Edição 390 | 30 Abril 2012

A economia e suas técnicas de governo biopolítico

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Castor Bartolomé Ruiz

A política atual está centrada no governo da vida humana, e por isso reforça seu caráter biopolítico, pontua Castor Bartolomé Ruiz. Democracia tem sido reduzida a “espetáculo midiático da indústria cultural” e a sombra autoritária ronda a biopolítica

 

Dando continuidade à série de artigos especiais escritos para a IHU On-Line, o filósofo Castor Bartolomé Ruiz, professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, reflete sobre a subversão provocada pela política moderna entre poder e vida humana. Esse novo modelo político “despojou o poder soberano de sua arbitrariedade sobre a vida, ao menos formalmente, conferindo à vida uma potência política que antes não tinha. A vida nos regimes modernos passou a ser cuidada como um bem biológico importante, que deve ser protegido”. Nessa perspectiva, a vida é compreendida em termos utilitários. Aquela que não for mais útil “não será morta explicitamente, porém será abandonada à sua sorte”. O surgimento da economia política é outro tópico abordado por Castor. Segundo ele, surge uma nova racionalidade governamental da natureza humana, cuja característica fundante é prescindir da autonomia dos sujeitos e objetivar suas vontades naturais, que precisam ser governadas. 

Castor Bartolomé Ruiz é o coordenador e conferencista do curso Filosofia e sociedade: A biopolítica, a testemunha e a linguagem. (Des) encontros filosóficos: M. Foucault, H. Arendt, E. Levinas, G. Agamben, cuja temática desta segunda-feira, 9-4-2012, é Michel Foucault, a biopolítica e a soberania. Em 2-4-2012 falou sobre Michel Foucault, a biopolítica e o cuidado da vida. Para conferir a programação completa do evento, acesse http://bit.ly/AqEfwa. 

Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, é mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006). Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des) governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com o artigo A exceção jurídica na biopolítica moderna, disponível em http://bit.ly/a88wnF.

Confira o artigo.

A biopolítica é correlata da vida humana. O ponto de transição que delata a emergência da biopolítica, ou quando menos seu alastramento social, aparece na inquietação por definir as formas de governo da vida humana. Ainda que tenhamos que registrar uma divergência conceitual importante entre Foucault  e Agamben  sobre a genealogia da biopolítica, ambos coincidem em que, na modernidade, esta forma de governo tornou-se hegemônica. Os regimes de soberania eram formas de poder absoluto que pouco se preocuparam em desenvolver discursos, saberes e técnicas de governo. A soberania identifica a legitimidade do poder com a vontade do soberano, e esta determina a melhor forma de governar. Classicamente o poder soberano apelava para a sabedoria pessoal do príncipe com objetivo de conseguir um bom governo. As técnicas de governo do poder soberano derivavam de sua sabedoria pessoal. Por isso os tratados clássicos pretendiam conseguir um bom governo através da boa educação dos governantes.

A expressão do poder soberano é a lei. A soberania governava pelo imperativo da lei, que se identificava com a vontade soberana. Na soberania, a vida humana existia sob ameaça do poder soberano. É um poder que, na expressão de Foucault, fazia morrer e deixava viver. Ele detinha o poder de tirar a vida sem ter que dar contas a ninguém, pois era o poder soberano da lei. A vida no regime de soberania absoluta é “matável” sem que se cometa crime, porque a decisão soberana tem o poder de matar e deixar viver. O viver do súdito era uma concessão implícita do poder soberano.

A política moderna subverteu, de alguma forma, a relação entre o poder a vida humana. Despojou o poder soberano de sua arbitrariedade sobre a vida, ao menos formalmente, e conferiu à vida uma potência política que antes não tinha. A vida nos regimes modernos passou a ser cuidada como um bem biológico importante que deve ser protegido. O poder moderno não ameaça a vida com a morte, mas a protege para que se torne produtiva. O poder moderno, ainda na expressão de Foucault, faz viver e deixa morrer. Os dispositivos modernos cuidam da vida por ser um bem útil e produtivo, e a cuidam enquanto possui essas qualidades. A utilidade exige da vida tudo o que puder extrair dela. Fazer viver se tornou sinônimo de desenvolver suas capacidades e potencialidades em prol de eficiências outras de caráter institucional e estrutural. A vida que, por algum motivo, não mais seja útil, não será morta explicitamente, porém será abandonada à sua sorte. A vida inútil não é morta, a lei o proíbe, porém será abandonada à sua sorte. Esse marco utilitarista rege a lógica biopolítica moderna, especialmente no contexto da economia política.

