Edição 395 | 04 Junho 2012

A atualidade do legado de Lutzenberger

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Márcia Junges

Uma década após a morte do ecólogo e ativista ambiental, suas ideias continuam pertinentes e dialogam com o mundo em que vivemos, pondera Lilian Dreyer. Em 1971 “Lutz” já questionava o cálculo do PIB e apontava o FIB como mais coerente

“Lutzenberger não foi apenas um ativista ambiental, foi um ecólogo, um homem excepcionalmente preparado, sob o ponto de vista de formação e informação, que desenvolveu um corpo de ideias que em nada se desatualizou”. A afirmação é da jornalista Lilian Dreyer, em entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, avaliando a importância do seu legado uma década após sua morte. Carinhosamente chamado por Lilian de “Lutz”, ele se caracterizava por ser “rápido na crítica e na cobrança”, algo que às vezes se dava de “forma passional”. Ao mesmo tempo em que tinha a fama de “brabo”, era “acessível, divertido e muito generoso”. E completa: “Lutzenberger, que não tinha nenhuma inclinação mística ou religiosa, traçou um caminho de profundo significado espiritual. Ele tanto percebeu quanto intuiu o quanto estávamos próximos de poder desfrutar de uma espécie de céu na Terra, se conseguíssemos recuperar um senso de humildade e reverência diante do que ele chamava o Grande Caudal da Vida”.

Jornalista, formada pela UFRGS, e escritora, Lilian Dreyer é diretora da Vidicom Edições, com atuação na área de produção audiovisual e desenvolvimento cultural. Vinculada ao cooperativismo e ecologia, atuou no Conselho Educativo da Cooperativa Ecológica Coolméia, de Porto Alegre, e, em 1996, assumiu o cargo de presidente do Conselho de Administração, permanecendo na função (eletiva e não-remunerada) até junho de 1999. É autora de, entre outros, Sinfonia Inacabada - A Vida de José Lutzemberger (Porto Alegre: Vidicom Audiovisuais Edições, 2004) e, junto com Maria Elena Johannpeter, O Quinto Poder- Consciência Social de uma Nação (Porto Alegre: L&PM, 2008).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Passada uma década da morte de Lutzenberger , quais são seus maiores ensinamentos?

Lilian Dreyer -
Talvez o primeiro e mais importante seja a sua própria atitude, a coerência entre o que ele pregava e o que ele fazia. Lutzenberger não foi apenas um ativista ambiental, foi um ecólogo, um homem excepcionalmente preparado, sob o ponto de vista de formação e informação, que desenvolveu um corpo de ideias que em nada se desatualizou. Desde o princípio da década de 1970 ele começou a disparar um discurso que enovelava todos os aspectos relevantes da vida contemporânea, sempre com um imenso pisca-alerta ligado, sempre gritando “gente, pegamos o caminho errado!”. Os desvios que ele percebeu na agricultura, na indústria, no comércio internacional, na relação consumo-desperdício-lixo, na aceitação acrítica da tecnologia, no posicionamento coletivo ante ecossistemas e grandes biomas como a Amazônia, tudo isso continua dramático - e agora requerendo redirecionamento mais urgente. Lutzenberger algumas vezes se equivocou com relação a prazos, mas acho difícil que se encontrem grandes falhas em suas avaliações e previsões. Ele traçou um grande painel em Garimpo ou gestão - Crítica ecológica do pensamento econômico, livro que deixou pronto antes de morrer e que só recentemente foi publicado.


IHU On-Line - Quais são as maiores lembranças que você tem da pessoa Lutzemberger? Como era conviver e partilhar saberes com ele?

