Edição 391 | 07 Mai 2012

O empoderamento dos usuários de saúde mental

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Márcia Junges

Valorizar a fala, o conhecimento e a trajetória das pessoas é imprescindível para um outro tipo de saúde mental, frisa Rosana Onocko Campos. Pressão da indústria farmacêutica e demanda de felicidade e sucesso ajuda a compreender a “receitação” de psicofármacos, pontua

Não se trata de mera utopia. Ela pode “ser alcançada quando nas cidades se investe em saúde”. A ponderação é da médica Rosana Onocko Campos na entrevista que concedeu, via e-mail, à IHU On-Line, tecendo considerações sobre a reforma psiquiátrica no Brasil. De acordo com a pesquisadora, essa reforma “é de um grande valor técnico-político, sobretudo em épocas em que a psiquiatria clássica, entregue a interesses comerciais, pretende apresentar-nos (a todos os reformistas) como burros, mal informados ou, na melhor das hipóteses, como ingênuos ignorantes bem-intencionados”. Rosana explica, também, o projeto Saúde mental e cidadania, financiado pelo International Development Research Center – IDRC, do Canadá, e do qual ela é coordenadora. Suas estratégicas e temáticas de investigações buscam revelar um conhecimento diferente do acadêmico, reapropriado pelos usuários. Junto de outras variáveis, essa seria uma forma importante de empowerment, empoderamento, em português claro. “Tenho gostado muito dessa forma de pesquisa que nos permite dar voz aos usuários, trazer à tona como eles enxergam os serviços e as relações que ali conseguem cultivar”, menciona. 

Rosana Onocko Campos é graduada em Ciências Médicas pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina. É mestre e doutora em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp com a tese O planejamento no labirinto (São Paulo: Hucitec, 2003). É uma das organizadoras da obra Desafios da avaliação de programas e serviços em saúde (Campinas: Editora da Unicamp, 2011). Leciona no Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste o projeto Saúde Mental e Cidadania (Santé Mentale Citoyennété)? Como essa iniciativa pode “empoderar” os usuários da saúde mental?

Rosana Onocko Campos – Trata-se um projeto de pesquisa e ação que é atualmente financiado pelo International Development Research Center – IDRC, do Canadá, e que busca aproximar a comunidade da academia. Recebemos 1 milhão de dólares canadenses em cinco anos e isso está nos permitindo financiar uma rede de pesquisa em saúde mental, que junta várias universidades públicas brasileiras (Unicamp, Unifesp, UFF, UFRGS, UFRJ, UECe) e do Canadá (Universidade de Montreal) com movimentos de usuários de serviços dessa área, pessoas que tiveram ao longo de sua vida diagnóstico de alguma doença mental e que se organizaram para fazer valer seus direitos e combater o estigma sempre associado às doenças mentais. Eles têm participado tanto da definição de temáticas de investigação (focando, então, no que seriam para eles as prioridades de pesquisa) como também de investigações de caráter participativo que desenvolvemos, inclusive da fase de análise e divulgação. Estamos trabalhando na escrita de um artigo científico entre pesquisadores e usuários, experiência bastante inédita no Brasil e que está nos dando um trabalho razoável. É difícil conciliar a linguagem científica com a linguagem da vida cotidiana, mas estamos intentando aproximá-las.

Essas estratégias e a temática das investigações (avaliação de serviços, uso de medicação, experiência do adoecimento, etc.) buscam desequilibrar um pouco o polo do poder, desta vez visando que ele seja reapropriado pelos usuários. O reconhecimento de que eles portam um saber, sim, diferente do acadêmico, porém não menos valioso; a conscientização sobre seus direitos cidadãos e como fazê-los valer, etc. são, a meu ver, formas concretas do que na língua inglesa chamamos de empowerment.

IHU On-Line – Como analisa as políticas públicas para a saúde mental em nosso país? O que vem dando certo em termos de uma nova concepção nessa área?

