Edição 397 | 06 Agosto 2012

Sob a insígnia de um mal entendido

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Por Márcia Junges | Tradução: Benno Dischinger

“Reabilitação” da filosofia de Spinoza aconteceu via leitura marxiana e influenciou diretamente o conceito de multidão de Negri, observa Vittorio Morfino. É preciso atentar, também, para o “encontro” de Spinoza com Maquiavel, chave para compreender o pensamento do filósofo judeu

A leitura de Spinoza por Jacobi “constituiu um ponto de referência fundamental para autores como Schelling, Hölderlin e Hegel. No entanto, o mais importante é que tudo isso ocorreu sob a insígnia de um mal-entendido: Spinoza era lido como um filósofo do infinito e do eterno, nos quais toda realidade infinita e individual naufragava, e isso tornava impossível compreender a sua teoria do indivíduo, das paixões, da imaginação, da política e da história. Como diz Althusser, só com Marx começamos a intuir os traços desse rosto pisoteado, enterrado sob camadas de notas, Marx que, no entanto, não o conhecia bem. Seria a tradição marxista que restituiria, depois, toda a sua força”. A afirmação faz parte da entrevista a seguir, concedida por Vittorio Morfino à IHU On-Line, por e-mail. O pesquisador chama a atenção para a importância do pensamento de Spinoza na constituição do conceito de multidão de Antonio Negri, que captou a “centralidade do conceito de multidão na teoria política de Spinoza”. Além disso, reivindica o legado de Maquiavel como fundante do sistema spinozano.

Vittorio Morfino é italiano e leciona na Università degli Studi di Milano-Bicocca, em Milão, Itália. Cursou doutorado em Ciência Política na Universidade Paris VIII, na França. De suas obras, destacamos: Substantia sive Organismus (Milano: Guerini, 1997); Sulla violenza. Una lettura di Hegel (Como-Varese: Ibis, 2000); Il tempo e l'occasione. L'incontro Spinoza Machiavelli (Milano: Led, 2002), Incursioni spinoziste (Milano: Mimesis, 2002) e Il tempo della moltitudine (Roma: Manifestolibri, 2005).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Quais são as intersecções, os nexos existentes entre Spinoza e Simondon?

Vittorio Morfino –
O principal ponto de interseção entre Simondon  e Spinoza reside no conceito de “transindividual”, que Simondon formulou para pensar o ser social para além da alternativa holismo/individualismo. Balibar considera que esse conceito permite identificar a diferença constituída pela filosofia spinozana tanto com respeito à tradição individualista, que pensa o indivíduo, o sujeito, como pré-existente à relação social, como com respeito à tradição hegeliana, que pensa o indivíduo como pars totalis, expressão da totalidade. Em Spinoza, os indivíduos são atravessados e constituídos pelas relações, sem que essa trama assuma a forma de um espírito objetivo entendido em sentido hegeliano.


IHU On-Line – Qual é a atualidade de ambos os pensadores no debate filosófico contemporâneo?

Vittorio Morfino –
O grande projeto de Simondon foi o de tentar pensar todo o edifício das ciências naturais e humanas à luz do conceito de “individuação”: ele propõe uma espécie de sistema propriamente dito que aborda a realidade física, biológica, psicológica e social à luz desse conceito e do seu primado sobre o conceito de indivíduo, isto é, do indivíduo que precede à relação. A sua grandeza e a sua atualidade estão justamente nessa tentativa titânica de construir um grande sistema ao modo da tradição idealista alemã: essa tentativa deve ser relançada e revivida, a meu ver, em termos rigorosamente materialistas.


IHU On-Line – Qual é a influência de Spinoza sobre os filósofos alemães? Quais foram os pensadores cuja influência spinozana é mais forte?

Vittorio Morfino –
A história da influência de Spinoza na Alemanha é de grande interesse: depois de ter estado presente na cultura oficial por quase um século exclusivamente sob a forma da refutação e da distância que todo filósofo deveria tomar do seu sistema para poder falar publicamente (cf. os grandes exemplos de Leibniz e Wolff ), com as Cartas sobre a doutrina de Spinoza, de Jacobi, Spinoza se tornou por alguns anos o centro do debate filosófico, e a leitura de Jacobi constituiu um ponto de referência fundamental para autores como Schelling, Hölderlin e Hegel. No entanto, o mais importante é que tudo isso ocorreu sob a insígnia de um mal-entendido: Spinoza era lido como um filósofo do infinito e do eterno, nos quais toda realidade infinita e individual naufragava, e isso tornava impossível compreender a sua teoria do indivíduo, das paixões, da imaginação, da política e da história. Como diz Althusser, só com Marx começamos a intuir os traços desse rosto pisoteado, enterrado sob camadas de notas, Marx que, no entanto, não o conhecia bem. Seria a tradição marxista que restituiria, depois, toda a sua força.