A preocupação por aferir todas as utilidades possíveis desta nova racionalidade biopolítica propiciou a criação, a partir do século XVI e XVII, de um novo feixe de saberes e práticas que tinham como escopo principal o governo da vida humana. Assistimos nesses séculos ao surgimento do que serão os novos regimes de governo cuja preocupação é como administrar com eficiência, nesse caso, como administrar as potencialidades da vida humana. No contexto das técnicas de governo, a vida humana foi percebida como uma potência essencial ao poder do Estado e do mercado. Melhor dizendo, Estado e mercado modernos surgem como efeitos das técnicas de governo e seus regimes de verdade.

A proliferação de técnicas de governo propiciaram o surgimento e a consolidação das duas instituições modernas por antonomásia: o Estado e o mercado. Estado e mercado são instituições criadas para governar a vida humana. Ou melhor dizendo, instituições cuja legitimação social advêm da sua eficiência para governar a vida humana. A eficiência é exigida delas como critério de legitimidade. Ao ponto que, talvez, seu desaparecimento futuro esteja condicionado à incapacidade de administrar novos desafios.

A eficiência exigida do Estado e do mercado para governar não é um critério abstrato ou tecnicamente neutro. Pelo contrário, a eficiência das técnicas de governo é avaliada como tal no contexto do modelo capitalista de produção. É o capitalismo como sistema econômico que perfaz o marco axiológico que (in) valida as novas técnicas de governo. O capitalismo emergente teve que se consolidar como sistema maximizando o lucro. O critério de eficiência exigido das novas artes de governo é o lucro. A maximização do lucro tornou-se o parâmetro de validação das novas artes de governar. A eficiência institucional exigida no governo da vida tem por objetivo principal consolidar um modo de produção, o capitalismo. A pretendida neutralidade que mascara os discursos técnicos de administração e gerenciamento oculta seu principio axiológico de validação do governo. Este identifica o critério de eficiência com a obtenção de lucro econômico do capital. Na confluência das novas técnicas de governo encontra-se a consolidação do capitalismo como modelo produtivo. Sem as novas técnicas de governo e sua eficiência na administração da vida humana o capitalismo seria inviável.

Na aula no Collège de France de 10 de janeiro de 1979, no curso que denominou Nascimento da biopolítica, Foucault desenvolve a tese de que o Estado e o mercado modernos, ao contrário do que comumente se ensina, não são instituições criadas de forma voluntarista ou por um ato instituinte de algum grupo social. Sua existência não tem um lócus ou um princípio originário único. Nem arché nem lócus: a genealogia do Estado e do mercado modernos remete aos processos de surgimento das práticas discursivas de governo. Ambas as instituições emergem como espaço articulador das variadas práticas de governo da vida que tinham se desenvolvido nas diversas áreas das sociedades.

Os métodos autoritários da soberania mostraram-se ineficientes e inoperantes para governar as complexas potencialidades da vida. No lugar do momento arbitrário da vontade soberana, surge uma grande variedade de técnicas de governo. Desde o século XVII, vemos proliferar por toda Europa grande número de tratados de governo sobre as diversas áreas da vida e da sociedade. A política centrou-se cada vez mais no governo da vida humana, o que reforçou, cada vez mais, seu caráter biopolítico.

A economia política e os regimes de verdade

Um dos principais discursos que originou a biopolítica é a economia política. Já Rousseau , no famoso verbete que publicou na Encyclopédie, intitulado “Économie Politique”, define a economia política como uma espécie de reflexão geral sobre a organização, a distribuição e a limitação dos poderes de uma sociedade. Os discursos mercantilistas e fisiocratas desenvolveram a economia com um leque de técnicas de governo da natureza das populações. A economia reflete sobre as práticas governamentais sem levar em conta as questões de direito, se as práticas são legítimas ou não, pois o que as legitima é sua eficiência. Não as considera a partir da perspectiva da legitimidade de sua origem, como faz o direito, mas a partir dos seus resultados. As técnicas desenvolvidas pela economia política surgirão de dentro das práticas governamentais, levando em contas os resultados que se conseguem, e não os direitos que se devem.

A economia política manifesta a existência de fenômenos, processos e regularidades sociais que se produzem em função de mecanismos inteligíveis. Esses mecanismos são tidos como naturais e por isso não podem ser ignorados nem contrariados, sob pena de produzir um efeito negativo nas formas de governo. A economia política recoloca a questão do naturalismo dentro da sociedade. Investe na pretensão de cientificidade natural desses mecanismos, aos quais deverão ser fiéis às técnicas de governo. Enuncia-se uma pretensa natureza da sociedade, que determina o modo de ser das práticas de governo.

