Edição 397 | 06 Agosto 2012

A atualidade do legado político spinozano

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Márcia Junges

Num país como o Brasil, cuja bancada religiosa é tão expressiva, ler o Tratado teológico-político seria importante, aconselha César Schirmer dos Santos. Crítica do domínio da população pelos religiosos através do medo é um dos traços da obra do pensador holandês

Um pensador cuja influência está por toda parte, embora em parte alguma “encontramos uma apreciação do projeto spinozano em sua integridade”. A constatação é do filósofo César Schirmer dos Santos em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Sua filosofia da mente, explica o pesquisador, “é uma das mais férteis portas de entrada para a discussão da relação entre filosofia e ciências cognitivas”. Apesar de se aproximar dos estoicos ao propor que devemos aceitar aquilo que não podemos mudar, Spinoza “está distante ao menos da vulgata do estoicismo, isto é, de uma filosofia da resignação fatalista ante o destino”. Schirmer explica: “é importante notar que o projeto ético de Spinoza tem especificidades, as quais são mais visíveis na sua crítica ao status quo teológico-político. Spinoza não é nenhum defensor da revolução, mas ainda assim quer que nos libertemos dos sacerdotes que nos oprimem através das emoções tristes, como o medo. A alegria, contraparte emotiva do aumento da nossa capacidade de agir, é fundamental em Spinoza”. O pensador holandês teceu uma potente crítica ao domínio dos religiosos sobre a população através do medo, o que o colocaria como “um dos pais da era secular moderna”, cindindo a política da religião tradicional. “Um país que conta com uma gorda e influente bancada religiosa no parlamento nacional precisa ler o Tratado teológico-político urgentemente”, alfineta Schirmer.

César Schirmer dos Santos é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde também cursou mestrado e doutorado com a tese Anti-individualismo e memória: mente, ambiente, contexto e linguagem. Docente na Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, é um dos organizadores da obra V Colóquio Internacional de Ética e Ética Aplicada: Caderno de Resumos (Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2012).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual é o “lugar” ocupado por Spinoza junto aos grandes racionalistas do século XVII, Descartes e Leibniz ?

César Schirmer dos Santos –
Em Descartes, Spinoza e Leibniz temos três concepções radicalmente diferentes do que é, para uma coisa, ser a coisa que ela é. Para Descartes, a tipificação de uma coisa depende dos seus atributos: Deus tem suma perfeição, almas pensam e corpos são tridimensionais. Para Spinoza, a realidade de uma coisa como substância requer sua absoluta independência, enquanto a realidade de uma coisa como um indivíduo ou coisa singular depende do seu esforço para manter-se ou a mesma coisa, ou alguma coisa mais potente. Para Leibniz, uma substância é caracterizada por todos os predicados que de fato lhe pertencem. Dentre esses filósofos, Spinoza é aquele que abre caminho para uma visão da realidade como sendo uma única coisa, sem distinção última entre Deus infinito e a “criação”. Mas Spinoza é, também, aquele que abre caminho para a concepção moderna de republicanismo liberal. Aqui a maior influência é o empirista Hobbes, em vez dos racionalistas. Spinoza é o filósofo que vê o homem como aquilo que há de mais útil para o homem, não por causa de alguma “mão invisível” do mercado, mas porque nada é mais útil a um ser do que o seu semelhante. Em Spinoza, a utilidade de um homem para outro homem nada tem a ver com seu uso como meio para um fim. O ponto é outro, tendo a ver com o fato de que quanto mais um homem realiza sua essência, mais ativo é, e quanto mais ativo é, mais esclarecido é, de modo que a luta de cada um pelo próprio esclarecimento e pelo esclarecimento dos outros é a meta fundamental da vida em sociedade. É como se Spinoza antecipasse o foco do prêmio Nobel Amartya Sen  e da filósofa Martha Nussbaum  nas capacidades humanas, frisando que a meta da sociedade deve ser possibilitar a cada um a concretização dos próprios talentos e potencialidades, pois assim sendo nossa própria felicidade é melhor garantida.


IHU On-Line – Em que medida sua filosofia se aproxima e se distancia desses pensadores?

