Edição 391 | 07 Mai 2012

Uma psiquiatria a serviço do Estado contra os “indivíduos desviantes”

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Márcia Junges

Os “novos desviantes sociais” poderão ocupar o lugar discursivo antes reservado aos loucos, adverte Bernardo Salles Malamut. “Limpezas urbanas” como aquelas promovidas no Rio de Janeiro e São Paulo, contra os usuários de crack, são exemplo dessa lógica manicomial

O hospital psiquiátrico voltou a ser o “o destino de todas as mazelas sociais que ‘não poderiam’ frequentar a rua e a vida na cidade. Todos aqueles indivíduos que não se encontram incluídos no sistema de produção do capital parecem destinados a serem internados. O movimento que vemos no Rio de Janeiro e em São Paulo a respeito da internação compulsória dos usuários de crack é um exemplo importante dessa lógica manicomial. Uma verdadeira ‘limpeza urbana’ tem sido feita, não mais ‘em nome da razão’, mas agora ‘em nome da saúde’. Os entrevistados já em 2010 mostravam isso: a psiquiatria a serviço do Estado e de sua intolerância com os indivíduos desviantes”. A afirmação é do psicólogo Bernardo Salles Malamut, em entrevista concedida com exclusividade por e-mail à IHU On-Line. Essas conclusões foram obtidas através da pesquisa acadêmica realizada por Malamut em 2010 com nove médicos psiquiatras (cf. MALAMUT, Bernardo Salles; MODENA, Celina Maria; PASSOS, Izabel C. Friche. A rede de atenção à saúde mental na visão de médicos psiquiatras: A Stultifera Navis contemporânea. In: Cadernos Brasileiros de Saúde Mental: Cinquenta anos de História da Loucura. v. 3, n. 6, 2011). Segundo esses profissionais, o hospital psiquiátrico fica no lugar de “sustentação do discurso da reforma”, porém ainda é imprescindível. “O hospital psiquiátrico ainda é complementar à rede dos serviços substitutivos, segundo os entrevistados”, acentua Bernardo.

Bernardo Salles Malamut é graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, e especialista em Psicanálise: teoria e prática pela Universidade Fumec. É mestre em Ciências da Saúde pela Fiocruz com a dissertação O poder e o dispositivo: hospital psiquiátrico na contemporaneidade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a visão dos médicos psiquiatras sobre a rede de atenção à saúde mental? 

Bernardo Malamut – Sobre a visão dos médicos psiquiatras como uma classe de indivíduos, eu não teria condições de responder, já que minha pesquisa a respeito do tema foi restrita a nove médicos psiquiatras que trabalhavam em um hospital psiquiátrico público. Não se tratava de uma pesquisa que buscava obter uma generalização através de uma amostra numérica, mas sim que buscava obter um aprofundamento analítico a partir do discurso desses profissionais. A pesquisa (MALAMUT, Modena & Passos, 2011a; MALAMUT, Modena & Passos, 2011b) visava compreender a articulação entre um determinado contexto sócio-histórico e sua implicação em uma produção discursiva, e por isso a opção pela pesquisa qualitativa. Então posso esclarecer somente os resultados dessa pesquisa específica. Importante lembrar que a reforma psiquiátrica visa uma assistência na rede, envolvendo os diversos aparatos disponíveis, e em rede, abarcando os vários atores que compõem a vida do usuário na cidade, rompendo com a lógica segregadora e exclusivista do modelo anterior, que tinha no discurso médico-psiquiátrico sua única baliza. Porém, é a partir de 2004 – com a aprovação do Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar no SUS – que a legislação institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios, não havendo entretanto na lei da reforma nenhuma garantia da construção de uma rede assistencial, já que a rede é maior que o conjunto dos serviços que a constitui. Assim, a rede que se constitui na visão dos entrevistados está muito aquém do necessário, e não conseguiria substituir o hospital psiquiátrico.