A noção de natureza articula o surgimento e o desenvolvimento da economia política e suas técnicas de governo do social. Aliás, o social é construído como realidade nova que deve ser governada. Essa é a tese que orienta as pesquisas de Hannah Arendt  e sua crítica à deterioração da autonomia do político nas sociedades modernas, que foi substituída pela administração eficiente do social. O social, segundo Arendt na sua obra A condição humana, substituiu o político. A economia política se autolegitimará como discurso verdadeiro, cujo regime de verdade remete à natureza científica do social. As técnicas de governo desenvolvidas pela economia política terão por objetivo governar a natureza das pessoas como meio para obter um governo eficiente.

Utilitarismo e biopolítica

A economia política gerou uma nova ratio governamental da própria natureza humana. Esta ratio prescinde da autonomia dos sujeitos e visa sua objetivação na forma de vontades naturais que devem ser governadas. Um dos eixos articuladores da economia política e suas técnicas biopolíticas desemboca no utilitarismo. Na ratio biopolítica da economia, a legitimidade ou ilegitimidade do governo é substituída pela sua eficiência ou ineficiência O que se questiona da permanência de um governo não depende do caráter jurídico ou ético, mas de sua eficiência governamental. Nesse ponto Maquiavel  representa com certa nitidez o limiar desta ratio governamental. Na medida em que Maquiavel se preocupa em como o governante dever preservar o poder, independentemente de sua legitimidade, ele ainda é o último dos antigos, e não primeiro dos modernos. A ratio biopolítica moderna condiciona a permanência no poder aos resultados utilitários aferidos das técnicas de governo. Um governo tem legitimidade para permanecer quando produz resultados positivos, caso contrário deverá ser substituído.

A economia política estabelece um novo regime de verdades que validará uma prática governamental não pela moralidade de seus objetivos, nem pelos valores éticos de seus meios, mas pela eficiência dos resultados. Estes independem daqueles. Nesse aspecto, as técnicas biopolíticas implementam o adágio atribuído a Maquiavel – embora não esteja presente em sua obra – de que o “fim justifica os meios”, o que aproxima Maquiavel das teses modernas do governo. A eficiência do lucro se desloca da moralidade dos atos. O útil e o honesto aparecem como campos epistemológicos diferentes e até contraditórios. A ratio biopolítica poderá estabelecer como verdade interna a validação da coerência estabelecida por mecanismos inteligíveis que ligam entre si práticas e resultados. Esses, os resultados, permitirão julgá-las como bons ou ruins, não em relação a valores éticos, mas em relação a proposições utilitaristas que, por sua vez, elimitam o verdadeiro e o falso em relação à eficiência dos resultados.

A economia política funciona como um espaço de veridição: um espaço produtor de verdades. Dessa formaum setor significativo da atividade governamental ficará submetido a um novo regime de verdade cujo efeito principal é deslocar todas as questões éticas das técnicas de governo para a lógica da utilidade. Esse novo regime de verdades articula o surgimento de novas práticas de governo em que a vida humana, tratada como objeto natural científico, reaparece sob um novo prisma: o utilitarismo. A vida é um bem útil para um fim necessário. A intersecção de um novo regime de verdade com novas práticas fez surgir algo que antes não existia num primeiro momento: a vida humana como recurso natural útil. Concomitantemente, o surgimento da economia política e suas práticas governamentais produz uma substituição, melhor dizendo: uma duplicação da pessoa humana pela vida biológica e os sujeitos coletivos de direito, e os sujeitos de direito foram ressignificados como população que deve ser governada.

A economia política configura-se como uma prática discursiva que objetiva governar com eficiência o meio, as tendências, as confluências e os processos segundo a natureza das coisas e das pessoas. Porém, sua aparente cientificidade está comprometida com um outro discurso não dito naquilo que está dito: a consolidação do capitalismo como modelo produtivo. Na sombra da pretendida cientificidade do naturalismo da economia política subsistem os interesses econômicos de determinadas classes detentoras do capital. A eficiência das técnicas biopolíticas de governo é medida pela sua capacidade de obtenção de lucros, mesmo que a custo de sofrimento humano em grande escala com a exploração da vida de trabalhadores ou povos inteiros submetidos à lógica do capital. Afinal, na tabela de resultados apresentada pelas planilhas institucionais a obtenção de lucros legitima as novas técnicas de governo. Na sombra das técnicas biopolíticas sobrevivem ignoradas multidões de vítimas que possibilitam a eficiência dos seus resultados. O sofrimento humano não entra no cálculo de custos das artes econômicas de governo. Ele é considerado, na maioria dos casos, um mal necessário, inevitável.

