Edição 198 | 02 Outubro 2006

Repensando a política atual através da Idade Média

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IHU Online

O que separa a contemporaneidade do medievo é a subjetividade, que pode ser resumida por dois pensadores: Descartes e Kant. É o que disse, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, o filósofo gaúcho Luís Alberto De Boni. Questionado sobre quais seriam os pensadores medievais importantes nos campos da ética e da política e o que nós, homens do século XXI, poderíamos aprender com eles para repensar os conceitos de política, De Boni enumerou Abelardo, Duns Scotus, Aquino e Ockham, e enfatizou: “O que de mais importante esses medievais têm a dizer a nosso mundo é que a ética não pode estar distante da ciência e da política”.

De Boni é graduado em Filosofia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e em Telogia pela Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindisi. É doutor em Teologia pela Universidade de Münster (Westfalische-Wilhelms), orientado por Johann Baptist Metz. É pós-doutor pelas Universidades Alberto Magno e Bonn, ambas na Alemanha. Atualmente leciona na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Publicou e organizou mais de trinta obras, dentre as quais citamos: Lógica e linguagem na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 1995; Guilherme de Ockham. Porto Alegre: Edipucrs, 2000 e A ciência e a organização dos saberes na Idade Média. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.

IHU On-Line – Quais foram as principais mudanças pelas quais passou a Filosofia do século XXI com relação à Filosofia da Idade Média?

Luís Alberto De Boni
– Em primeiro lugar, vamos começar dizendo que o século XXI é ainda criança. Por isso, não podemos afirmar que ele já tenha produzido uma filosofia. Nós estamos vivendo dos juros do século XX, que foi o século de Husserl , Heidegger , Wittgenstein  e de tantos outros que lemos, citamos e aos quais reservamos local privilegiado em nossas bibliotecas. Foi o século XX que descobriu a Idade Média; e, no século XX, a filosofia medieval descobriu a modernidade. Explico. A filosofia medieval tornou-se um antídoto da Igreja Católica contra toda e qualquer novidade que surgisse. Descartes , Kant , Hegel , Marx  e quem quer que fosse. Por sua vez, a modernidade, desde o Renascimento e as Luzes, considerou a Idade Média e sua filosofia, como um mundo depassé. Hoje sabemos que não é bem assim. Os estudiosos do pensamento medieval têm consciência de que o mundo evoluiu e de que não se faz mais filosofia nos moldes do medievo. Entretanto, o século XX foi sempre melhor, percebendo que sua ligação com a filosofia do passado é muito mais forte com os medievais do que com os gregos. Com isso, a filosofia medieval é colocada dentro da grande corrente do pensamento ocidental, que se inicia com os gregos e chega até nossos dias. Mas dentro dessa cadeia há diferenças qualitativas. Se há quem afirme que entre a grande filosofia do século XX e a pós-modernidade existe uma tal diferença, que diremos, então, quando a comparação for feita entre os medievais e os contemporâneos? A meu ver – que não é somente meu – o que separa esses dois períodos é a subjetividade, que podemos resumir em dois nomes: Descartes e Kant.
Não que a subjetividade fosse de todo alheia aos medievais. Pelo contrário, em Agostinho  (+430), um pensador que não foi propriamente medieval, pois pertenceu à Antigüidade Tardia, descobrimos claramente de onde provieram muitas das idéias cartesianas, inclusive o cogito. Do mesmo modo, em Tomás de Aquino  (+1274) é possível reconhecer sinais de um “antropocentrismo cristão”. Mas o subjetivismo e o antropocentrismo dos medievais, ao contrário daquele dos modernos, não se encontrava no núcleo da filosofia por eles praticada.

IHU On-Line – A discussão sobre o nominalismo, sobretudo com o viés estudado por Ockham e seu Princípio da Parcimônia, ainda encontra espaço nos estudos medievais de hoje?