César Schirmer dos Santos –
Spinoza se expressa pela retórica cartesiana. Mas Spinoza não é cartesiano – talvez exatamente por levar o cartesianismo às últimas consequências. Descartes diz que substância é aquilo cuja existência depende apenas de si mesma, mas também diz que uma mente criada por Deus é uma substância. Ele não deveria, coerentemente, ter antecipado o spinozismo, e defender que uma mente finita não é uma substância, dado que depende de Deus para existir? O meditador de Descartes diz que sabe que ele mesmo existe, como ser pensante, mas limitado. Ele não deveria, coerentemente, ter concluído que se ele mesmo existe, então outros com a mesma natureza existem, dado que a limitação de algo de certa natureza só pode ser por outras coisas da mesma natureza? Nessa e noutras questões, é como se Spinoza fosse tão atento a Descartes que pode usar sua teoria contra ele mesmo, o que nos dá o spinozismo, em vez de qualquer coisa que possamos chamar de cartesianismo. Isso não deve nos cegar para o fato de que Spinoza foi um pensador sumamente original. Sua filosofia da mente, na qual as emoções são expressões da nossa própria essência, e não de grilhões da “nossa” prisão em um corpo supostamente alienígena, tem méritos próprios e é uma das mais férteis portas de entrada para a discussão da relação entre filosofia e ciências cognitivas.


IHU On-Line – Quais são os principais pensadores que Spinoza influenciou?

César Schirmer dos Santos –
A questão da influência de Spinoza sobre outros pensadores é curiosa, pois o usual é que seus defensores e seus opositores pincem elementos isolados do seu pensamento seja para louvá-los, seja pare reprová-los – silenciando sobre o resto. Assim, vemos os libertinos materialistas aplaudindo a identificação entre corpo e alma, mas silenciando sobre a referência de Spinoza a Deus. Vemos também os religiosos conservadores frisando elementos da filosofia spinozana que são desintegradores da moral tradicional, mas silenciando sobre as mais importantes conclusões éticas e religiosas do seu projeto. De modo que a influência de Spinoza está por toda a parte, mas em parte alguma encontramos uma apreciação do projeto spinozano em sua integridade.


IHU On-Line – Que nexos são possíveis entre a filosofia de Spinoza e o estoicismo? Essa é uma aproximação legítima?

César Schirmer dos Santos –
Spinoza e os estoicos partilham uma moral metafísica, isto é, um projeto ético que foca na atitude a ser tomada ante o destino. Tal como os estoicos, Spinoza frisa a importância de aceitar aquilo que não podemos mudar. Mas é importante notar que o projeto ético de Spinoza tem especificidades, as quais são mais visíveis na sua crítica ao status quo teológico-político. Spinoza não é nenhum defensor da revolução, mas ainda assim quer que nos libertemos dos sacerdotes que nos oprimem através das emoções tristes, como o medo. A alegria, contraparte emotiva do aumento da nossa capacidade de agir, é fundamental em Spinoza, o que deve nos fazer ver que Spinoza está distante ao menos da vulgata do estoicismo, isto é, de uma filosofia da resignação fatalista ante o destino.


IHU On-Line – Qual é a atualidade de seu pensamento no século XXI e que proposições fundamentais continuam instigando a pesquisa filosófica?

César Schirmer dos Santos –
Spinoza é muito atual. Um caso exemplar é o texto do escólio da proposição 2 da terceira parte da Ética, no qual Spinoza diz que os defensores da existência do livre arbítrio se precipitam, dado que ignoram o que o corpo pode fazer. Se lemos esse texto junto do artigo que Chun Siong Soon e colaboradores publicaram na revista Nature Neuroscience de maio de 2008, no qual se mostra que é possível prever uma “decisão livre” com cerca de dez segundos de antecedência, só podemos louvar sua prudência filosófica ante aquilo que é digno de pesquisa empírica.
Mas Spinoza é atual, antes de tudo, na política. Vários filósofos discutem um “retorno à religião”, o qual não é retorno algum, sendo antes uma novidade midiática. Com sua crítica detalhada do domínio dos religiosos sobre o público através do medo, Spinoza é um dos pais da era secular moderna, dando fundamentos para separarmos a política da religião tradicional, dado que a política deve ser uma arena dominada pela alegria, isto é, pelo poder de cada parte da sociedade, pela comunidade livre, pela democracia, pelo esclarecimento. Spinoza é o filósofo que nos mostra que os sacerdotes não podem ser figuras legítimas de Deus, dado que se distinguem das pessoas comuns pelo ódio, enquanto estariam cheios de amor, caso fossem iluminados pela luz divina. Um país que conta com uma gorda e influente bancada religiosa no parlamento nacional precisa ler o Tratado teológico-político urgentemente.

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