O sistema funcionaria em uma lógica bastante perversa que dissimularia o uso que os profissionais ainda fazem do hospital. O hospital psiquiátrico ainda é complementar à rede dos serviços substitutivos, segundo os entrevistados. Digo que essa lógica é perversa no sentido de que as internações que ainda existem seriam ‘dissimuladas’, segundo os entrevistados. O paciente faria pernoite no hospital psiquiátrico e permanência dia nos Centros de Atenção Psicosocial - CAPS – ficando sob custódia do Estado o tempo todo. Porém, sem estar sob responsabilidade de nenhum dos serviços – ou seja, o paciente margearia os serviços de saúde da cidade (posto de saúde, CAPS, hospital psiquiátrico, ambulâncias da Samu...) numa versão contemporânea da Stultifera navis, figura da Nau dos Loucos recortada por Foucault em sua tese de doutorado. O paciente ainda não é de responsabilidade de ninguém, de nenhum dos serviços. Os casos psiquiátricos graves ficam rodando, numa lógica de porta giratória. Sugiro a leitura cuidadosa dos artigos publicados a partir da pesquisa para exemplos e uma melhor compreensão dessa lógica que aqui nomeio de “perversa”.

IHU On-Line – Como descreve o hospital psiquiátrico na contemporaneidade? Nesse sentido, qual é a importância do legado foucaultiano para podermos compreender essa instituição?

Bernardo Malamut – O hospital psiquiátrico fica no lugar de “sustentação do discurso da reforma”, porém ainda é imprescindível na visão dos psiquiatras entrevistados, e isso precisa vir a público. Uma enorme mudança, entretanto, é sentida por todos os entrevistados – o hospital tornou-se visível e com isso muito mais vigiado. Isso é de enorme importância para a reforma psiquiátrica, porque aponta que o controle social é uma ferramenta e instrumento de lutas políticas importantes. Os atos terríveis, que antes eram cometidos “em nome da razão”, hoje são moderados pelo olhar social. Porém, é importante lembrar que os entrevistados enfatizam um novo ‘perigo’: o hospital psiquiátrico tem voltado a ser o destino de todas as mazelas sociais que “não poderiam” frequentar a rua e a vida na cidade. Todos aqueles indivíduos que não se encontram incluídos no sistema de produção do capital parecem destinados a serem internados. O movimento que vemos no Rio de Janeiro e em São Paulo a respeito da internação compulsória dos usuários de crack é um exemplo importante dessa lógica manicomial. Uma verdadeira “limpeza urbana” tem sido feita, não mais “em nome da razão”, mas agora “em nome da saúde”. Os entrevistados já em 2010 mostravam isto: a psiquiatria a serviço do Estado e de sua intolerância com os indivíduos desviantes. Nesse sentido, a teoria foucaultiana tem se mostrado de crucial importância não só para compreender o hospital psiquiátrico, mas também a lógica manicomial como um todo. Foucault é cada dia mais atual!

Talvez nosso foco não seja mais a figura social do “louco”, mas a figura do “desviante”. Talvez estejamos vivendo aquilo que a História da loucura mostrou – que o louco veio a ocupar esse lugar do desviante social e, na medida em que a reforma psiquiátrica tem sido eficaz em retirar o louco desse lugar, novas personagens estejam surgindo para representar o “anormal”.

IHU On-Line – Como se imbricam violência e poder no discurso psiquiátrico?

Bernardo Malamut – Queria primeiro repetir o que já disse antes em outros lugares, que a violência não era de modo algum tema da pesquisa. Porém, conforme a análise das entrevistas transcorria, essa categoria foi tornando-se essencial. A violência era o tempo todo tema dos entrevistados. Sabemos que os usuários do sistema de atenção à saúde mental sempre tiveram uma “relação” próxima com o tema: ou acusados de promotores de atos violentos ou então sendo alvo de terapêuticas bárbaras; e é importante dizer como o combate à violência é uma das principais bandeiras da reforma psiquiátrica. Em minha pesquisa utilizei dos conceitos de violência em Arendt  e poder em Foucault. Os entrevistados relataram como a noção de “risco” (velha conhecida a todos que trabalham ou já trabalharam na assistência à saúde mental) ainda é a maior justificativa para a internação psiquiátrica. E, ao mencionar isso, lembro-me mais uma vez de Foucault dizendo que “ser perigoso não é um delito. Ser perigoso não é uma doença, não é um sintoma... o perigo não é uma noção psiquiátrica”. Porém a psiquiatria ainda encontra problemas na justificação do seu saber via “verdade”, já que as evidências neurobiológicas da doença mental ainda são escassas e controversas, e com isso a psiquiatria acaba se fundando em algo como uma “defesa social”. E isso aparece claramente nas entrevistas da pesquisa; os “critérios médicos” acabam cedendo aos “critérios sociais”, num claro jogo de poder entre familiares, Estado e psiquiatria. Como um entrevistado esclareceu: a psiquiatria acaba funcionando como um “amortecedor social”.