Lilian Dreyer –
“Lutz” era rápido na crítica e na cobrança, que ele muitas vezes expressava de forma passional. Fazia jus à fama de brabo. Era também acessível, divertido e muito generoso. Apesar da postura física meio rígida, era uma pessoa afetuosa. Quando percebia que alguém tinha interesse sincero em aprender, sua rabugice de imediato se convertia em abertura e disponibilidade. Não é à toa que tanta gente o chamasse de professor, embora ele não se atribuísse essa qualificação. Eu era um esboço de jornalista quando o conheci, mas isso não impediu que trabalhássemos juntos em seus livros, em geral em alguma mesa de bar. A simples presença dele modificava o olhar da gente sobre o mundo. Depois de sua partida, quando o livro de memórias em que trabalhávamos se converteu em biografia, uma frase padrão que ouvi de entrevistados foi “ele mudou a minha vida”.


IHU On-Line - Lutzenberger tornou-se conhecido por sua visão sistêmica da vida. Quais eram os seus referenciais teóricos que embasavam tais ideias?

Lilian Dreyer –
Lutz tinha alma e formação de cientista, com pós-graduação em química nos Estados Unidos, dominava cinco idiomas e se relacionava com pensadores e universidades em todos os continentes. Ele dizia que descobriu a mágica da natureza no jardim de sua mãe, e que começou a se interessar em compreender o que descobria por causa do apoio e da mente aberta de seu pai. Era pouco mais que um piá quando começou a estudar Einstein  e acompanhar o pensamento do filósofo e matemático Bertrand Russell , influências de que nunca se apartou. A bióloga Rachel Carson  e a perseguição que ela sofreu, por expor os danos causados por pesticidas, pesaram na decisão dele de mudar os rumos de sua própria vida. Ernst Schumacher lhe apontou a concepção da funcionalidade do local e do descentralizado, que Lutz atou às suas observações sobre a “constelação de equilíbrios” dentro dos ecossistemas. Baseou um de seus livros na hipótese Gaia de James Lovelock  e Lyn Margulis . Admirava Isaac Asimov  (sua literatura científica), Albert Schweitzer , Thomas Berry  e acompanhava com interesse Rupert Sheldrake . Interagiu com Herman Daly , Amory Lovins e Ross Jackson, dos quais era amigo pessoal, Hazel Henderson ... Nem dá para citar a variedade de nomes que compuseram sua biblioteca e sua agenda de interlocutores, no Brasil e no exterior.


IHU On-Line - Após 13 anos de trabalho na BASF, Lutzenberger abandou a carreira para denunciar o uso de agrotóxicos nas lavouras gaúchas. Como avalia o uso dos pesticidas hoje, em nosso estado, e junto disso o avanço do monocultivo como do eucalipto e da soja, em específico?

Lilian Dreyer -
Ele e os ativistas ambientais que deram as caras na década de 1970 produziram mudanças profundas na avaliação e regulamentação dos pesticidas, em todo o Brasil. Mas, como o próprio Lutz costumava lamentar, as vitórias são parciais e os retrocessos quase inevitáveis. Hoje o Brasil está à mercê da química pesada - somos campeões mundiais no uso de agrotóxicos. O modelo desenvolvimentista em curso não sabe o que fazer com a incrível riqueza do bioma Pampa, a não ser erradicá-lo e substituí-lo pela pobreza da soja e do eucalipto.

IHU On-Line - Como o legado de Lutzenberger pode nos ajudar a pensar uma outra relação com a vida na Terra e, também, com o consumo?

Lilian Dreyer -
Lutzenberger, que não tinha nenhuma inclinação mística ou religiosa, traçou um caminho de profundo significado espiritual. Ele tanto percebeu quanto intuiu o quanto estávamos próximos de poder desfrutar de uma espécie de céu na Terra, se conseguíssemos recuperar um senso de humildade e reverência diante do que ele chamava o Grande Caudal da Vida. Em todas as culturas “primitivas”, dizia ele, conhecimento e sabedoria andavam juntas. "Já a nossa cultura desenvolveu um conhecimento espetacular - só que atiramos a sabedoria pela janela. Esta é a razão pela qual nos tornamos tão destrutivos. Perdemos a prudência." No livro Garimpo ou gestão, Lutzenberger diz que ainda nos comportamos como garotos fascinados com sua própria destreza mecânica: confrontados com um grande computador de última geração, o desmantelamos com serra e alicate e depois usamos os fios e chapas para fazer modelos de avião. Para ele, é isso, uma infantilidade, o que estamos fazendo com todos os ecossistemas do mundo. O cérebro humano é magnífico, produziu um espantoso desenvolvimento científico, mas em vez de continuar desmantelando biomas precisa desvendar sua lógica intrínseca e aprender a operá-los. Diante da riqueza da vida na Terra, se o conhecimento se aliar a esse tipo de sabedoria, haveria condições para uma vida com abundância e significado para toda a humanidade.


