Edição 395 | 04 Junho 2012

A Semana de Arte Moderna não foi uma revolução

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Thamiris Magalhães

Os nossos modernistas só tinham a roupinha importada da Europa. Um verniz que pode passar a ideia de modernidade, sem efetivamente existir tal modernidade, critica Jardel Dias Cavalcanti

A Semana de Arte Moderna origina inúmeras polêmicas e controvérsias. Apesar de muitos afirmarem que foi neste período que houve a transformação na arte brasileira, outros pensam que este episódio não foi o mais significante para o Brasil em relação à arte. Um deles é o professor de história da arte e teorias da arte na Universidade Estadual de Londrina – UEL Jardel Dias Cavalcanti, que afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, que, enquanto a arte europeia destruía a ideia de identidade, corroendo a própria concepção da arte que se praticou por séculos, aqui se buscara caracterizar a realidade, as identidades locais com extrema ingenuidade. “Compare-se a obra de Fernand Léger com a de Tarsila e podemos ver o abismo que separa esses dois artistas. Nós apenas vestimos nossa pobre realidade com roupinhas moderninhas, como os adolescentes que se vestem de punks com roupinhas de boutique pagas com o dinheiro do papai”, e dispara: “Não há revolução nenhuma”.

Jardel Dias Cavalcanti possui graduação e bacharelado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, mestrado em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutorado em História da Cultura pela mesma instituição. Foi professor de história da arte, teorias da arte, filosofia da arte e arte e sociedade da Universidade Metropolitana de São Paulo – Unimesp-FIG. É professor de história da arte e teorias da arte na Universidade Estadual de Londrina – UEL. É colunista do site www.digestivocultural.com.br, de São Paulo.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual foi a repercussão da Semana de Arte Moderna de 1922? Considera que foi um sucesso?

Jardel Dias Cavalcanti –
A repercussão foi grande. Isso devido não só a Semana em si, mas também porque seus participantes criaram, após os acontecimentos, uma visão da Semana como se ela tivesse realmente rompido com a arte do passado e criado a verdadeira Arte Moderna no Brasil. A primeira Historiografia da Semana foi escrita por seus participantes, que tendiam a engrandecê-la e exaltá-la. Seu sucesso se deve a isso. De um movimento pequeno da elite paulista, ela passou a ser vista como uma revolução na arte brasileira.


IHU On-Line – O que quer dizer com a expressão “nossa arte foi literária demais para ser moderna”, no artigo “Semana de 22 e Modernismo: um fracasso nacional”, publicada recentemente pelo Digestivo Cultural (http://bit.ly/L1nnBs)?

Jardel Dias Cavalcanti –
A vanguarda europeia rompeu de fato com a arte da tradição, seja no Dadaísmo , Cubismo  ou Futurismo , propondo outros paradigmas para a arte. No caso brasileiro, ficamos ainda presos a questões de ordem narrativa, buscando descrever os elementos que se acreditavam definidores de nossa suposta identidade, de nossa “brasilidade”. Sacrificamos a experiência de uma arte de ruptura, que buscava ser uma experiência apenas de ordem estética, em nome da uma arte da descrição de nossa fauna, flora e gênero. Dá-lhe abacaxi, palmeiras, bananeiras e mulatas!


Ideia enganosa

Outra ideia enganosa do modernismo é que se tomou o “popular” (em suas manifestações festivas, místicas, no trabalho, na miséria e sensualidade) como se fosse uma representação de todo o Brasil. Talvez esse compromisso oficial de preservação de uma identidade seja o componente que os impedia de levar adiante uma prática artística mais radical. O dadaísmo, com certeza, não aportou por aqui. Por quê? Na Europa, havia uma independência dos artistas em relação ao poder. Aqui, ao contrário, como disse Carlos Zilio , a política cultural irá passar das mansões paulistas para os corredores e salas de repartições públicas. Aqui se buscava renovar as velhas instituições culturais governamentais por dentro, fazendo da arte um braço do poder cultural.


IHU On-Line – De que maneira os modernistas se apropriavam das questões estruturais da arte moderna?

Jardel Dias Cavalcanti –
De fato, de concreto, não houve tal apropriação. Ao contrário, enquanto a arte europeia destruía a ideia de identidade, corroendo a própria concepção da arte que se praticou por séculos, aqui se buscara caracterizar a realidade, as identidades locais, com extrema ingenuidade. Compare-se a obra de Fernand Léger  com a de Tarsila  e podemos ver o abismo que separa esses dois artistas. Nós apenas vestimos nossa pobre realidade com roupinhas moderninhas, como os adolescentes que se vestem de punks com roupinhas de boutique pagas com o dinheiro do papai. Não há revolução nenhuma. A ideia de uma comunicação mais imediata era necessária ao pressuposto ideológico da identidade nacional e isso era o contrário dos cortes radicais da arte europeia em relação ao real. Vejam-se, por exemplo, as pinturas para lá de medíocres de Tarsila do Amaral, como “A gare” e “Operários”. A violência da modernidade, a poética da força das máquinas ou a combustão radical dos movimentos sindicais não aparecem nestas obras como apareciam no Futurismo italiano. Não existe a poética da força nem do movimento; o que se vê é uma descrição quase lírica dessas realidades.


IHU On-Line – Os modernistas, na Semana de Arte Moderna, conseguiram compreender a radicalidade do Modernismo?