O mercado: um espaço de “veridição”

A genealogia das práticas de governo advindas da economia política imbrica-se com regimes de verdade que, ao mesmo tempo em que são produzidos, reproduzem as práticas como legítimas. Há um espaço que, na economia política, teve historicamente – e ainda tem – um papel relevante como produtor de verdades e gerador de práticas consideradas verdadeiras. Estamos nos referindo ao mercado.

O mercado moderno, embora mantenha certa linha de continuidade com as formas tradicionais de mercado, operou rupturas epistêmicas significativas sobre si mesmo, que são correlatas das verdades que o legitimam e que ele veicula. O que está em jogo no mercado moderno é a vida humana. Ele não regula atividades econômicas abstratas, mas governa a vida humana como recurso natural, útil e produtivo. As atividades do mercado, seu regime de verdade e suas práticas de governo são correlatas da vida humana. Ou seja, das verdades e práticas sobre o governo das capacidades humanas, seus desejos, expectativas e ansiedades. O mercado moderno não só governa as atividades econômicas, mas também tem a pretensão de regular e até de produzir os desejos que estimulam a produção e o consumo. O mercado tornou-se um espaço de subjetivação. Atua sobre os sujeitos produzindo-os. O mercado, com seu regime de verdades e suas práticas de governo, se constituiu num ingente aparato produtor de subjetividades. Ele produz os sujeitos que pretende governar como sujeitos naturais. O sujeito natural enunciado pelo mercado corresponde ao sujeito que o próprio mercado produz com seus dispositivos de subjetivação. A pretendida cientificidade de suas técnicas de governo contém uma alta dose de endogamia epistêmica. Esta radical aporia do mercado, própria dos espaços produtores de subjetividades, permanece oculta ao naturalismo de suas verdades.

Em sua essência, o mercado medieval era um espaço físico onde aconteciam as trocas de produtos. O mercado moderno tem um adjetivo que o qualifica como tal: é um mercado capitalista. O mercado capitalista, na sua essência, perdeu toda materialidade física do espaço. O mercado tornou-se uma realidade virtual, uma entidade imaterial, quase metafísica. A entificação do mercado capitalista qualificou sua potencialidade de espaço produtor de verdades. Enquanto o mercado medieval se identificava com um espaço físico definido dentro do qual se permitia exercer o comércio e a troca, o mercado capitalista se desterritorializou ao ponto de se tornar uma categoria conceitual, quase metafísica, que regula as atividades humanas. A desmaterialização do mercado permitiu transferir para ele uma série de atributos transcendentais que simbolizam o mercado como uma entidade quase divina: o mercado é onipresente, pois está em todas as atividades humanas; é onisciente, pois tudo cai sob a regulação de sua natureza; onipotente, pois sua lei natural normatiza qualquer ação humana; justiceiro, porque premia aos bons investidores e castiga aos incompetentes.

O mercado funcionou durante o medievo e até o século XVII como um espaço de justiça. Ele era regulamentado por uma legislação estrita que, de um lado, liberava aquele espaço do domínio feudal e, de outro, regulava o tipo de bens que ali podiam se comercializar. Num outro aspecto, o mercado medieval era um espaço de justiça no sentido estrito do termo. Era o espaço em que se pretendia que a justiça imperasse como critério do agir. O critério do mercado medieval era o preço justo e não a livre especulação do mercado capitalista. Não se podia especular com a escassez, como no mercado capitalista: os preços das mercadorias deviam ser justos. O preço justo era determinado em relação ao trabalho realizado. O mercado medieval era um espaço de justiça ao ponto de que nele deveria imperar o modelo de justiça distributiva. Por isso os produtos de primeira necessidade deveriam ser mais baratos para que fossem mais acessíveis a todos. Nesse aspecto, o mercado medieval tinha uma preocupação pela justiça distributiva material, segundo os moldes clássicos enunciados por Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.

O mercado era um espaço de justiça porque o que ele deveria assegurar não era a liberdade de preços, nem a maximização do lucro, mas a ausência de fraude. O mercado era responsável por evitar as fraudes e a especulação. Ele não buscava proteger o interesse “egoísta” do vendedor e sua ânsia de lucro, como será o mercado capitalista, mas proteger os compradores através de uma justa distribuição das mercadorias e da ausência de roubos.