Poder legítimo?

A violência de uma internação compulsória se justificaria pela violência do paciente. Porém, como Hanna Arendt dizia, a violência pode ser justificável, mas nunca será legítima. E assim, os atos de internar, medicar e dar alta (que foram os focos da pesquisa) não poderiam ser atos exclusivamente violentos, pois, se assim fossem, eles em nada se distinguiriam de um sequestro ou da prisão do corpo do outro. Desse modo, o jogo de poder entra em cena. O poder não precisa ser justificável, porque é próprio da existência de comunidades; o que o poder precisa é de legitimidade. Essa legitimidade, no discurso dos entrevistados, é encontrada quando os psiquiatras ainda cedem a demandas de internação por parte de familiares de pacientes, ou mesmo no “amortecimento social” requerido pelo Estado. Porém, faríamos uma leitura reducionista e equivocada se colocássemos a culpa no Estado ou na família. Os pacientes continuam buscando ativamente o hospital. Como entender isso? Bom, é mérito de Foucault ter nos ensinado que o poder não só reprime, promove coerção, mas também o poder produz. O poder produz coisas, induz ao prazer, promove discursos. Os usuários ganham também uma identidade: usuário do sistema de saúde mental. É preciso um olhar atento a esse ponto da reforma: que identidades sociais estamos ofertando àqueles que demandam atenção?

IHU On-Line – A partir da experiência da luta antimanicomial no Brasil, o que muda no tratamento à saúde mental?

Bernardo Malamut – Muda tudo! Os usuários hoje são vistos, têm voz, organizam-se, manifestam-se pela cidade, circulam por espaços que antes eram restritos. Muda o tratamento também. Hoje contamos com equipes interdisciplinares – o que é um ganho incomensurável. O sujeito humano é muito maior do que qualquer saber sobre ele. No entanto, não podemos parar! Não podemos nos dar por contentes somente pelo fato de que, hoje, não mais amarrarmos os loucos, ou usamos seus corpos para “abastecer” aulas de anatomia em faculdades de Medicina. A reforma trouxe conquistas, e, se na pesquisa a que me referi acima, traço críticas ao que parece uma certa estagnação da reforma, faço no sentido de alertar para a importância do que foi conquistado até agora, e principalmente para que não deixemos que “novos desviantes sociais” venham a ocupar o lugar discursivo que, antes, era reservado aos loucos.

IHU On-Line – Como percebe a importância da psicanálise para o cuidado da saúde mental?

Bernardo Malamut – Sou tendencioso a falar, já que minha formação foi toda dentro da psicanálise. No entanto, percebo que a psicanálise constituiu um marco na reforma psiquiátrica. Em Belo Horizonte – local em que moro – isso é claro na história da reforma psiquiátrica. A psicanálise dá novamente voz ao louco, fazendo da psicose um paradigma da liberdade. Todavia, penso que é preciso valer-se da psicanálise para ir além dela. Foucault, que nunca foi um amante da psicanálise, nos lembra de que talvez o grande objetivo de nossas vidas não seja “saber quem somos” mas recusar “o que somos”, no sentido de não nos restringirmos às formas de sociabilidade e identidade que se conformem com a reprodução de lógicas totalitárias, inclusive aquelas de inserção social. É preciso que sigamos reinventando espaços coletivos para o exercício político, valendo-se da amizade e da liberdade. É esse o novo grande desafio da reforma psiquiátrica, em minha opinião.

 

Referências:

MALAMUT, Bernardo Salles; MODENA, Celina Maria; PASSOS, Izabel C. Friche. Violência e poder no discurso psiquiátrico: da exclusão sistemática às subjetivações normativas. Psicol. Soc., Florianópolis, v. 23, n. spe, 2011. Disponível em: http://bit.ly/IBTIve. Acesso em: 29-04-2012.

______; MODENA, Celina Maria; PASSOS, Izabel C. Friche. A rede de atenção à saúde mental na visão de médicos psiquiatras: A Stultifera Navis contemporânea. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental: Cinquenta anos de História da Loucura. v. 3, n. 6 (2011): Janeiro/Abril de 2011. Disponível em: http://bit.ly/Jrbkv7. Acesso em: 29-04-2012.

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