam nela como elementos exógenos e inermes. A mente, pelo contrário, é a própria ideia da estrutura e das variações de uma realidade bastante composta – o corpo. Então, conquanto haja uma autonomia entre pensamento e matéria, Spinoza nos diz que o “objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa” . Dizer que a mente é a ideia do corpo significa identificar-lhe a natureza complexa, pois, do mesmo modo como o corpo humano é composto por uma infinidade de outros corpos, da mente humana podemos dizer que ela “não conhece o próprio corpo humano e não sabe que ele existe senão por meio das ideias das afecções pelas quais o corpo é afetado” . Segue-se, também, que, se o homem consiste de uma mente e de um corpo, este corpo não existe senão tal como o sentimos . Em suma, o que Spinoza quer dizer é que nada se apresenta à mente senão percepções, senão ideias de afecções. Hume não poderia estar mais de acordo com essa “hedionda hipótese”.

IHU On-Line – Haveria, então, pontos de convergência entre Spinoza e Hume? O ceticismo seria um traço em comum? 

Bernardo Bianchi Barata Ribeiro – A julgar pela história das ideias, que dá conta da materialidade das trocas intelectuais, a relação entre os sistemas de pensamento spinozista e humeano seria algo fortuita e mesmo frouxa. Talvez mesmo dependente da inclusão de um terceiro elemento, de um denominador comum, capaz de dotar este vínculo – em verdade, triangular – de alguma consistência, de uma genuína pertinência. Refiro-me, muito especialmente a Maquiavel . Mas para uma investigação propriamente filosófica, ainda que se tratasse de sistemas radicalmente deslocados no tempo e no espaço, a importância deveria recair, ainda assim, sobre a conveniência e as afinidades existentes entre as ideias dos diferentes autores, e não sobre a substância concreta das trocas havidas.

Ao nos transferirmos para o âmbito da filosofia, todavia, deparamo-nos com novas dificuldades relativas, desta vez, às tradições filosóficas em que estes autores se situam. E certamente não poderíamos considerar Spinoza um cético, o que quer dizer que não é pela via do ceticismo que podemos apreender os pontos de convergência entre ele e Hume. Mas, sim, pela via de um naturalismo radical, ou seja, pela recusa de uma cosmologia dogmática que confira ao humano um lugar à parte dentro da natureza, como se este fosse a mais perfeita das realizações naturais e como se detivesse, sobre as demais coisas tanto quanto sobre si mesmo, uma autoridade suprema; autoridade que recebe o nome de livre arbítrio. 

Em suma, o naturalismo de que falamos deve envolver uma atenção especial à inscrição do humano na natureza e a rejeição de qualquer privilégio que o separe dela; deve implicar, antes de mais, a recusa da ideia de livre arbítrio. O exercício das atividades intelectuais humanas deve, assim, ser compreendido sob a luz das mesmas leis que entendemos reger o restante da natureza. No campo propriamente ético, isso se conecta à necessária recusa de qualquer postulado moralista. Não se trata jamais de exigir que os homens queiram algo diferente daquilo que querem. Saímos, pois, do marasmo das invectivas voluntaristas que apelam para uma capacidade de autorregularão individual sobranceira à natureza. Nenhum ensinamento filosófico, nenhuma razão, é capaz de anular a potências das paixões.

Oposição ao cartesianismo

Ao dizer, pois, que “a razão é e deve ser apenas a escrava das paixões” Hume coloca em cena a prioridade de uma economia afetiva em relação ao enquadramento racional, o que permite que o conectemos diretamente a Spinoza que, de forma comparável, afirma: “não nos esforçamos, queremos, apetecemos ou desejamos algo porque julgamos que é bom, senão que, ao contrário, julgamos que algo é bom porque nos esforçamos por ele, queremo-lo, apetecemos e desejamos”. É verdade, portanto, que, porque desejamos certa coisa, esta se nos apresenta como útil. Ou seja, a razão não possui qualquer império sobre as paixões. Nisso podemos perceber uma forte oposição ao cartesianismo que atribui à mente, dotada de livre arbítrio, a capacidade para interferir nas paixões e, mesmo, dominá-las.