O mercado como espaço de verdades e de práticas é tão antigo quanto as sociedades humanas. Porém o mercado capitalista, desenhado pelas técnicas da economia política, é um espaço novo, inédito na história da humanidade, cujo regime de verdade direciona-se para o governo das atividades sociais, em particular, e da vida humana, em geral. O mercado constituiu-se, assim, num espaço de “veridição” da biopolítica moderna. Ele é produtor de verdades sobre as formas de governo. Entre elas, pretende naturalizar determinados mecanismos que seriam inerentes à natureza humana. A naturalização invoca o princípio da liberdade natural desses mecanismos. Consequentemente, atribui-se ao mercado os princípios do bom governo. Não mais se procurará na justiça a orientação para o bom governo; agora se delega aos mecanismos naturais do mercado a liberdade para agir em prol da eficiência, que é o critério que legitima qualquer governo. O mercado fará que o bom governo não seja medido pelo critério do justo, não em primeiro lugar, nem necessariamente, mas pela norma da eficiência que, na lógica capitalista, se traduz por lucro. Inclusive, nesta lógica uma dose de injustiça poder ser constitutiva de um bom governo, quando os mecanismos naturais do mercado assim o demandarem. Aliás, não mais se poderá falar estritamente de injustiça do governo quando este obedecer às supostas leis do mercado, já que estas, por serem naturais, estão fora (além ou aquém) dos valores éticos. Na natureza rege a necessidade, não a ética. Esse critério de necessidade legitima as técnicas de governo biopolítico do mercado e suas decisões, que não mais serão injustas, mas inevitáveis.

O mercado substituiu a justiça ética pela verdade natural, como princípio de legitimação das técnicas de governo. As novas técnicas de governo implementadas pelo mercado não têm como referência o justo ou injusto, o bem ou mal, mas a eficiência e utilidade dos resultados. Contudo, oculta-se que estes resultados sempre encobrem interesses de classe em que os setores dominantes tendem a validar a eficiência dos mecanismos que conservam e aumentam seus interesses, ainda que outros setores, às vezes majoritários, sejam prejudicados. A dialética dos interesses fica ocultada sob o discurso da naturalização das técnicas de governo. A biopolítica legitima-se pelas técnicas eficientes de governo, ocultando as contradições que elas geram na forma de produção massiva de sofrimento humano. Esse sofrimento humano é legitimado como um efeito colateral inevitável e inerente aos mecanismos naturais do mercado.

A população, novo objeto de governo

As novas técnicas de governo político se desenvolveram através de práticas discursivas diversas como a medicina social, o urbanismo, segurança e economia. Os discursos modernos desses saberes têm em comum a preocupação de governar a vida humana. Cada área demarcou um campo de poder e desenvolveu técnicas diversas para intervir sobre parcelas da vida humana. As técnicas de governo visam sujeitos vivos que deviam ser cuidados como pacientes, vigiados por segurança, ordenados por urbanismo, controlados pelos impostos, treinados como recursos produtivos.

Todos esses espaços se caracterizam pelas inovadoras técnicas de governo e também por serem espaços produtores de verdades. Cada espaço produziu verdades e discursos sobre os sujeitos e a vida a ponto de produzir os sujeitos desses espaços e o seu modo de vida. O manicômio produziu discursos sobre a loucura, mas também construiu o louco: o padrão de normalidade e a loucura que levou a definir os sujeitos. A prisão criou verdades sobre o criminoso, seu controle e vigilância, ao ponto de induzir um modo de subjetivação pela disciplina do panoptismo. As técnicas de governo se tornaram também modos de subjetivação e espaços criadores de verdades.

No âmago destas práticas de governo da vida humana se confeccionou uma nova categoria que tem se mostrado maleável e eficiente às técnicas de governo: a população. Os tratados modernos de filosofia política criaram a categoria povo para imanentizar a soberania, antes monopolizada pela vontade individual do soberano. O povo foi construído como novo sujeito da soberania; dele emana o poder e a ele se lhe reconhece como sujeito de todos os direitos fundamentais. O povo é o sujeito formal e jurídico dos direitos modernos. Porém, concomitantemente ao desenvolvimento desse sujeito formal de direitos, foi-se construindo a categoria de população como objeto a ser governado. A população começou a ser identificada como objeto de governo nos tratados de economia política, mas também nos discursos sobre saúde, segurança, urbanismo, etc. A população foi definida como a coletividade da vida humana natural que deve ser governada segundo sua natureza, levando em conta suas necessidades e tendências.