IHU On-Line – É possível considerar a filosofia de Spinoza através de uma ontologia da relação? Por quê?

Vittorio Morfino –
A expressão “ontologia da relação” foi usada por Balibar tanto em referência à filosofia spinozana como em referência a Marx. Eu acredito que se trata de uma sugestão extremamente interessante para inverter o ponto de vista sobre a filosofia spinozana: se toda a tradição interpretativa do idealismo alemão enfatizou a filosofia spinozana como filosofia da substância única, o “abismo da única substância”, para usar uma célebre expressão hegeliana, na perspectiva de Balibar, que eu assumi totalmente, trata-se de pensar a pluralidade das realidades modais. Ora, o modo se define como aquilo que é em outro, ou seja, como aquilo que existe como referência a um outro, como relação com um outro. Toda realidade individual, portanto, deve ser concebida como trama relacional, e nesse sentido é interessante ler as paixões não tanto como propriedades individuais, mas sim como relações transindividuais, ou seja, relações que existem não dentro do indivíduo, mas “entre” os indivíduos, constituindo-os como tais.


IHU On-Line – Qual é a influência de Spinoza sobre o conceito de multidão, de Negri?

Vittorio Morfino –
Mais do que uma influência de Spinoza sobre o conceito de multidão de Negri, parece-me que podemos dizer que Negri foi o primeiro, no seu grande texto A anomalia selvagem, a captar a centralidade do conceito de multidão na teoria política de Spinoza, a importância da sua função anti-individualista e anticontratualista. Certamente, a descoberta negriana da multidão em Spinoza teve efeitos de retorno sobre a sua própria teoria: no momento da derrota do movimento operário e do colapso de qualquer visão teleológica da história que leva ao comunismo, Negri faz da multidão na sua teoria uma espécie de absoluta positividade ontológica, um eterno presente do comunismo, que permanece para além das desventuras da história.


IHU On-Line – Nesse sentido, o que é a temporalidade plural e a multidão?

Vittorio Morfino –
Eu retomei o conceito de não contemporâneo e de temporalidade plural do Bloch  de Herança do nosso tempo e de Ler o Capital, de Althusser, precisamente para criticar a concepção negriana da multidão: esse monólito ontológico que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da história e que, de fato, torna impensável uma política senão como manifestação imediata da sua essência. Na realidade, se pensarmos a multidão não como um eterno presente, mas como um cruzamento de tempos, tanto reais como imaginários, a política deve ser pensada como intervenção na conjuntura, intervenção sempre contingente, de um tempo sobre outros, cuja eficácia nunca pode ser garantida a priori por teoria alguma. A política volta a ser, no sentido maquiaveliano, o risco assumido pela virtude em uma conjuntura dada.


IHU On-Line – Como podemos compreender o “encontro” de Spinoza com Maquiavel? Quais são os traços fundamentais de proximidade entre seu pensamento?

Vittorio Morfino –
O encontro de Spinoza com Maquiavel é de fundamental importância para compreender todo pensamento spinozano: é o encontro com Maquiavel, e mais em geral o encontro com a política e com a história ocorrido na altura da escrita do Tratado teológico-político, que permitiu que Spinoza passasse de um modelo ontológico lógico-matemático a um modelo ontológico histórico-político. A realidade não é mais conceitualizável como no Tratado da correção do intelecto através de uma cadeia lógica que liga as essências das coisas para além das circunstâncias da sua existência, mas deve ser pensada como cruzamento complexo e conflitante de potências, cruzamento no interior do qual o conceito maquiavélico de “ocasião” (ocasione) desempenha um papel fundamental. Pode-se talvez repetir o juízo de Althusser, segundo o qual Spinoza não fez nada mais do que pensar a filosofia implícita nos escritos políticos maquiavélicos, uma filosofia rigorosamente materialista da política e da história.

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