Edição 198 | 02 Outubro 2006

O mundo merovíngio e a construção da identidade cristã

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IHU Online

Graduado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Edmar Checon de Freitas é especialista em História Social pela mesma instituição. Seu mestrado e o doutorado em História foram cursados na Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua dissertação chama-se Martinho de Tours, o apóstolo da Gália: monaquismo e evangelização na Vita Martini de Sulpício Severo, e sua tese, Realeza e santidade na Gália Merovíngia: o caso dos Decem Libri Historiarum de Gregório de Tours (538-594). É autor de vários artigos, capítulos de livros, bem como de resumos e comunicações publicados em anais de congressos e periódicos.

Por e-mail, o professor de História da UFF deu a entrevista que segue, enfatizando que é no mundo merovíngeo que se pode acompanhar “a construção de uma identidade cristã que acolhe elementos tanto do mundo romano-cristão quanto das culturas não-cristãs”. Sobre a influência do crstianismo na sociedade medieval, o historiador disse que “toda a vida social, a cultura e mentalidade medievais passavam pelo cristianismo, embora não fossem exclusivamente cristãs”.

IHU On-Line – Quais seriam os traços mais marcantes do período merovíngio na Gália?

Edmar Checon de Freitas
– Destaco essencialmente o processo de interação entre as culturas germânica e romana. No mundo merovíngio , podemos acompanhar a construção de uma identidade cristã que acolhe elementos tanto do mundo romano-cristão quanto das culturas não-cristãs. No plano político, temos a afirmação da realeza franca, também ela portadora de uma dupla herança: a monarquia imperial romana e a realeza germânica, ambas aproximadas pelo modelo da monarquia cristã.

IHU On-Line – Como realeza e santidade se apresentavam na Gália merovíngia?

Edmar Checon de Freitas
– Na minha concepção, podemos falar da construção da idéia de monarquia cristã na Gália do século VI. A santidade, exigível de todo cristão, o era de modo especial no caso dos reis, a quem se atribuía o estabelecimento e a conservação da ordem cristã. A santidade, explicitada por virtudes, como bondade, justiça, caridade, temperança e piedade, não era um atributo particular dos reis, mas uma condição para o pleno exercício de seu papel.
 
IHU On-Line – Em linhas gerais, como pode ser descrito o monacato basiliano em suas relações com a igreja e a sociedade no Oriente do século IV?

Edmar Checon de Freitas
– Aqui recuamos um pouco no tempo com relação às questões anteriores. O modelo monástico proposto por São Basílio de Cesaréia  (ou Magno, 330-379) foi marcado pela busca da harmonia na comunidade monástica, a rejeição do rigorismo ascético extremado, o apelo à submissão diante das autoridades eclesiásticas e à integração na sociedade. Embora tendo se retirado do mundo, o monge basiliano não deveria se alienar do mundo, e sim contribuir para sua melhora. Concretamente se tratava da prática da virtude da caridade, por meio da assistência aos pobres e doentes.

IHU On-Line – Como se caracterizava a santidade monástica do século IV? Como a vida monástica preparou o terreno para o florescimento da cultura no seio da Igreja?

Edmar Checon de Freitas
– No cristiansimo do século IV, os monges eram percebidos como uma extensão da milícia celeste (os anjos), devendo combater cá embaixo as forças demoníacas. Forjavam em seus corpos um espaço sagrado, impenetrável para os demônios. A preparação desse corpo santo dava-se por meio dos jejuns, das mortificações e da oração, por meio dos quais o monge concretizava o ideal de renúncia ao mundo. Bem cedo, a Igreja percebeu a força de tal movimento e a necessidade de uma sólida base intelectual para suportá-lo. Tornaram-se os retiros monásticos repositórios do saber, conservando para os tempos medievais muito da cultura antiga.

IHU On-Line – Quais são as possíveis aproximações entre cristianização e violência no período merovíngeo? Quais foram os impactos dessa cristianização da Europa dos séculos IV a VIII?

Edmar Checon de Freitas
– A violência era parte do cotidiano do mundo merovíngio. No que se refere à cristianização da Europa cabem destacar dois aspectos, não circunscritos unicamente à Gália merovíngia: em primeiro lugar, a cristianização implicou um processo de destruição de templos, ídolos e santuários em geral, sobretudo em fins do século IV; além disso, houve em vários momentos episódios de conversão forçada. Não se deve esquecer ainda que a própria imposição de uma nova fé já carrega em si a marca da violência. Quanto aos impactos da cristianização na Europa, insisto na formatação de uma cultura e de uma identidade cristãs, a meu ver a essência da idéia de Cristandade.

IHU On-Line – Como o cristianismo influenciou a sociedade medieval e modificou-a?

Edmar Checon de Freitas
– Toda a vida social, a cultura e mentalidade medievais passavam pelo cristianismo, embora não fossem exclusivamente cristãs. Fico com dois aspectos a meu ver essenciais: a promoção, ainda que embrionária, da idéia de indivíduo, pois o cristianismo supõe, num certo nível, uma relação individual com Deus e o postulado da igualdade entre os homens, embora referido originalmente aos membros da comunidade cristã e pensado no plano espiritual.

IHU On-Line – Quais são as principais características da narrativa hagiográfica do século IV, sobretudo a respeito de Gregório de Tours?

Edmar Checon de Freitas –
No século IV, a tradição hagiográfica produziu, sobretudo, vidas de santos. Esse aspecto biográfico, de certo modo já presente nos antigos relatos das paixões dos mártires, contribuiu para a difusão do culto dos santos, especialmente mártires, monges e taumaturgos. Nos tempos de Gregório de Tours  (538-594), ao lado das vitae encontramos as coleções de milagres, fortemente associadas à promoção de centros de culto (igrejas que possuíam a tumba e o corpo de um santo ou suas relíquias).

IHU On-Line – Em que aspectos as sociedades antiga e medieval diferem mais?

Edmar Checon de Freitas
– Ambas pretendiam refletir uma certa ordem superior, mas enquanto a Antigüidade Clássica voltava-se para a ordem cósmica, imutável, a civilização  cristã medieval construiu-se sob a marca do transitório. Na concepção cristã, Deus não é parte da ordem cósmica, e sim sua fonte criadora; assim a articulação espaço-tempo corresponde a um momento de um drama histórico linearmente concebido. Em outras palavras, a sociedade medieval percebia-se como parte da história da salvação, caminhando no sentido do Juízo Final. Essa noção de transitoriedade foi fundamental para o enraizamento da noção de mudança social.
 

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