Luís Alberto De Boni
– O nominalismo foi algo que se impôs na filosofia. Aplicado conseqüentemente por Ockham (+1347), ele simplificou e desmitificou o mundo. Quem é que, em nossos dias, ainda afirma a existência de uma entidade universal fora da mente? A humanidade, o Brasil, a Igreja não são reais do mesmo modo como o são Pedro, João ou Maria. Fora da mente só existem indivíduos singulares, mas é próprio de nosso intelecto singular formar noções universais.

A simplificação ockhaminana leva em seu bojo o assim chamado Princípio de Parcimônia. Esse não trata propriamente de coisas, tal como se pensou, atribuindo-se a Ockham a afirmação que não provém dele, segundo a qual entia non sunt multiplicanda sine necessitate (os entes não devem ser multiplicados sem necessidade). Como observa C. S. Peirce , Ockham enuncia “uma máxima lógica, segundo a qual não se devem aceitar mais elementos independentes do que o necessário”. No mesmo sentido, e fazendo referência a Ockham, manifestam-se também B. Russell  e M. Schlick . Aliás, por falar em Peirce e em atualidade de Ockham, convém recordar a célebre afirmação do pensador norte-americano: all modern philosophy is built upon Ockhamism.

IHU On-Line – Poderia ser estabelecida uma relação entre lógica e linguagem no pensamento de Ockham?

Luís Alberto De Boni
– Sem dúvida. Ainda mais se, em vez de “linguagem”, simplesmente, tratarmos de “filosofia da linguagem”. E aí vamos encontrar outro lado polêmico de Ockham: seu questionamento com relação ao tratamento metafísico dado a diversos problemas. Ockham não foi um antimetafísico, mas mostrou que inúmeras questões, tidas como metafísicas, eram, na realidade, questões de linguagem. Daí seu modo de trabalho que inicia examinando o problema sob o aspecto lógico-lingüístico, evitando assim que se levantem pseudoquestões metafísicas. Teodoro Andrés , já há de 40 anos, escreveu uma interessante obra a respeito, intitulada El nominalismo de Guillermo de Ockham como Filosofía del Lenguaje. Madrid: Gredos, 1969.

IHU On-Line – Qual é a atualidade do pensamento de Duns Scotus? Quais são suas proposições mais importantes?

Luís Alberto De Boni
– A resposta a essa pergunta precisa partir da constatação de que não podemos seccionar o pensamento de um autor e, depois, ir separando partes vivas e partes mortas. Os grandes pensadores de todos os tempos são atuais porque seu pensamento, considerado como um todo, ainda nos provoca. Isso acontece também com Duns Scotus  (+1308). Observemos, por exemplo, que a grande divisão da filosofia, entre teórica e prática, adquire, com ele, características novas, quando define a metafísica como scientia transcendens, e a Ética não mais como ciência das virtudes, mas como scientia practica. Não passa desapercebida de ninguém a semelhança entre essas definições e as kantianas. Dentro do que poderíamos chamar de “sistema” desse autor, encontramos, então, temas com os quais nos debatemos ainda hoje, como o da univocidade do conceito de ente, da individuação pela “heceidade”, da natureza comum, da distinção formal, do conhecimento intuitivo do singular, dos limites da razão e, em filosofia prática, o contratualismo, a redefinição de direito natural, a nova importância dada à pessoa, a compreensão de liberdade como algo inalienável.

IHU On-Line – Como podemos descrever a relação do homem com a natureza na Idade Média?

