Edição 198 | 02 Outubro 2006

Um debate sobre Vieira, cristianismo e política nacional

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IHU Online

O Prof. Dr. Luiz Felipe Baêta Neves Flores, do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, participou na última semana do Seminário Internacional A Globalização e os Jesuítas, realizado na Unisinos. Ele ministrou, no dia 26 de setembro de 2006, a conferência Os soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Após a explanação, o professor concedeu a entrevista que segue à revista IHU On-Line.


Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense, Baêta Neves é mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor pela Université de Paris V (René Descartes), da França.

Entre seus livros publicados, citamos Padre Antonio Vieira: catálogo do acervo da Biblioteca Nacional (org.). Rio de Janeiro: Eduerj/Fundação Biblioteca Nacional, 1999; Presença do Padre Antonio Vieira (org.). Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2001; Terrena Cidade Celeste: Imaginação social jesuítica e Inquisição. Rio de Janeiro: Atlântica , 2003; Transcendência, Poder e Cotidiano - As Cartas de Missionário do Padre Antonio Vieira. Rio de Janeiro: EDUERJ/ Atlântica, 2004.

IHU On-Line - O senhor poderia explicar melhor o tema Os soldados de Cristo na Terra dos Papagaios, apresentado no Seminário A Globalização e os Jesuítas, na Unisinos?

Baêta Neves
- Os soldados de Cristo são os jesuítas. E “terra dos papagaios” era um dos primeiros nomes do Brasil, porque os índios repetiam as palavras em latim que eram ensinadas pelos jesuítas. Minha dissertação de mestrado se intitula O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Falo do combate dos inacianos, que tem uma origem “militar”, uma hierarquia muito forte, um sentimento de obediência e de comando muito pregnante. Assim sendo, eles são aliados, pelo senso comum, a padrões militares de comportamento. É por isso que eu joguei com as palavras e chamei os inacianos de soldados. 

IHU On-Line - Qual a maior importância das obras proféticas e dos sermões de Antonio Vieira?

Baêta Neves
- No próximo ano, comemoramos os 400 anos de nascimento de Antonio Vieira. O mais interessante em suas obras proféticas é que nelas a consumação do final dos tempos seria a constituição de uma terrena cidade celeste, ou seja, uma sociedade que, mesmo estando na Terra, teria características celestes, em uma espécie de fusão desses dois planos. A expressão mais feliz que eu encontrei para isso foi “terrena-cidade-celeste”, que é a cidade onde a consumação dos tempos não é o final no sentido de extinção. Vai haver pelo menos, antes disso, a constituição de uma sociedade que é tão pagã quanto sagrada.
Os sermões de Vieira são inúmeros. Eu mesmo supervisei uma edição que tinha doze volumes de 450 páginas cada um e onde não estão todos os sermões. Mas, de maneira geral, nos sermões e até fora deles, Vieira e muitos cristãos achavam que a pessoa entenderia o mundo se conseguisse compatibilizar aquilo que está observando com uma cena bíblica, o que era um trabalho racional. Não é um trabalho mágico, místico ou por intuição. É por um determinado exercício da razão. Era preciso descobrir, o que não é uma coisa fácil; olhamos o mundo, enquadramos uma cena e depois disso temos que procurar na Bíblia algo semelhante. Quando isso fosse feito, teríamos compreendido o mundo. Para os jesuítas essa compreensão do mundo é uma parte da história. Os jesuítas são teleológicos, pragmáticos, sonhadores. Eles fazem tudo para chegar a um determinado fim. Por isso, muitas vezes, Vieira e os jesuítas foram atacados, porque os seus detratores dizem que eles usam os meios que forem necessários desde que os fins sejam justos e bons. A idéia de ação e movimento é fundamental para a Companhia de Jesus, uma ordem que se caracterizou no período colonial a seu modo e que hoje é uma ordem preocupada com a expansão do saber e com a ação social desse saber.
O estudo dos sermões não pode se confundir com uma análise dos sermões como eles “efetivamente” se deram. Os sermões são estudados, principalmente, mediante o registro que o próprio Vieira fez, às vezes 40, 50 anos depois dos sermões pronunciados. Então, nesses casos, é difícil saber qual era o efeito do sermão no lugar em que foi pronunciado, como diferentes segmentos da sociedade se apropriaram dos sermões, que incluíam textos, mas também incluíam oralidade, gestualidade, localização, encenação e formas de percepção diferenciadas. Ninguém está estudando nenhum fato “concreto”. Uma demonstração radical disso é que Vieira, no fim da vida, quando estava editando os sermões, resgatava alguns que ele havia guardado por inteiro, outros que ele guardou apenas com notas, e havia sermões que ele só tinha a data. Daí ele fazia o sermão 40 anos depois e publicava. Depois vem alguém e acha que está lendo algo relativo àquele período lá atrás. É preciso ver isso com cuidado.

IHU On-Line - Passando para a discussão conjuntural nacional, o senhor acredita que estamos vivendo um esvaziamento da ética no campo da política?