Enquanto se identifica no povo o sujeito formal dos direitos, constrói-se a população como objeto real a ser governado. O povo é um sujeito de direito, a população é um objeto de governo. O povo é um sujeito com direitos, a população um instrumento do governo. O povo é o sujeito formal da soberania, a população é o objeto concreto a ser governado. O povo é soberano, a população é governada. As sociedades modernas construíram concomitantemente esses dois discursos que se cruzam por vezes de forma complementar e outras se repelem de modo bipolar. A democracia moderna sofre as tensões próprias desta bipolaridade moderna dos sujeitos/cidadãos que, ao mesmo tempo em que são enunciados como base da soberania nacional e portadores de direitos, são objetivados como recursos governáveis por técnicas de intervenção governamental. Todos somos concomitantemente sujeitos/cidadãos e população; somos diferentemente atraídos e tensionados pelo discurso formal dos direitos e as práticas concretas de governamentalidade.

O Estado de direito e a democracia, sendo duas instituições preciosas para o exercício da cidadania, do sujeito de direitos, estão permanentemente esvaziados de sentido pelas técnicas da governamentalidade biopolítica. Estas reduzem a democracia a um espetáculo midiático da indústria cultural e o Estado de direito ao marco formal com pouca incidência na vida real.

A problemática da população não aparece nos tratados clássicos de filosofia política, onde aparece, isto sim, o problema da soberania e do povo. A população aparecerá problematizada como objeto no interior das técnicas de governo. Foucault, na aula de 25 de janeiro de 1978, de sua obra Segurança, território e população, refere que o uso do termo população era utilizado, ainda no século XVI, de forma negativa em relação ao termo mais conhecido na época: população. Entendia-se população como sinônimo de povoamento, povoação. A importância da população aparece em contraste com a soberania. Para o soberano tradicional, o poder era medido pela extensão do território que ocupava e pelo número de riquezas que detinha. A população era um dado secundário, a maioria das vezes insignificante e só importante à medida que dela poderia requisitar para a guerra ou outras funções. Era importante que houvesse uma população numerosa sempre, obediente aos ditados do soberano e dócil aos trabalhos por ele requisitados.

A normalização, técnica biopolítica de governo da população

A partir do século XVII, com a emergência do discurso econômico cameralista e posteriormente o mercantilismo, a população foi retrabalhada discursiva e simbolicamente como novo objeto de governo. Foi no interior do discurso econômico, considerado um espaço de “veridição”, que a população começou a existir como novo recorte epistemológico da vida humana. Algo que antes não existia; foi, então, criado. Uma verdade nova sobre a vida humana, um recorte discursivo que demarcou uma nova verdade sobre a importância da vida humana para o poder. Esta nova verdade correlaciona a política com a vida humana transformando-a cada vez mais numa biopolítica. A nova verdade sobre a população foi produzida no interior da economia política. Para os mercantilistas do século XVII, a população aparece como uma variável importante na dinâmica do poder do Estado e do soberano. A população é um elemento que condiciona todos os demais. Nesse sentido, é fundamental para pensar o governo. Ela está na base da riqueza que se produz e no poderio do Estado. A população é a força produtiva do mercado e a base arrecadação fiscal do Estado. O quesito necessário para que a população se torne potência produtiva do governo é seu adestramento, sua normalização.

Os fisiocratas do século XVIII manterão posturas diferentes dos cameralistas e mercantilistas, porém continuarão a produzir um discurso sobre a população. Com os fisiocratas, a população deixa de aparecer com um conglomerado anônimo de súditos, deixa de ser uma multidão, e passa a ser enquadrada num conjunto de processos de normalização. A multidão dos súditos dóceis é transformada pelo discurso econômico, e suas técnicas de governo, numa população normalizada. Ela deverá constituir-se num novo objeto a ser governado. Para tanto, será necessário implementar um longo processo de administração da sua natureza. Será necessário administrar o que a população tem de natural a partir da sua natureza.