Jardel Dias Cavalcanti –
Não tínhamos estrutura socioeconômica e nem condições espirituais para nos tornarmos modernos. A industrialização promovida pela antiga aristocracia paulista do café estava apenas começando. Não vivíamos objetivamente as questões modernas referentes à técnica, à ciência e à desestruturação do “Eu” na fragmentação do mundo moderno. Por isso nossos modernistas insistiam em pintar procissões religiosas do interior de São Paulo e abacaxis, como se isso fosse possível dentro do embate vanguardista da arte contra todas as instituições reacionárias do passado. A radicalidade do modernismo pressupunha a destruição da forma, a desconstrução da realidade e a descontinuidade do “Eu”. O contrário dos propósitos do modernismo brasileiro. Nós ainda acreditávamos numa realidade a ser representada. Precisa dizer mais?


IHU On-Line – Como podemos diferenciar os modernistas de 1922 dos movimentos de vanguarda europeus?

Jardel Dias Cavalcanti –
Os nossos modernistas só tinham a roupinha importada da Europa. Um verniz que pode passar a ideia de modernidade, sem efetivamente existir tal modernidade. Na arte europeia, não só a forma da arte tradicional foi destruída como também se investiu na radicalidade do pensamento, que se voltou contra as instituições repressivas da sociedade: a família, a religião e o capital. Como eu disse acima, não tivemos a poética da modernidade, mas uma descrição de trens parados e carros alinhados a palmeiras como ilustração de um Brasil caipira que se modernizava. Isso não pode ser chamado de arte moderna.


IHU On-Line – Que frutos o Modernismo deixou para o Brasil após a Semana de 1922?

Jardel Dias Cavalcanti –
Talvez o fruto pobre da ideia de que nossa arte só seria brasileira se expressasse, de forma quase ideológica, folclórica e descritiva a “realidade brasileira”, a “identidade brasileira”. Um artista verdadeiramente modernista (surrealista) como Ismael Nery , por exemplo, foi simplesmente esquecido e desprezado por não representar temáticas do folclore ideológico brasileiro. Ele era chamado de “pintor maldito”, por sua atormentada sensualidade e erotismo, que aprofundavam questões do surrealismo, em vez de simplesmente tipificar nossa sensualidade com propriedade da mulata. Aliás, ele se contrapunha a isso, chamando essa preocupação de “exotismo”.


IHU On-Line – Quais são os “ecos” deixados pelo modernismo nas artes brasileiras hoje?

Jardel Dias Cavalcanti –
Um eco pernicioso, que fez gerações acreditarem que, para ser moderno, você teria que cantar e exaltar seu quintal. Ou seja, a ideia de uma “aldeia global cultural” não chegou aqui ainda, apesar de ter se iniciado no Renascimento. Nem o radicalismo do Cinema Novo escapou do nacionalismo ingênuo. Até Caetano Veloso denominou seu livro Verdade tropical , fazendo crer que temos uma identidade única que nos definiria e diferenciaria dos outros povos. Afinal, como juntar o sul, o sudeste, o norte e o nordeste numa única camisa de força conceitual?
A questão que temos que colocar hoje é a seguinte: quem é mais revolucionário, Zé Celso  com seu teatro dionisíaso-antropofágico, colocando seus atores num eterno bacanal sexo-cultural ou Gerald Thomas , que colocou Fernanda Montenegro e Fernanda Torres (mãe e filha) se masturbando frente a frente no palco em Flash and Crash Days? Ora, é evidente que o transgressor é Gerald Thomas e não Zé Celso. Quem desestrutura a linguagem e nos mergulha numa recusa de significados já fixados é o teatro de Gerald Thomas.


IHU On-Line – Qual foi o maior legado deixado pelo modernismo e pela Semana de Arte Moderna?

Jardel Dias Cavalcanti –
Uma coisa pode ter ficado de positivo nisso tudo: a ideia da necessidade de atualização de nossa inteligência através do contato com outras culturas e, principalmente, com a modernidade europeia. Mas isso é pouco se comparado com o reacionarismo que envolve a perigosa crença na ideia de uma suposta “identidade brasileira”, que se entranhou dentro de nossas criações artísticas. Ismael Xavier chama a atenção sobre isso, ao referir-se ao cinema, dizendo que “já se tornou um cacoete da crítica e dos cineastas esta aflição em detectar um diagnóstico geral, em flagrar um conceito de Brasil nos filmes que lidam com os mais diversos aspectos da experiência”.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Jardel Dias Cavalcanti –
Nossa modernidade de fato, a universalização de nossa arte, começou com o Movimento Concretista , esse sim, verdadeiramente de vanguarda. Ao romper os limites de uma arte nacional, universalizar o conceito de criação, sem precisar da modorra nacional, eles conseguiram, de fato, dialogar em âmbito mais largo, mais radical, menos tupiniquim, com a arte universal, fazendo com que suas obras não precisassem do cheiro da banana para ser entendidas, mas dos pressupostos universais da criação em arte.


Brasil dos brancos...

Não há como ficar em cima do muro: ou você problematiza a sociedade e a arte, formulando uma crítica dessas duas ordens, ou você resvala para uma regressão mítica nacionalista de cunho conservador. Aquilo que Baudelaire  exigia do artista moderno, que mergulhasse para valer numa experiência de choque, numa experiência de fragmentação, não parece nosso forte. Ao contrário, nosso modernismo sonhava com a identidade nacional como totalidade orgânica, com a integração de um povo numa noção ideológica da harmonia das três raças fundadoras do Brasil. A ideologia venceu na cultura, mas as três raças jamais se integraram na realidade. Somos ainda um país de brancos, para brancos... Negros e índios não têm vez nem voz. Aqui são massacrados. E do sonho modernista paulista de integração das raças só sobrou o massacre do Carandiru, cantado por Caetano Veloso: “e quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina, 111 onze presos indefesos, mas presos são quase todos pretos, e você sabe como se trata os pretos”.

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