Rosana Onocko Campos – A aposta brasileira em uma reforma psiquiátrica é, sem dúvida, uma das apostas ético-políticas mais valorosas deixadas pelos anos 1980. Nesse campo, juntamente com a expansão do Sistema Único de Saúde – SUS houve a expansão da rede de serviços comunitários (os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, notadamente) e a diminuição do número de leitos em hospitais psiquiátricos com inversão do padrão de financiamento nos últimos anos. Isso significou um aumento crescente desses serviços, melhor cobertura e acolhimento para essas pessoas em sofrimento psíquico. Uma pesquisa nossa publicada na revista Saúde Pública (2009, 43, supl. 1, 16-22) mostrou que em algumas cidades as redes assim constituídas são continentes para pacientes e usuários confirmando a conquista de um desejo muito almejado: o de tratar de forma humanizada, na comunidade, e sem produzir isolamento social nem exclusão. Para nós, isso prova que a proposta da reforma não é mera utopia, e que é sim possível de ser alcançada quando nas cidades se investe em saúde. É de um grande valor técnico-político, sobretudo em épocas em que a psiquiatria clássica, entregue a interesses comerciais, pretende apresentar-nos (a todos os reformistas) como burros, mal informados ou, na melhor das hipóteses, como ingênuos ignorantes bem-intencionados.

Contudo, lamentavelmente, também acompanhando os rumos do SUS, uma pesquisa avaliativa de todos os CAPS III do estado de São Paulo, que estamos finalizando com financiamento da Fapesp, mostra que a grande maioria dos CAPS III deste estado encontram-se bastante fragilizados do ponto de vista dos recursos com que contam, das modalidades organizativas que dali derivam (incluindo sua capacidade de regulação de internações e vagas) e da escassa capacitação e supervisão continuada dos profissionais que ali trabalham. Isso é sério, pois os CAPS III são os serviços comunitários que contam com leitos para acolhimento em 24 horas, o que lhes permite dar consistência ao modelo de substituição do hospital psiquiátrico. Fragilizá-los equivale a fragilizar a reforma, algo que talvez interesse a atual gestão de saúde mental do estado, com quem nos resultou impossível conseguir interlocução. Isso é curioso, em se tratando de uma pesquisa financiada com recursos públicos para estudar recursos públicos estratégicos. Tentamos dar retorno a eles, pois achamos que é nossa responsabilidade como pesquisadores de uma universidade pública. Pensamos que lhes resultaria interessante, mas não conseguimos sensibilizá-los.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios na formação de recursos humanos para a área de saúde mental?

Rosana Onocko Campos – A formação de pessoas (não gosto muito da expressão recursos humanos, pois os torna objetos) para a área de saúde mental neste contexto de reforma requer mudanças nas formas de ensinar e aprender. Em muitas faculdades de psicologia, de terapia ocupacional, etc. ensina-se muito pouco sobre a reforma, seus princípios éticos e políticos, sua história, seus problemas e desafios atuais. Quando se ensina, faz-se com certo tom ufanista, épico. Fica retórico e serve para estimular a militância, mas não dá aos alunos ferramentas de trabalho potentes. Ensina-se muito pouco a se trabalhar fora do setting clássico do consultório particular, como se os recém-formados fossem todos trabalhar no antigo modelo liberal. Como se trata na comunidade, na rua, na escola? Pouquíssimas exceções conseguem ensinar isso aos seus alunos. Os modelos clínicos e de gestão são muito pouco debatidos. O diálogo com a psiquiatria foi abandonado como projeto, e não deveria ser. Em outros países do mundo os psiquiatras continuam a se interessar pelas estratégias terapêuticas que não somente medicamentosas. A formação dos residentes de psiquiatria continua a se dar isolada na maioria dos casos, e não no contexto de equipes multiprofissionais. O mesmo ocorre com quase todos os outros profissionais. Criamos um CAPS e queremos que “magicamente” eles trabalhem juntos, sem supervisão nem apoio de nenhum tipo. Publicamos efeitos de uma experiência de trabalho compartilhado na Revista Brasileira de Educação Médica (35 [4], 460-467, 2011).

IHU On-Line – Em que sentido a saúde mental é, acima de tudo, uma questão de saúde coletiva?

Rosana Onocko Campos – A saúde coletiva é um campo de produção de conhecimento e de práticas que contribui para o estudo do processo de saúde-doença-atenção como processo social em diversos grupos e populações, atentado para sua distribuição geográfica, histórica e social, e também para as maneiras em que cada sociedade define suas demandas em saúde e se organiza para satisfazer suas necessidades nesse campo. É um campo interdisciplinar por excelência.

Numerosos estudos apontam que os transtornos mentais são cada dia mais prevalentes, e isso só tende a crescer com as condições de vida contemporânea. Muitos dos sistemas de saúde de cobertura universal do planeta têm se preocupado com esse tema e tentam se reorganizar para enfrentar essa questão, como o sistema inglês, por exemplo. No Brasil, alguns estudos de uns anos atrás realizados pelo Ministério da Saúde mostraram que 55% das equipes de saúde da família, ou seja, no atendimento de primeira linha, na porta de entrada do sistema, recebiam importantes demandas de saúde mental. Encontramos resultados semelhantes – do ponto de vista qualitativo em nossa pesquisa – estudando Unidades Básicas de Saúde – UBS da cidade de Campinas, publicados na revista Saúde Pública (2012, 46 [1], 43-50).