A pergunta pela naturalidade da população retira-a do âmbito da ética ou do direito e a recoloca no espaço da “cientificidade”. Ela é problematizada como objeto natural que deve ser governado através de técnicas de normalização. Os objetos naturais não se governam com valores éticos, nem decisões legais ou democráticas. A natureza, nesse caso a natureza humana, se governa através de dispositivos e técnicas de normalização. Não se vê na população sujeitos de direito com capacidade de exercer a autonomia, mas objetos naturais com tendências que devem ser governadas segundo sua própria natureza. A população não se autogoverna democraticamente como um sujeito de direitos, mas é governada cientificamente como um objeto natural. No governo da população não há espaço para democracia.

A democracia não é natural: ela é uma criação livre dos sujeitos e nela impera a possibilidade do imprevisível, da criação. Porém a população é objetivada como recorte da natureza humana onde vigora a regularidade das previsibilidades frente à imprevisibilidade da criação histórica. O governo da população se faz sem democracia ou com o mínimo possível. A eficiência dos dispositivos biopolíticos de governo da vida humana exigem o mínimo de democracia e o máximo de gerenciamento previsível. Para administrar com previsibilidade o comportamento da população, há que se efetuar previamente um permanente processo de normalização.

As técnicas de normalização visam enquadrar o comportamento da população dentro de padrões definidos como normais e, portanto, erigidos em norma do comportamento dos indivíduos. Os padrões de normalidade se desdobrarão em processos de normatização em que a norma se propagará capilarmente como técnica de sujeição dos indivíduos. A soberania usava da lei para impor sua vontade e fazer súditos dóceis à vontade soberana. A biopolítica utiliza a norma para governar capilarmente as vontades normatizando os comportamentos em seu detalhe cotidiano. Ela normaliza as condutas. A norma ocupa os espaços deixados pela lei. A lei impõe, a norma delimita. A lei prescreve, a norma possibilita. A lei não consegue penetrar capilarmente nos espaços da vida. A insuficiência da lei é substituída pela eficiência da norma. A norma opera nas instituições modernas regulamentando ao mínimo e de forma máxima todas as atividades dos indivíduos. Estes não são obrigados a participar de uma instituição, mas se não quiserem ser excluídos terão que submeter-se às normas exigidas. A inclusão exige normalização. A normalização se tornou a técnica de governo eficiente que regula o comportamento dos indivíduos e populações.

O governo dos desejos e dos interesses

As técnicas econômicas de governo das populações abandonaram os métodos autoritários da soberania e desenvolveram novas formas de governamentalidade normalizadora. Contudo, um novo autoritarismo lateja nos dispositivos de normalização. Já no século XVIII, no marco do discurso fisiocrata, desenvolveu-se a regulamentação como técnica de governo das populações. É uma técnica diferente das utilizadas pela soberania. Ela não visa obter a obediência dos súditos em relação à vontade do soberano, mas sim atuar de forma calculada e analítica sobre a população. A naturalidade penetrável da população demarcou uma transformação significativa na racionalização das formas de poder originando novas técnicas de governo, que por isso será de caráter biopolítico.

A pluralidade dos indivíduos que conformam a população é tida como uma variável que não impede categorizá-los num conceito totalizante que possibilite arquitetar técnicas de governo. As variáveis que diferenciam os indivíduos ficam compensadas por algumas invariantes que persistem como elementos inerentes à natureza humana. Entre elas, já nos teóricos da economia política do século XVIII destacou-se o desejo.

O desejo seria uma invariante da natureza humana que faz com que a população em seu conjunto tenha uma motivação natural para a ação. O desejo já tinha sido demarcado nas práticas discursivas sobre direção de consciência, no poder pastoral e na filosofia antiga. O desejo é retomado pela economia política numa outra perspectiva, porém conservando a mesma importância. O desejo é deslocado, melhor dizendo, reduplicado da consciência para o interior das práticas de poder e técnicas de governo. O desejo é aquilo que motiva o agir do sujeito. No desejo, o sujeito identifica o espaço mais íntimo e localizável de sua liberdade. Ele se sente livre quando faz o que quer, e vice-versa, sente frustrada sua liberdade quando não consegue realizar seus desejos. Liberdade e desejo mantêm uma aparência de interconexão natural. Há um aparente vínculo orgânico entre a realização dos desejos e o sentimento de liberdade. Aparece como o lócus mais íntimo da natureza humana, o mais natural da sua natureza.

As técnicas de governo da população levaram em conta, muito cedo, a correlação que vincula a conduta dos sujeitos com seus desejos. Já Quesney formulava que não se pode governar contra os desejos da população, logo o bom governante tem que saber governar esses desejos. O desejo aparece como uma objetivação penetrável através da qual é possível decifrar algumas das racionalidades da conduta da população. Não se deve governar contra os desejos, deve-se aprender a governar os desejos.