Luís Alberto De Boni –
Há estudos interessantes a respeito. Deixemos de lado a distinção entre natural e sobrenatural, que marcará toda a Idade Média. Pode-se dizer que há duas leituras de natureza nestes longos séculos de amadurecimento do mundo ocidental. A primeira delas, até o século XII, considera a natureza como a obra de Deus a ser contemplada pelos homens. A segunda, sem excluir a primeira, passa a encarar a natureza como algo colocado à disposição do homem, algo que o desafia e que ele pode modificar. Ao encontro dessa leitura veio a obra aristotélica, traduzida para o latim durante os séculos XII e XIII. Para o pensador grego, ‘natureza’ pode ser tomada em diversos sentidos. O que mais interessa aqui é aquele que a considera como uma força interior, que faz com que o indivíduo seja, ou venha a ser, aquilo que deve ser; que faz com que na semente esteja a força que a transformará em macieira ou em carvalho. Também no homem existe uma natureza, que se qualifica primeiramente pela racionalidade. Nesse sentido, e aí se percebe também a influência estóica, agir segundo a razão é agir conforme a natureza. É aqui que encontra sua força a noção de lei natural, de direito natural. Há algo no interior do homem, que de certo modo o precede, dizendo o que é bom e o que é mau, o que deve ser feito e o que não deve ser feito. E também aqui surge Ockham, questionando idéias correntes. Para ele, não existe nada de real fora do indivíduo e anterior a ele. Não existe, pois, uma natureza humana, no sentido em que seus antecessores a tomavam.   

IHU On-Line – A ciência e a organização dos saberes na Idade Média podem ser explicadas de que forma?

Luís Alberto De Boni
– Os medievais herdaram da Antigüidade uma série de classificações diferentes das ciências. Se tomarmos uma História da Filosofia, (Historia de la filosofia. 3. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1975. 2 v. ) como a de Guillermo Fraile, veremos como essa questão esteve presente em quase todos os autores árabes e cristãos. O problema tomou novas cores com a entrada da obra aristotélica no Ocidente. Então, mais do que se perguntar pela classificação das ciências, foi necessário perguntar-se, antes, pelo que vem a ser propriamente uma ciência.
E o motivo era claro: como é que se poderia dizer que a teologia é uma ciência, no sentido dos Segundos Analíticos, em que Aristóteles diz que a ciência é um conhecimento certo, a partir de princípios evidentes, por meio do processo discursivo da razão. Ora, os princípios da teologia não são evidentes para nós, mas acreditados porque revelados por Deus; eles são evidentes para Deus, mas Deus não procede por modo discursivo, não faz silogismos, porque conhece tudo em um único ato de conhecimento. Então, se a teologia não fosse uma ciência, que estavam fazendo os teólogos nas cátedras universitárias? Daí provêm as respostas que todos os autores foram obrigados a dar no início de suas aulas (geralmente no início do Comentário às Sentenças) e daí o motivo por que, no decorrer dos anos, as  respostas se tornaram mais longas e complicadas. Compare-se, por exemplo, o que diz Santo Tomás de Aquino, nas primeiras páginas da Suma Teológica, ao perguntar se a teologia é ciência, com a introdução de Duns Scotus, escrita 30 anos depois, e que ocupa todo o primeiro volume da edição crítica de suas obras. Desse esforço surgiram novas definições e classificações, surgiram as assim chamadas “ciências médias”, entre as quais se classificam diversas das ciências modernas.

IHU On-Line – Quais seriam os pensadores medievais de maior expressão nos campos da ética e da política? O que o homem do século XXI poderia aprender com eles para repensar a política em nossos dias?

Luís Alberto De Boni
– Vamos citar alguns, sabendo que as escolhas sempre levam consigo injustiças. Pedro Abelardo  (+1142), aquele do filme Em nome de Deus , foi um inovador na área da Ética, na medida em que colocou o núcleo do ato moral na intenção. Seu tratado Conhece-te a ti mesmo – um título de sabor socrático -, é um marco na história da ética ocidental. Tomás de Aquino, assim penso, redigiu o mais minucioso tratado de ética que conhecemos e até hoje os textos sobre os atos humanos, sobre a justiça, sobre a lei são leitura obrigatória. Depois dele, os franciscanos João Duns Scotus e Guilherme de Ockham inovaram, colocando os atos humanos como determinados pelo objeto e não pelo fim, delimitando o alcance da noção de lei natural e clarificando o conceito chave de liberdade, graças ao qual o homem é responsável por suas ações.
O que de mais importante esses medievais têm a dizer a nosso mundo é que a ética não pode estar distante da Ciência e da Política. Foi um ganho da modernidade a separação entre os diversos ramos do saber, mas isso pode se transformar em perda quando pensamos, com Maquiavel , que a Política possui suas próprias leis e que o político é tanto mais bem sucedido quanto menos se preocupa com a ética. Do mesmo modo, fazer uma bomba atômica ou clonar um ser humano não são meros feitos científicos, que nada tem a ver com a responsabilidade moral dos autores.