IHU On-Line – Na área de utilização de psicofármacos especificamente, quais são os maiores desafios para profissionais e usuários?

Rosana Onocko Campos – Como com todos os medicamentos, existe uma pressão da indústria para a “receitação” de psicofármacos. Mas ela é alimentada ainda pela pressão imensa que a sociedade contemporânea faz pela conquista da felicidade e do sucesso. Há uma ideia de que seria possível viver sem sofrer, que transforma qualquer tristeza em depressão e, portanto, busca-se a medicação. Mas há, também, o estilo de vida das grandes cidades, que tem desvitalizado as redes sociais locais. Os vínculos de vizinhança são cada dia mais raros, as famílias são cada vez menores, idosos e jovens ficam cada vez mais sozinhos no tempo que dispõem. Muito da angústia que essa solidão provoca, das tensões do trabalho, das ameaças (reais ou imaginárias) de nossas cidades cada vez mais inseguras se transformam em demandas por medicação.

Saliento ainda que não são apresentados às pessoas os efeitos colaterais desses medicamentos. Muitas vezes nem seus médicos lhes oferecem corretamente essa informação, e os pacientes afirmam buscar sozinhos em bulas ou na internet. Nosso estudo sobre as UBS de Campinas mostrou essa falta de informação de parte dos pacientes, assim como que os profissionais de saúde sentindo-se impotentes frente às condições difíceis de vida da população (regiões marcadas pela pobreza extrema e pela violência, por exemplo). Esses profissionais medicam as pessoas considerando que é a única coisa que podem fazer por elas. A medicalização da vida como gesto humanitário! (Mas devemos destacar também como gesto solitário desses profissionais que não contam com quem debater esses temas que lhes provocam, é claro, angústia.) Nos anos 1970 fazia-se política junto à população buscando mudar essas condições; no século XXI fazemos receitas! Publicamos alguns desses achados em Ciência & Saúde Coletiva, (16 [12], 4643-4652, 2011).

Controle dos sintomas

Nosso trabalho com a Gestão Autônoma da Medicação – GAM pretende criar uma estratégia para propiciar o diálogo entre profissionais e usuários sobre essas questões, enfatizando a necessidade de dar valor à palavra do usuário. Se eu receito um remédio para a diabetes, por exemplo, possuo formas de controlar se a dose é apropriada: verifico a glicemia do paciente e saberei se falta, sobra ou se está correta a dose administrada. Mas se eu estou administrando um regulador do humor? Como fazer uso de uma dose correta sem confiar na palavra do usuário, sem dar o devido valor a seu depoimento? E isso não se consegue sem a criação de um setting um pouco mais horizontalizado, no qual as pessoas sejam encorajadas a falar com seus médicos. Além de serem ocultados os efeitos colaterais, muitas vezes se oculta dos pacientes que a maioria das prescrições psiquiátricas nada curam, somente controlam sintomas. Por isso é relevante definir, de maneira congestiva – como é temos chamado –, junto deles eles quais são os sintomas que devem ser eliminados e quais poderiam, por exemplo, ser tolerados ou minimizados com outras terapêuticas. Estamos trabalhando nisso a partir de um guia canadense que traduzimos e adaptamos ao Brasil, e estamos realizando sua validação e teste em Fortaleza-CE, no Rio de Janeiro-RJ, em Campinas-SP, em Porto Alegre-RS e em Novo Hamburgo-RS.

IHU On-Line – Recuperando uma de suas pesquisas feitas entre 2008 e 2010, como o conhecimento vivido da esquizofrenia pode informar e modificar o conhecimento técnico do psiquiatra? E de que forma o conhecimento do psiquiatra pode modificar a dimensão da experiência vivida da esquizofrenia?

Rosana Onocko Campos – Nessa pesquisa coordenada pela UFRJ procuramos configurar grupos de usuários para falarem de sua experiência de adoecimento. Também solicitamos a psiquiatras da rede pública que explicassem como faziam o diagnóstico, qual o prognóstico, etc. Utilizamos o diagnóstico de esquizofrenia buscando um diálogo com a psiquiatria, e visando colaborar com o debate do novo manual de doenças psiquiátricas, pois no mundo todo como muitos psiquiatras têm se organizado para influenciar as novas “doenças” que serão apontadas, muitos grupos de usuários têm se organizado buscando interferir, apontando o valor da experiência pessoal para além dos diagnósticos.