IHU On-Line - Qual seria a provável reação de Lutzemberger frente às obras do PAC de hidrelétricas no que diz respeito à preservação da biodiversidade e das populações originárias?

Lilian Dreyer -
Se há uma coisa que não me atrevo é falar sobre prováveis reações de Lutzenberger. Ele tinha uma capacidade única de perceber padrões e, em cima disso, avaliar intenções e resultados. Considerando o quanto ele respeitava as cosmogonias dos "primitivos", o quanto percebia a natureza como fonte do bem viver, o quanto ele abominava a tecnologia assentada sobre concentração de poder e ativadora de corrupção, especulo que ele hoje estaria colocando sob holofotes histórias anteriores, como as das hidrelétricas de Tucuruí e Balbina, por exemplo. O desperdício, a desestruturação e as negociatas que estas obras propiciaram foram terríveis, mas permanecem ignorados pela opinião pública, quando deveriam estar no centro das nossas atuais discussões a respeito de grandes obras.


IHU On-Line - Em seu livro publicado postumamente, Lutzemberger acentua que o PIB tal qual é concebido, é um engodo. Seria o caso de se pensar em expedientes como o FIB (Felicidade Interna Bruta), por exemplo? Em que medida essa nova concepção iria mudar a forma como as pessoas e as empresas se relacionam com o meio ambiente?

Lilian Dreyer -
Robert Kennedy, pouco antes de morrer assassinado, em 1968, fez um discurso intenso que, tanto quanto sei, foi pioneiro nesta questão de questionar o PIB como medida de progresso. Kennedy disse que o PIB tem a ver com tudo, exceto com aquilo que faz com que a vida valha a pena. Desconfio que Lutzemberger foi uma das primeiras pessoas, fora do poder, a prestar atenção nestas palavras. Em 1971 ele já martelava em cima disso. Depois, no período preparatório à Rio-92, Lutz apontava insistentemente para o Butão e a disposição deste pequeno país em criar um padrão, algo como o FIB, para medir o grau de felicidade que as escolhas da nação traziam ao seu povo. O que mede o PIB? Movimentação de dinheiro. É uma conta rasa e meio absurda, porque não desconta os recursos irrecuperáveis que foram gastos, como jazidas, florestas, água limpa e saúde pública. É um indicador que não diz nada sobre como a renda gerada está distribuída entre a população. Quando conseguirmos nos desvincular desse padrão e se começarmos a nos perguntar sobre como nossas escolhas coletivas estão afetando nosso bem-estar real, nossa relação com os sistemas de suporte da vida possivelmente encontre caminhos bem mais saudáveis.


IHU On-Line - Esse ambientalista também esteve ligado às conferências preparatórias da Rio-92. Passados 20 anos desse evento, está prestes a ocorrer a Rio+20. Quais são suas expectativas sobre as decisões que podem surgir desse encontro?

Lilian Dreyer -
Lutz na verdade, como ministro do Meio Ambiente na época e como personalidade de amplo trânsito junto a ongs do mundo inteiro, esteve no centro das articulações da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a Rio-92. Eu lamento que aqueles que hoje discutem a Rio+20 demonstrem pouco interesse pelos antecedentes da discussão em torno de PIB/FIB e daquilo que seria o que agora chamam de economia verde. Sou bastante cética em relação a esta "nova economia", pois tanto quanto pude observar ela tende a mercantilizar a natureza, em vez de propor uma guinada ética com relação à natureza e à distribuição de renda no planeta. A diplomacia brasileira, penso eu, historicamente, nesse tipo de encontro se foca na ideia de que os países ricos querem usar a proteção à natureza como instrumento para limitar nosso crescimento econômico. É essa também a visão de muitos outros países ansiosos por se tornarem emergentes. Além disso, o governo brasileiro, em todos os níveis, continua sem ter uma visão estratégica da biodiversidade, nós continuamos vendo a natureza como estorvo e não como aliada na produção de bem estar. Mas levo fé no que pode resultar da confluência de cidadãos conscientes do mundo inteiro no Rio. Acho que a atividade paralela aos encontros oficiais, a atividade da sociedade civil, deve ser bem mais interessante. É um momento de grande força simbólica para este momento da História, em que a internet começa a deslocar o poder de informação e decisão.  