Não é possível, portanto, conceber o humano como causa primeira, alheio ao encadeamento de acontecimentos que atravessa a natureza. Como tudo o mais, os homens são determinados por outras coisas. Eles não constituem uma realidade intocável, cimeira; um império. Na medida mesma em que estão submetidos às mesmas leis de determinação que abrangem as demais coisas singulares, os homens se revelam como potências abertas e permeáveis às determinações externas. Montaigne , criticando como de hábito a pretensão humana e fiel, também ele, a certo naturalismo, afirma ser necessário “recolocarmo-nos entre as demais criaturas. Não estamos acima nem abaixo delas. Tudo o que existe sob os céus está sujeito à mesma lei e às mesmas condições”. Do mesmo modo, Hume insiste: “há um curso geral da natureza nas ações humanas, assim como nas operações do sol e do clima”.

IHU On-Line – Quais são os grandes aspectos nos quais Maquiavel influenciou Spinoza? Por que o senhor considera iconoclastas as obras desses pensadores? Em que medida a teoria da causalidade spinozista é filiada à teoria da história de Maquiavel?

Bernardo Bianchi Barata Ribeiro – Dois trabalhos relativamente recentes dão conta da relação entre Spinoza e Maquiavel – Il tempo e l’occasione (2002), de Vittorio Morfino, e Tumulti e indigntatio (2004), de Filippo Del Lucchese. No seu livro, Morfino procura demonstrar a amplidão da influência maquiaveliana na obra de Spinoza. Segundo ele, os traços deixados por Maquiavel podem ser fixados em três níveis diferentes: i) a camada mais explícita, que concerne as duas referências que Spinoza faz a Maquiavel no Tratado político (TP); (ii) um nível implícito, que diz respeito à repetição estratégica de argumentos maquiavelianos não só no TP, mas também no Tratado teológico-político (TT-P); e (iii) finalmente, Morfino nos fala também de um extrato ontológico, presente na Ética, e que dá conta das importantes modificações conceituais presentes nesta obra com relação ao Tratado de correção do intelecto. Eu vou me servir dessa sequência estabelecida por Morfino para expor, de um modo um pouco diferente, as contribuições, ou melhor, os pontos de afinidade entre Spinoza e Maquiavel.

(I) Como se vê, Morfino nos chama a atenção para o fato de que o legado florentino não pode ser reduzido tão somente ao âmbito político. Mas, mesmo neste, a influência de Maquiavel exorbita o tratamento habitual. E isso porque, desde o primeiro capítulo, onde se encontra a primeira referência expressa ao secretário florentino, e onde Spinoza trata das diferenças entre os filósofos e os políticos, a vizinhança entre os autores concerne, muito além de uma simples polêmica antiutópica – como tem sido destacado pela crítica habitual –, uma subversão completa da própria dicotomia entre filosofia e política. Afinal, Maquiavel não é mais um político. Na verdade, ele sequer pode ser elencado entre os políticos, uma vez que a prática destes é ditada mais pelo medo do que pela razão. Ora, Maquiavel, segundo Spinoza, daria conta da ontologia política, de uma teoria que, em descrevendo la verità effetuale – como é seu propósito –, é, ao mesmo tempo, instrumento de libertação contra o preconceito religioso. Ou seja, Maquiavel não visa ecoar o discurso da reprodução dos mecanismos de dominação. A sua obra tem por fim descrever as relações imagético-passionais que atravessam a multidão, relações que, do mesmo modo que podem ensejar a dominação, podem também garantir a liberdade. E nisso ela não é apenas subversiva, pois ela não apenas denuncia o fato da tirania como também descreve os dispositivos imaginativos e afetivos que fazem com que o campo político possa ensejar a dominação. Nesse sentido, ele contribui para a libertação coletiva, mas não à maneira de um denuncismo gesticulatório, não à maneira de uma iconoclastia vulgar, que se detém na multiplicação das acusações impingidas ao real. Eles são certamente iconoclastas, mas iconoclastas críticos, que vão além das meras invectivas. Para ser radicalmente revolucionário, é preciso também certa dose de generosidade para compreender que a dominação não é o resultado de um mero jogo de má-fé, mas, sim, o produto de um conjunto determinado de encontros. É preciso fazer uma cartografia desses encontros; saber como eles germinam; e desenvolver mecanismos para evitá-los. Afinal, não basta eliminar o tirano, é preciso eliminar também as causas da tirania .