No desejo encontra-se conexo um outro elemento importante para as técnicas de governo, o conceito de interesse. O desejo se movimenta por interesse, o interesse perfaz o desejo. Há uma imbricação entre interesse e desejo que condiciona o agir da população. O desejo é a busca do interesse, mas o interesse também está conformado pelo desejo. Deseja-se o que interessa, interessa-se por aquilo que se deseja. A população age regida por um jogo de interesses e desejos. Ambos atuam como alavanca da população e norteadores de sua conduta. As técnicas de governo deverão regular esse complexo jogo de interesses e desejos permitindo sua realização na mesma medida em que os regula. Uma boa regulamentação dos desejos implica na eficiente normatização das vontades. Os dispositivos de normalização possibilitam o enquadramento dos desejos no marco das necessidades e demandas socialmente exigidas. As técnicas de governo advindas do discurso econômico desenharam o marco da governamentalidade biopolítica. Elas esboçaram as técnicas de governo como uma produção do interesse coletivo da população pelo jogo do desejo. Esta intersecção entre desejo e técnicas de governo delimita concomitantemente a naturalidade da população a artificialidade das técnicas de governo.

O discurso econômico trans/trocou os princípios da política, a autogestão livre dos sujeitos e a constituição da autonomia, pela administração da população. A política ficou transformada numa gestão eficiente das populações levando em conta a naturalidade do seu desejo. O conceito de sociedade administrada desenvolvido por Adorno, Horkheimer e Marcuse encontra seu correlato nas pesquisas que Foucault desenvolveu sobre o papel da economia política e suas técnicas de governo. A política ficou absorvida pela gestão das populações a partir do desejo. A administração eficiente deve saber implementar uma produção “espontânea” do interesse coletivo através do desejo.

A problematização do desejo como espaço biopolítico do governo humano tem-se sofisticado ao extremo. Na atualidade, poderíamos dizer que o melhor governo não é aquele que aprendeu a governar os desejos, mas aquele que consegue produzir os desejos. As novas técnicas de governo biopolítico não se limitam a governar os desejos, mas os produzem. Nesse sentido, a biopolítica excedeu em grande parte sua pretensão originária de produzir formas de governo dos outros e se transformou uma imensa maquinaria de produção de subjetividades. O princípio reitor da biopolítica contemporânea diz que o melhor governo não é aquele que se limita a governar, mas aquele que produz os governados.

A sombra do autoritarismo ronda a biopolítica. O soberano pretensamente abolido pelo Estado de direito ainda subsiste sobrevivente no estado de exceção, segundo nos alertou Agamben. Além dessa perspectiva apontada por esse autor, percebe-se renascer o autoritarismo nas técnicas governamentais que reduzem a vida humana a mero objeto de governo e os sujeitos a população governável. As novas formas de autoritarismo do século XXI muito provavelmente terão um caráter biopolítico e a roupagem das técnicas governamentais necessárias.

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Confira os artigos de Castor Bartolomé Ruiz sobre o evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana” e a respeito do curso Filosofia e sociedade: A biopolítica, a testemunha e a linguagem. (Des) encontros filosóficos: M. Foucault, H. Arendt, E. Levinas, G. Agamben:

* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011, disponível em http://bit.ly/naBMm8;

* O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011, disponível em http://bit.ly/nPTZz3;

* O estado de exceção como paradigma de governo. Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011, disponível em http://bit.ly/nsUUpX;

* A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011, disponível em http://bit.ly/pDpE2N;

* A testemunha, um acontecimento. Revista IHU On-Line, edição 375, de 03-10-2011, disponível em http://bit.ly/q84Ecj;

* A testemunha, o resto humano na dissolução pós-metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011, disponível em http://migre.me/66N5R;

* A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça. Revista IHU On-Line, edição 380, de 14-11-2011, disponível em http://bit.ly/vQLFZE;

* Genealogia da biopolítica. Legitimações naturalistas e filosofia crítica. Revista IHU On-Line, edição 386, de 19-03-2012, disponível em http://bit.ly/GHWSMF;

* A bios humana: paradoxos éticos e políticos da biopolítica. Revista IHU On-Line, edição 388, de 09-04-2012, disponível em http://bit.ly/Hsl5Yx.

* Objetivação e governo da vida humana. Rupturas arqueo-genealógicas e filosofia crítica. Revista IHU On-Line, edição 389, de 23-04-2012, disponível em http://bit.ly/JpA8G3.

 

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