Enfim, foi uma pesquisa de intensidade muito grande, e no momento das trocas (trocamos as falas de um grupo com o outro, conforme tínhamos combinado com eles no início da investigação) houve uma reação dos usuários ao perceberem que os psiquiatras tinham dúvidas e – às vezes – até preconceito. Ainda estamos trabalhando nesse material para fazer comunicações mais específicas, mas é sempre interessante o efeito que relatos de vida trazem – eles parecem agenciar uma súbita empatia que nem sempre combina com as prescrições. Não conseguimos achar relatos de recovery, como apontado na literatura internacional, sobretudo em contexto anglo-saxão, no qual as pessoas mostram formas de retomada em suas vidas após a doença à vezes em condições melhores às iniciais... Mas precisamos ainda trabalhar mais sobre esse material para saber se isso poderia ser atribuído, por exemplo, às condições sociais dos usuários brasileiros, as noções de cidadania e reivindicação de cada uma dessas sociedades ou a alguns outros fatores. É uma linha de trabalho que estamos continuando e que merece mais tempo de análise.

IHU On-Line – A partir das conquistas da luta antimanicomial, como avalia a relação entre os profissionais da saúde mental e os usuários?

Rosana Onocko Campo – Digo sempre aos meus alunos de aprimoramento (estágio de pós-graduação supervisionado) que ninguém está trabalhando na saúde mental por casualidade. Há, na maioria de nós, alguma coisa nas nossas vidas, no nosso passado, que cria um motivo de sensibilização para esse tipo de sofrimento. Até as pessoas que dizem não ter “escolhido” a saúde mental (o que se dá, muitas vezes, entre o pessoal da enfermagem, por exemplo), se ficam nela certo tempo é porque se encontram a gosto nessa clínica difícil e sofrida. Sentem-se úteis. Acreditam que o que fazem serve para algo, e isso não é pouco no contemporâneo! Em minha experiência de supervisão clínico-institucional de serviços sempre tenho me encontrado com pessoas muito envolvidas e que possuem essa sensibilidade trabalhada, como a nomeia J. Oury .

Os usuários dizem confiar nos profissionais, sobretudo encontramos isso em trabalhos nos quais interrogamos a função do que chamamos de técnicos de referência, que são os profissionais mais próximos de cada usuário, responsáveis pela montagem conjunta com eles e suas famílias, de um projeto terapêutico individual. Eles afirmam que confiam nos técnicos de referência, pois os profissionais dão valor à sua palavra, ou conhecem sua história, ou deram provas de suportar estar juntos em momentos difíceis como as crises... Publicamos algumas dessas avaliações na revista Saúde Pública (2008, 42, [5], 907-13) e na revista Latinoam. Psicopat. Fund. (São Paulo, v. 14, n. 1, p. 122-133, março 2011).

Tenho gostado muito dessa forma de pesquisa que nos permite dar voz aos usuários, trazer à tona como eles enxergam os serviços e as relações que ali conseguem cultivar. Em estudos comparados que estamos iniciando com os colegas canadenses, aparece isso como uma diferença importante em relação à reforma brasileira e ao processo no Canadá. Aqui a reforma foi iniciada pelo esforço conjunto de trabalhadores, familiares e usuários. Lá há como que uma desconfiança maior entre usuários e profissionais. Estamos nos interessando em descobrir por que razão isso acontece.

IHU On-Line – O que é sanidade mental e o que é considerado patologia atualmente?

Rosana Onocko Campos – Freud definia a cura que a psicanálise busca como “recuperar a capacidade de amar e de trabalhar”. À falta de uma definição de saúde mental melhor, tenho ficado com essa. Acredito que é um bom começo e tem a vantagem de se tornar um ponto de partida para o nosso trabalho. No ambiente da saúde mental, muitas vezes utiliza-se o álibi de que as coisas são difíceis de definir para fugir das definições. Mas essas são necessárias para algumas operacionalizações... 

Tristeza não é patologia, moleque arretado não é doença. Claro que existem os deprimidos e os hiperativos. Quando um traço de personalidade se torna doença? Por que interessa à indústria farmacêutica chamar de doença um conjunto de sintomas? Quantas mães solteiras não foram internadas em hospícios no século retrasado? Enfim, a definição de saúde e doença será sempre uma definição situada social e historicamente. No mundo de hoje, creio que temos o dever de problematizar a hipermedicalização da vida. Refletir sobre a importância de suportar um salutar mal-estar. Isso é a base da civilização, como nos ensinou Freud. 

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