Baêta Neves
- Há um esvaziamento não do homem político, mas da política, do sistema político de uma maneira geral. Mas isso também gerou uma reação em muitos segmentos da sociedade de repúdio ao amoralismo da política, o que é um contraponto curioso. Exacerbamos em muitos segmentos da sociedade uma apatia que, na verdade, já existia, porque, na medida em que achamos haver um salvador, e um partido que apóia esse salvador, que são limpos, e vemos que a situação na realidade não é essa, e sim, de contaminação viral da corrupção e de práticas políticas deletérias, isso provoca repúdio em pessoas que, às vezes, não tem vocação política, mas tem formação ética e moral. Mesmo sem tendência política, as pessoas repudiam os métodos que são empregados na política, como poderiam repudiar métodos empregados na religião ou em outro âmbito qualquer.

IHU On-Line - O que está faltando no debate eleitoral?

Baêta Neves
- Sinto falta do silêncio dos candidatos. Preferia que ficassem todos calados. Mas é difícil responder a isso, porque temos dois campos, um dizendo o que o outro não diz. Sinto falta de um debate mais claro sobre os fundamentos racionais do imaginário social, ou seja, todas as utopias sociais que desde o neoliberalismo estão sendo atacadas como algo delirante, fora da razão, devem ser recuperadas, porque a imaginação social passa pelo sonho, pelo projeto, pelo futuro, e isso está sendo mal discutido. É importante que se discuta a recuperação – eu tenho horror à palavra “resgate” – do imaginário profético, sonhador, revolucionário, com base em um debate que veja isso como algo racional e que faz parte de toda a sociedade humana.

IHU On-Line - Em que medida os valores do cristianismo podem contribuir para a política atual da forma como ela se configura?

Baêta Neves
- Uma coisa é importante no cristianismo, pelo menos do meu cristianismo: o interesse na interpretação do mundo. Desse ponto de vista, esse cristianismo interpretativo se contrapõe a qualquer fundamentalismo religioso, inclusive cristão. O fundamentalista é alguém que imagina que não interpreta o texto sagrado. Na verdade, esta já é uma interpretação do texto sagrado e que passa por uma leitura dos fatos. Da mesma forma, o neoliberalismo diz que está vendo fatos. O liberalismo diz que as coisas são como são, que não adianta sonhar, que o socialismo é uma ideologia falida, que o igualitarismo é um sonho delirante. Isso é uma espécie de fundamentalismo político-econômico. Dizemos que não estamos interpretando, mas constatando a realidade. E quem não pensa assim, não está constatando a realidade, mas está delirando, deturpando, inventando, sonhando maleficamente sobre a realidade.

IHU On-Line - Como o senhor vê a conjuntura nacional política atual e quais as perspectivas que traça para os próximos quatro anos no Brasil?

Baêta Neves
- A impressão que eu tenho é que o governo Lula é um caso histórico extraordinário de peculato eleitoral espantosamente constituído. Uma pessoa, que foi eleita com as posições que ele mantinha, ligadas a tradições de esquerda, faz um governo absolutamente fundamentado no neoliberalismo e em práticas políticas espúrias, em busca da constituição de um poder central hipertrofiado, forte e eventualmente muito duradouro. Acho que o risco que se corre nessa eleição é a reeleição dele e a manutenção desse projeto neoliberal que, quando se aproxima das eleições, alia-se a práticas populistas.

IHU On-Line - Quais as alternativas que o senhor vê para a política brasileira? Ainda podemos apostar no sistema de representação partidária?

Baêta Neves
- O sistema representativo como expressão de um sistema democrático politicamente, é ruim, mas não se conhece outro sistema melhor. O erro teórico é imaginar que a representação política tenha que ficar quase que exclusivamente centrada em sistemas de representação ligados ao Congresso Nacional. A forma de composição do congresso deve ser mantida, aprimorada. Não há porque eliminá-la, até porque não há nada para colocar no lugar. Ao lado disso, deve haver maior participação da sociedade, mesmo que aparentemente “fora” da política, com atuação em outros campos que não são tão midiaticamente visíveis. Não é só como os movimentos sociais que conhecemos, mas há mil maneiras de a sociedade agir sem que essa atuação tenha um rótulo, um título político. Estamos habituados a imaginar que a sociedade se move, ou se mostra a si própria por meio do político, mas ela se mostra também por meio da efervescência social, do contato cotidiano, das formas de rede social que se compõem, se superpõem, como bem mostrou Michel Maffesoli, que é um autor fundamental para a compreensão do que ele chama de força social, que não se confunde com o poder, que seria o poder político. É preciso que se preste atenção nessa força social. Até porque uma das aulas que ela nos dá é de que é muito difícil imaginar ao contrário do que o populismo pensa, para onde isso que se chama de povo vai, porque freqüentemente ele não vai para onde esse racionalismo estreito, produtivista do século XIX imagina. É inútil tentar dominar o povo com uma espécie de previsão do seu comportamento ou porque se imagina que o povo quer comida e com isso fica quieto. Pode não ser assim. Graças a Deus o povo é errático, mutável, pode se “deixar dominar”, pode parecer uma massa de manobra facilmente conduzível, mas esse é um equívoco histórico.

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