Perspectiva de multidão

(II) No TT-P, a descrição da estrutura passional do povo judeu, com fortes cores maquiavelianas, representa um claro tensionamento com a perspectiva contratualista, presente no texto, ao menos, em nível terminológico. No TP, os traços desta herança jusnaturalista, do direito natural e do pacto de constituição do Estado são suprimidos em benefício do tratamento da multidão como elemento fundamental de constituição do Estado. Emerge, então, uma verdadeira “perspectiva da multidão” , que inscreve a reflexão política na esfera da multitudinis potentia, isto é, do regime afetivo e dos hábitos do corpo coletivo. A esse respeito, o tratamento que Spinoza confere ao problema da dissolução do Estado, no capítulo IV do TP, é emblemático, pois a análise recai na dinâmica passional, tomando em consideração as consequências da indignação popular, tema recorrente na obra de Maquiavel. 

Num pequeno texto publicado no Brasil , Laurent Bove havia destacado precisamente esta inflexão, que diz respeito à inversão do modelo hobbesiano do contrato – a um só tempo jusnaturalista, pois implica a superação jurídica do estado de natureza pelo estado civil, e juspositivista, na medida em que a definição da salus populi passa a depender da figura do soberano – em prol do modelo maquiaveliano da guerra. Isso sugere que a fundação e a dissolução da sociedade devem ser investigadas a partir da estrutura passional da multidão, e não de um cálculo utilitário, mero sopesar de vantagens e desvantagens, de inspiração hobbesiana. Colocar em cena o modelo maquiaveliano da guerra equivale a reafirmar a intimidade da relação causal envolvendo multidão e soberania; relação esta que não pode ser explicada à luz de um modelo transitivo, mas sim de um modelo imanente, o que quer dizer que a soberania se define pela potência da multidão e que, portanto, o estado de natureza jamais cessa de existir. É por essa razão que Bove retoma, de forma invertida, a famosa frase de Clausewitz : “a política, na esfera da ordem civil, é a continuação da guerra por outros meios...”.

Também Del Lucchese privilegia – e creio que é sobre este ponto que recai sua maior contribuição –, a partir deste entrecruzamento entre Spinoza e Maquiavel, uma concepção da potentia enquanto crise, o que envolve uma revalorização do conflito. A crise não se opõe à potência, mas é, antes, “uma expressão sua, um modo da sua afirmação” . Assim é que “a crise com a qual se deparam homens e Estados, príncipes e povos, não representa a exceção perante uma regra, a patologia diante da fisiologia da vida política”. Há, pois, uma dinâmica recursiva entre política e crise, o que leva Maquiavel a uma valorização dos conflitos sociais e políticos como catalisadores da política. Nesse sentido, Del Lucchese demonstra, como também o fizera Bove, que não estamos, de forma alguma, dentro do modelo hobbesiano do contrato, e Spinoza é legatário desta sensibilidade.

Antifilosofia da história

(III) Mas é no âmbito mais propriamente ontológico que a relação entre a teoria da causalidade spinozana reflete a teoria da história maquiaveliana, tal como sugerido pela pergunta. A percepção dessa relação é uma das principais e mais originais contribuições de Morfino. Segundo ele, há em Maquiavel uma antifilosofia da história, que “refuta a concepção da temporalidade entendida como sucessão linear, serial dos eventos”  – segundo um plano concebido segundo fins –, e para a qual contingência e necessidade se implicam reciprocamente. A recorrência do tema da fortuna em Maquiavel significa a revalorização mesma da multiplicidade do existente, “o primado das relações entre as coisas sobre suas essências íntimas e o primado do aleatório sobre toda forma teológica ou teleológica da Causa” . A leitura de Maquiavel, empreendida durante a elaboração do TT-P, permitiu a Spinoza redefinir a sua concepção de causa a partir do termo connexio, abandonando a noção de série, hegemônica no Tratado de correção do intelecto, e que enseja uma concepção ainda finalista e discreta das relações entre as coisas. É justamente o conceito de conexão que nos permite entender uma causalidade imanente, em que um efeito jamais pode ser compreendido transitivamente – como discreto e externo – com relação a sua causa, abandonando uma ciência da essência enquanto profecia do existente. A ascendência da essência sobre a existência é colocada sob custódia – por assim dizer –, pois a essência não deve ser buscada na origem do ser, na forma de um fundamento, nem no seu fim, na forma de um telos. Ela somente é concebível, pelo contrário, a partir da produção de efeitos existentes, a partir da expressão de uma dada potência de agir . Compreender a história e a política através de uma lógica da causa como ordem (ordo sive connexio), como propõe Morfino a partir de Balibar , significa abandonar toda forma de filosofia da história, enquanto enquadramento baseado em séries simples e lineares, nos permitindo pôr em cena, antes, as relações infinitamente variáveis – e, portanto, aleatórias, entre as coisas. 

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