IHU On-Line – Quando se fala em Idade Média, normalmente se faz menção à Inquisição. Em quais aspectos ela expressa a mentalidade da Igreja medieval e da sociedade daquela época?

Luís Alberto De Boni
– A Inquisição constitui, sem dúvida, uma das páginas mais sombrias da Idade Média. Procurar compreendê-la, enquadrá-la em seu mundo, não significa, de modo nenhum, justificá-la. O mundo medieval ocidental foi um mundo de cristandade, um mundo sobredeterminado pela religião. A sociedade era cristã; os reinos eram todos eles cristãos; a coroação era uma cerimônia religiosa; muitos pecados de cunho puramente religioso – como a blasfêmia ou o comer carne na sexta-feira – eram punidos pelas leis do Estado. Além disso, convém recordar que o Ocidente se viu sempre ameaçado por poderosas forças militares não-cristãs, como os árabes e bereberes, de fé muçulmana, que se “adonaram” do Oriente, inclusive dos Lugares Santos – e do norte da África, irrompendo pela Espanha e sendo detidos somente em Poitiers, na França. No século XIII, os mongóis, pagãos, entraram pela Polônia e Hungria, e chegaram até o Tirol.

Ora, qualquer divisão religiosa que viesse a surgir, além de ser tomada como uma ameaça à ordem eclesiástica instituída, era considerada também como um perigo para a unidade política. E como, no século XIII, surgissem algumas “heresias” (observe-se que estou usando essa palavra entre aspas), como a dos albigenses, ou cátaros , no sul da França, com forte apelo político, abriu-se caminho para o julgamento eclesiástico dos réus, pois eram acusados de crime contra a fé. Se condenados, porém, eram entregues ao poder público – “ao braço secular”, como se dizia – para serem executados.

“Como decía ayer”

Foi a Inquisição que criou a ciência do interrogatório, que a Gestapo, a KGB e a CIA levaram à perfeição. Bernardo Guy, o mais célebre dos inquisidores, que aparece também em O Nome da Rosa , legou-nos um clássico Manual do Inquisidor, até hoje estudado. A violência da Inquisição não se compara com a dos totalitarismos modernos. Aliás, com ela diminuíram as mortes, pois as comunidades foram impedidas de pronunciar julgamentos por ordálias (quando, por exemplo, se atirava uma mulher, amarrada, a um rio, por ser acusada de bruxaria: caso ela se afogasse, ficava provado que era inocente; se flutuasse – o que nunca aconteceu -, devia ser executada como bruxa). O terrível da Inquisição, como de todo e qualquer tipo de opressão ideológica, foi o pavor que se instalou, o medo que todos tinham se serem acusados de heresia.
Permita-me concluir esse tema lúgubre narrando um fato. Fray Luis de León (+1591), um agostiniano, durante anos professor em Salamanca, foi acusado de heresia pela Inquisição e afastado da cátedra, ficando preso por quatro anos. Inocentado, voltou à universidade. No dia em que retomou as aulas, ante um auditório lotado, abriu o livro exatamente na página de sua última aula e, como se nada houvesse acontecido, iniciou: “Como decía ayer” (Como dizia ontem). Na praça, em frente ao pórtico da universidade, levantou-se uma estátua a esse homem. Na base colocaram-se apenas três palavras: Como decía ayer.

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