IHU On-Line - Recentemente a física e econofeminista Vandana Shiva  visitou o Rincão Gaia, onde Lutzenberger está sepultado. Qual é o significado da ida dessa amiga do ambientalista ao seu lugar de repouso? Qual é o nexo que une suas concepções de mundo, de vida?

Lilian Dreyer -
Vandana contou como ela, Lutz e Wangari Maahatai  costumavam atuar juntos nos encontros internacionais onde se discutiam as florestas, a agricultura e o processo de dominação das sementes pelas empresas de agrotóxicos. Eles tinham a mesma visão sobre como uma agricultura saudável, ecossistemas equilibrados e poder de decisão local produzem comunidade harmônica e abundância de alimentos. Batiam-se por isso, como Vandana faz até hoje. Vandana visitou Lutz no Rincão durante um Fórum Social Mundial, pouco antes do falecimento dele, e agora, dez anos depois, quis homenagear o amigo, voltando ao local onde ele "se reciclou", e alimentar os ideais comuns.   

IHU On-Line - Além da visita ao Rincão Gaia, que outras atividades foram feitas em memória do ambientalista?

Lilian Dreyer -
Houve uma programação muito intensa. Lutz voltou à mídia, que lhe dedicou amplo espaço. Foi homenageado na Feira dos Agricultores Ecologistas. A Casa de Cultura Mario Quintana exibiu e debateu o documentário Lutz Forever Gaia, promoveu também saraus no Jardim Lutzenberger. Participei de um encontro, com Augusto Carneiro, na Livraria Cultura, onde o tema central foi o trabalho deles em paisagismo. Esses debates temáticos continuarão nos próximos meses. O encontro com Vandana Shiva, no Rincão e no Fronteiras do Pensamento, foi um ponto alto, um momento de reencontro daqueles que, ancorados pela figura do Lutz, ao longo de décadas vem se empenhando por uma reorientação de rumos da humanidade.
 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Lilian Dreyer -
Creio que é oportuno colocar um aspecto pouco percebido em Lutzenberger, o aspecto filosófico de seu trabalho. Deixo aqui, como ilustração, um trecho de seus escritos:
É claro que a Terra não é um ser vivo como uma planta ou um animal individual, que nascem, crescem, se reproduzem, envelhecem e morrem, mas é um sistema vivo, como o é um bosque, um cerrado ou banhado, porém num nível de organização superior ao destes. No organismo da Terra, a Gaia dos gregos, nós humanos, individualmente, somos como células de um de seus tecidos.
Já somos os olhos de Gaia. Com os olhos dos astronautas e nas imagens de satélite, a Terra pela primeira vez viu-se a si mesma, em toda sua singela beleza. Poucos dão-se conta do monumental, não somente em termos de história humana, mas em termos de História da Vida, que representa aquela primeira foto de Gaia. Este é um fato totalmente novo! Um momento decisivo. Uma situação faustiana. O homem, conhecendo demais, talvez cedo demais, cego de orgulho e com gula incontrolável, desencadeou um processo de demolição que supera todas as crises anteriores. Neste momento, nosso comportamento representa um perigo mortal para Gaia. Mas isto não é inevitável.


Leia mais...

Lilian Dreyer
já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

* Adequação ecológica: única forma de garantir a sustentabilidade. Edição 324 da revista IHU On-Line, de 12-04-2010 

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